A inflação é como a temperatura do corpo. Quando sai fora da norma dizemos que temos febre. A febre, contudo, não é mais que um sintoma que reflete um mal-estar mais profundo.
Se apenas cuidarmos da febre, deixamos a doença de base agravar-se o que fará subir de novo a temperatura, porventura, para níveis ainda mais altos.
Tal como a febre, a inflação reflete um desequilíbrio no tecido sócio económico e é desse desequilíbrio que devemos tratar.
Só há inflação, independentemente das causas (podem ser as mais diversas), se a procura, isto é, o que os agentes económicos desejam comprar, for superior ao que a economia pode ou quer produzir.
O que está na base do atual surto inflacionista é um volume de procura, nomeadamente por mercadorias tangíveis, bens físicos, que a economia atual não consegue fornecer.
Quer o aumento de procura, quer a incapacidade da oferta, resultam de deslocações e desfasamentos gerados pela situação pandémica conforme se explicou na crónica anterior.
Há também quem diga que os excessos das políticas públicas – fiscal e monetária – ajudaram à festa, mas este ponto já um pouco mais controverso.
Em cima disto caíram dois choques exógenos.
Um deles tem que ver com a transição energética.
O investimento em prospeção e exploração de combustíveis fósseis caiu a pique e é compreensível. Trata-se de investimentos gigantescos que só são recuperáveis em prazos muito longos, dezenas de anos.
Se me dizem que daqui a 15 anos já ninguém necessita do meu produto e preciso de 20 para recuperar o meu investimento, obviamente não invisto.
Não havendo investimento, mais tarde ou mais cedo, a procura supera a oferta – é o que está a acontecer agora e tudo aponta para que a situação se agrave no futuro e nem precisávamos da guerra para tal.
O outro choque exógeno é a guerra. Dá-se o caso de a Rússia estar entre os três maiores produtores de petróleo do mundo, ser o maior exportador de gás natural e importante exportador líquido de cereais. A Ucrânia também é uma grande exportadora de matérias-primas agrícolas.
As boas almas que quiseram acreditar no caráter transiente do surto inflacionista – ir-se-á embora pelo seu pé, é uma questão de tempo – são agora ultraminoritárias. A opção de fazer nada já não é realista.
Se o que queremos é curar o mal profundo, temos de restaurar o equilíbrio entre oferta e procura, ou seja, as políticas públicas adequadas são as que aumentam a oferta, reduzem a procura ou um misto das duas coisas.
A política fiscal pode fazer pouco para aumentar a oferta de bens físicos e, embora o estado possa e deva intervir com incentivos ajustados para o aumento da produção, as medidas, por mais corretas que sejam, só produzirão resultados (se produzirem) a longo prazo. Por essa altura já a inflação estará fora de controlo.
Seria mais fácil reduzir a procura, por exemplo, reduzindo a despesa do estado ou aumentando impostos, contudo, trata-se de opções politicamente complicadas ou mesmo politicamente inviáveis nomeadamente em doses que pudessem ter alguma eficácia.
Resta a política monetária.
Desde que o surto inflacionista se infiltrou nas economias de capitalismo avançado, os bancos centrais decidiram fazer nada. O argumento para o imobilismo era forte: que pode fazer a política monetária para aumentar a oferta que sai das fábricas? Pouco? Quiçá, nada!
Claro que a política monetária não pode aumentar a produção das fábricas, ou seja, não pode expandir a oferta no curto prazo. Mas pode tirar dinheiro da economia e desse modo reduzir a procura e restaurar o equilíbrio.
Pode, mas não deve, diziam-nos. Reduzir a procura pode resolver o tema da inflação, mas o custo será uma recessão económica, subida do desemprego e por aí fora.
E, também nos diziam, isso seria estúpido por duas razões: primeiro o impulso inflacionário é transitório, cura-se a si mesmo, não precisamos de fazer nada; segundo é que provocamos uma recessão desnecessária justamente quando as economias estão a sair da crise sanitária.
Mas, se sabemos agora que a coisa não é passageira, que uma inflação endémica é do pior que pode acontecer numa sociedade, já não é possível justificar a inação.
A resposta deve ser, tem de ser, da política monetária.
A primeira linha de resposta deve ser o aumento das taxas de juro. Esse ciclo já tinha começado em muitas economias emergentes e está agora a chegar às economias de capitalismo avançado. Os Estados Unidos e o Reino Unido já começaram a subir as taxas de juro e os que ainda resistem, o BCE o Banco do Japão, cada um no seu tempo, terão de fazer o mesmo.
Por outro lado, os bancos centrais devem começar rapidamente o processo de redução dos seus balanços, ou seja, mais prosaicamente, começar a retirar das economias o excesso de dinheiro que, de forma imprudente, para lá despejaram.
Obviamente este processo vai ter custos e não é isento de riscos.
O primeiro risco relevante é a degradação do balanço das famílias. Muitas famílias estão endividadas, sobretudo por crédito hipotecário. Uma subida significativa das taxas de juro pode colocar muitas famílias em dificuldades.
O segundo risco relevante é a degradação do balanço dos estados. Os estados estão muito endividados nomeadamente pela resposta às crises financeira e sanitária. Se os juros subirem podemos ter crises de dívida soberana complicadas.
Um terceiro risco é a disrupção dos mercados financeiros. Os mercados financeiros capturaram os bancos centrais a um ponto em que já não sabemos bem quem manda na política monetária. O aperto financeiro súbito pode lançar os mercados em queda livre e isso pode ter consequências negativas.
Finalmente há o risco de uma recessão económica.
Sem dúvida, riscos terríveis.
O problema é que o risco de um processo inflacionário endémico, autoalimentado é pior.
É impossível saber se podemos controlar o surto inflacionista sem uma recessão económica – com sorte talvez seja possível evitá-la. O que é certo é que, se não fizermos nada, mais à frente, a recessão será certa e com certeza não será curta nem pouco profunda. Lembremo-nos do que custou controlar o ciclo inflacionista dos anos 70/80 do século passado.
Quer isto dizer que devemos simplesmente assistir à degradação do poder de compra das pessoas?
Não, de todo. Só que a solução não está em aumentar salários ou pensões.
O que as políticas públicas podem e devem fazer, em vez de deitar mais lenha para a fogueira dos preços com imprudentes aumentos de salários ou pensões, é ajudar diretamente o rendimento dos mais frágeis.
Isto pode parecer cruel, mas não há alternativa. Não se cura um excesso de procura sem sacrifícios – o que as políticas públicas podem e devem fazer é evitar que um peso injusto recaia sobre os mais fracos e sobre os que têm menos voz.
Quase tão importante como aquilo que as políticas públicas devem fazer é aquilo que não devem fazer. Um bom tema para uma próxima crónica.
Não há inqueritos válidos.