"Ter paralisia cerebral é tão estranho! De tal maneira que, de certa forma, até se esquece... Não ando, não controlo os movimentos, babo-me e quase não consigo falar. Mas apesar de tudo, sou feliz. Não sei explicar a vontade que tenho de viver! COISA MALUCA..." - Regina Graça
As palavras estão inscritas na brochura de apresentação do portal “Conversas sobre paralisia cerebral”, um espaço virtual desenvolvido pela Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, dedicado à troca de impressões, experiências e dúvidas relacionadas com esta doença que afecta duas em cada mil crianças nascidas. As estatísticas são quase inexistentes e as que há, segundo os especialistas, não revelam a realidade nacional. Contudo, é comummente aceite que todos os anos são diagnosticados em Portugal cerca de 200 novos casos de crianças com paralisia cerebral. Segundo, o Censos 2001 serão cerca de 15 mil as pessoas afectadas por esta perturbação mas, as dúvidas, quanto à validade da questão colocada nos inquéritos, poderão levar a discrepâncias.
Mas o que é a paralisia cerebral?
De um modo geral, para um leigo, paralisia cerebral significa o que as próprias palavras indicam: alguém a quem “parou” o cérebro. E se a ideia imediata e mais prosaica das funções cerebrais é pensar, logo serão pessoas incapazes de pensar. Fátima Januário, responsável pela área da educação da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), explica que o conceito não pode ser mais erróneo. “São pessoas, crianças, que têm uma lesão no cérebro que provocou obrigatoriamente uma perturbação do controlo da postura e movimento”. A especialista explica que algumas pessoas têm perturbações ligeiras que as tornam desajeitadas a andar, falar ou a usar as mãos. Outras são gravemente afectadas com incapacidade motora grave, que as impossibilita, por exemplo, de andar, falar ou fazer simples actividades diárias como vestir ou comer. “Temos desde alunos que não conhecem os pais, até aqueles que são professores universitários pois, muitas vezes, a estrutura do pensamento não é afectada”, explica a técnica.
Teresa Paiva, responsável na mesma instituição pela área da reabilitação, refere, no entanto, que a paralisia cerebral pura é muito rara. “Nesses casos, a localização da lesão só afecta a área motora, mas em cerca de 50 por cento dos afectados há outras deficiências associadas”, explica. Exemplo disso é a epilepsia que afecta mais de 60 por cento dos casos que têm outras patologias. A especialista alerta para as falsas deficiências intelectuais, que surgem na sequência das perturbações inerentes à paralisia cerebral, que acabam por coarctar as diversas experiências necessárias ao desenvolvimento humano. “Se uma criança com um ano e meio precisa das experiência sensório-motoras para se desenvolver, se não consegue agarrar os objectos, andar, tocar, esse desenvolvimento vai ser condicionado, pois o cérebro não recebe esses estímulos”.
Apenas 10 por cento das crianças com paralisia cerebral são detectadas antes do nascimento. A maioria acontece no parto ou no período subsequente, havendo casos em que a perturbação só foi detectada aos 9 meses. “A medicina está muito avançada e já consegue recuperar crianças com apenas 26 semanas de gestação, mas as consequências existem e repercutem-se no desenvolvimento”, diz Teresa Paiva. A psicóloga acredita que muitos dos casos de paralisia cerebral são de bebés prematuros que não conseguiram atingir o grau de desenvolvimento necessário, apesar da medicina os ter salvo.
A APCC trabalha desde o nascimento da criança de forma a potenciar o mais possível o seu desenvolvimento. José Barros, presidente e fundador daquela instituição de solidariedade social, explica que sempre que existe um parto de risco nas maternidades com as quais a APCC tem protocolos, o mesmo é acompanhado por um pediatra e um fisioterapeuta da instituição de modo a que a intervenção e detecção da patologia seja o mais precoce possível. “Só assim teremos êxito”, diz. O médico explica que o trabalho multidisciplinar representa outro dos factores de sucesso para a autonomização das crianças com paralisia cerebral. “Trabalhamos com uma equipa médica, terapêutica, educativa, num campo de acção multidisciplinar vasto, o que torna o trabalho mais rigoroso e o plano de intervenção mais abrangente com vantagens claras para o utente”.
A falta de ajudas técnicas
Graças à evolução técnica, a vida de muitos doentes com paralisia cerebral pode ser facilitada. Os computadores vieram permitir a comunicação dos doentes em que a fala estava afectada e há casos de sucesso que chegam à universidade e têm uma integração plena na vida activa. Mas os instrumentos que permitem potenciar esse desenvolvimento são caros e os apoios, além de escassos, na maioria das vezes tardam em chegar. “Muitas vezes essas ajudas técnicas que permitem dar maior independência chegam tarde de mais. Prescrevemos a ajuda técnica hoje e ela chega passado um ano”, refere José Barros, que é também presidente da Federação Portuguesa das Associações de Paralisia Cerebral composta pelos 15 centros espalhados pelo país.
Quando chegam os equipamentos “ficam desadequados” pois, tal como uma peça de roupa, estas ajudas técnicas são feitas à medida do corpo e das necessidades e o crescimento da criança faz com que deixe de “servir”. Sem o apoio esperado da Segurança Social, muitas vezes são as associações que acabam por ajudar as famílias. Quando não é atribuído o equipamento necessário, “as instituições de solidariedade, dentro do seu parco orçamento, vão ajudando as famílias, emprestando algum dinheiro que falta para poder suprir as falhas”. O médico sublinha que “uma ajuda técnica não é um luxo, mas uma necessidade”. Apesar das críticas, José Barros reconhece que tem havido um esforço por parte dos governos em melhorar a situação. O médico ainda se lembra dos tempos em que começou a trabalhar nesta área, há cerca de três décadas: “Encontrava crianças escondidas, fechadas em quartos, porque os pais não tinham forma de as tratar”.
A APCC
E foi essa necessidade de encontrar tratamento para os filhos com paralisia cerebral que levou um grupo de pais de Coimbra a criar a instituição, entre eles, José Barros. A APCC iniciou a sua actividade em 1975, na altura, como Núcleo Regional do Centro da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral. A prioridade orientou-se para a criação de um centro de reabilitação, composto por uma equipa multidisciplinar que começou por funcionar em instalações alugadas. Em 1992, a APCC muda-se para uma casa própria, um edifício feito de raiz e adaptado às necessidades específicas dos utentes aos quais se destina. Com serviços especializados na área da medicina, terapia da fala, terapia ocupacional, fisioterapia, psicologia, serviço social, psicomotricidade, enfermagem, musicoterapia, hidroterapia, entre outros, o centro dá resposta a 1800 utentes por ano. Para conseguir dar continuidade ao processo de reabilitação, a instituição avançou com o projecto de pré-profissionalização e em 1983 entra em funcionamento a Quinta da Conraria, que actualmente atende por dia 330 pessoas.
O espaço amplo permitiu a equitação terapêutica, a abertura de uma quinta pedagógica e a produção de agricultura biológica. Com a entrada de Portugal no mercado comunitário, abriram-se perspectivas de desenvolvimento das primeiras acções formativas e por conseguinte em 1989, arranca a formação profissional. Ao longo do tempo foram sendo criadas cada vez mais soluções formativas, atingindo na actualidade as 18 acções direccionadas também para pessoas com deficiência oriundas da Região Centro e para jovens e adultos em risco de exclusão social.
“A instituição tem participado em dezenas de projectos comunitários e a nossa aposta consiste numa qualificação elevada dos nossos colaboradores, que assim, nos permite criar serviços de “ponta” na nossa área de intervenção”, explica o presidente. Com mais de meio milhar de funcionários, a direcção da APCC tem feito uma aposta contínua na integração, também desenvolvida na perspectiva de chamar a comunidade para o interior da instituição. Assim, nas instalações do Centro de Reabilitação funciona também uma escola do ensino regular, cursos EFA abertos à população exterior e são cedidos espaços na Quinta da Conraria para a realização de festas. “Tudo isto com o objectivo de chamar as pessoas de fora para dentro, uma integração ao contrário”, diz José Barros.
Texto: Milene Câmara
Data de introdução: 2010-03-13