HENRIQUE RODRIGUES

Sinais de fogo

1 - Por lei de 30 de Maio de 1834, da iniciativa de Joaquim António de Aguiar, Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça de D. Pedro IV, então ainda nos Açores e Regente do Reino em representação da sua filha D. Maria da Glória, foi declarada a extinção de “todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares”, passando o património fundiário dessas entidades para a Fazenda Nacional.
Foi uma das várias leis de desamortização promulgadas ao longo da nossa história: primitivamente, na alta Idade Média, para reforço da Coroa, durante o processo de centralização do Poder Real, à custa dos bens da nobreza e do clero; posteriormente, após a Revolução Liberal, para consolidação e pagamento de favores à burguesia endinheirada que constituía a base social e clientelar de apoio à nova ordem política, a quem tais bens foram vendidos em hasta pública, muitas vezes a preços simbólicos, em conjunto com alvará de barão ou de visconde.
É por tal razão que muitos conventos e mosteiros ainda hoje permanecem em mãos particulares, vindos por herança familiar ou por transmissões posteriores, num processo de fragmentação e dispersão da propriedade fundiária que marca o fim do mundo antigo, o mundo do Antigo Regime do poder absoluto do soberano e dos privilégios da nobreza e do clero.
Não foi apenas em Portugal que esse fenómeno ocorreu. Em Espanha, por exemplo, igualmente leis de desamortização e confisco dos bens do clero foram publicadas por altura e em consequência da instauração do liberalismo político, também no século XIX.
Todavia, não é só a mudança simbólica da transição das monarquias absolutas para as monarquias constitucionais que constitui fundamento para a desamortização dos bens do clero.
Essas medidas confiscatórias eram amiúde tomadas, mesmo em tempos mais recuados, por estritas razões fiscais. Com efeito, as corporações ou instituições religiosas têm normalmente natureza ou, pelo menos, vocação perpétua, pelo que, diversamente do que sucede quanto às pessoas físicas, os bens que constituem o património fundiário dessas entidades, provenientes de legados pios ou de doações, quer de particulares, quer do monarca, não se transmitem de 20 em 20 ou de 30 em 30 anos, por via de sucessão hereditária.
Isto é, não pagavam imposto sucessório, nem de transmissões gratuitas ou onerosas, já que nunca mudavam de dono; ao contrário, o imposto era pago, com esse ou outro nome, nas transmissões dos particulares, em processos de transmissão, por herança ou por outro modo de alienação.
Assim, transpostos os bens da Igreja para as mãos dos particulares, o Fisco, que, até então, não podia tributar a transmissão de tais bens, por transmissão não haver, passava a garantir que, de 20 em 20 anos, lá iria ratar e arrecadar mais uma porção do património.
Chamam-se tais bens, alheios, pela natureza, às contingências da vida, bens de mão morta; tendo o ministro Joaquim António de Aguiar – que ainda leva o nome em várias ruas e avenidas do País – ganhado, pelos seus feitos descritos, a alcunha do Mata-Frades.
(Fala-se também no regresso do imposto sucessório, extinto em seu tempo por António Guterres, que o considerava o mais estúpido dos impostos – e tinha razão!)

2 – Uma réplica desse processo confiscatório ocorreu nos inícios da República, em 1911, por iniciativa de Afonso Costa, Ministro da Justiça e dos Cultos.
Trata-se da Lei de Separação do Estado das Igrejas, em que, para além de medidas relativas à garantia de liberdade de culto, não deixava de se estatuir, no artº 88º, que “Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de selos (...)”.

3 – Toda esta antiga tradição de confisco, com particular destaque para a experiência da 1ª República, em que ao confisco acresceu um ambiente de franca hostilidade relativamente aos ministros do culto, conferiu uma especial conflitualidade às relações entre o Estado e a Igreja Católica durante esse período de 16 anos da nossa História Contemporânea, entre 1910 e 1926 – de tal forma que foi à sombra de um partido chamado Centro Católico, que o fez deputado, que Salazar, durante a 1ª República, ganhou treino na oposição ao liberalismo político e foi configurando o Estado Novo que nos governou em ditadura até ao 25 de Abril de 1974.
As novas gerações, que são quem predominantemente ocupa pelos dias de hoje a direcção ou o poder de influência de muitas das actuais formações partidárias, não terão notícia disso, já que memória desse tempo não o têm certamente e a matéria não se estuda nas “Universidades de Verão” – mas, nos primeiros tempos após a libertação da ditadura, pela Revolução de Abril, uma das principais preocupações do debate público consistia na forma de evitar alguns dos erros que tinham conduzido à queda da 1ª República e à emergência da ditadura; e, antes de todos os demais, a chamada “questão religiosa”.
Deve-se fundamentalmente ao Dr. Mário Soares – que, como ele próprio sobre si referia, “não (foi) sido bafejado pelo dom da fé” – a desarticulação “ab ovo” dessa ameaça, assumindo como prioridade da sua agenda política e como factor de desenvolvimento em liberdade do nosso País o desanuviamento da relação entre o Estado e a Igreja.
Penso que estará porventura em tempo de o Dr. Mário Soares, do cimo da sageza dos seus 90 anos, vir de novo a terreiro, lembrar a alguns rapazes mais novos que por aí circulam essas suas ideias antigas.

4 – De perto e longe, da minha Galiza onde passo férias há 20 anos, fui acompanhando pelos jornais portugueses as vicissitudes do IMI e os maus tratos que, quer o Governo, quer o Fisco, lhe foram dando.
Dizem que a culpa é do calor do Verão, que terá queimado alguns dos fusíveis que regulam a sensatez.
Não vou agora tratar do imposto sobre o sol e sobre o mar, que foi aonde a imaginação fulgurante do Ministério nos pretendeu levar. Mas a ameaça de tributação dos imóveis destinados a fins de solidariedade social, que também constava do pacote da “interpretação” fiscal sobre os bens das entidades religiosas, corresponde a uma insólita novidade no terreno da solidariedade – e a uma má novidade.
Bem sei que os Senhores Bispos e o Governo já deitaram água no lume que começava a lavrar.
Li também que, num ano que, até Julho, batia recordes positivos na quantificação da área ardida, bastaram dois meses para levar ao avesso esses indicadores, com o País, literalmente, a arder.
É isso: às vezes, basta um sopro a mais, basta um descuido: e tudo arde. E o “Que farei quando tudo arde?” – era o que perguntava Sá de Miranda, num verso que António Lobo Antunes levou a título de um romance.

 

Data de introdução: 2016-09-08



















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