JOSÉ FIGUEIREDO

Os salários do nosso descontentamento

Os salários são um preço, o preço ao qual vendemos a nossa força de trabalho.
Obviamente trata-se de um preço que não tem nada de trivial. Desde logo por razões meramente quantitativas – o nível dos salários é uma variável macroeconómica fundamental da qual dependem, entre outras coisas, o nível de preços, as taxas de juro, a competitividade, etc..
Mas acima de tudo os salários são importantes se não cometermos o segundo pecado capital dos economistas – ignorar a moral. Os salários não um preço como os outros, referem-se a seres humanos, à sua vida, à qualidade da sua vida. Não são, não podem ser um mero número!
A valorização dos salários é (devia ser) um objetivo fundamental para qualquer ciência e política económica dignas desse nome.
Vivemos a este respeito, no período chamado de ajustamento (entre 2011 e 2015) um tempo de aviltamento dos valores essenciais da economia e da política. Não só a valorização dos salários deixou de ser uma preocupação, como o seu contrário, a redução dos salários, passou a ser um dos principais desideratos da ação política do governo. Chegámos a um ponto em que, se empresários e trabalhadores não se entendessem para reduzir o nível dos salários, o poder soberano do estado fá-lo-ia à força reduzindo as contribuições patronais para a segurança social à custa do aumento das contribuições dos trabalhadores.
Felizmente que se demonstrou que a indignidade tem limites - a intenção era de tal maneira absurda que a rua se encarregou de a despachar em pouco mais de um fósforo.
Mas o nauseabundo pano de fundo continua a poluir o nosso ar, a ideia de que os salários baixos são uma coisa boa, ou não sendo uma coisa boa são, apesar de tudo, inevitáveis (o lado negro do fado tem muitas vidas) continua a informar uma boa parte do discurso de uma direita que gosta de se dar uns ares de liberal (embora se trate de “liberalismo” de extração recente e profundamente ignorante) e de parte de um empresariado tosco e atrasado.
Felizmente que essa perspetiva maligna em relação aos salários foi abandonada pelo atual governo que suscitou um acordo a nível da concertação social para que o salário mínimo aumente para 600 euros até ao fim da corrente legislatura. Naturalmente que todos esperamos que os salários acima do mínimo comecem também a subir.
Vem isto a propósito de um estudo publicado recentemente pela Euromonitor sobre a evolução dos salários na China.
Habituámo-nos a pensar na China como a fábrica do mundo, um sítio onde os salários eram tão baixos, tão baixos que fazia sentido enviar para lá os segmentos da cadeia de valor intensivos em trabalho. E de tal maneira nos habituámos a esta ideia que nem reparámos que entretanto passou uma geração e que uma geração é muito tempo.
Em 1980 o produto per-capita da China, medido em dólares correntes, era de 2% (50 vezes menos) do produto per-capita dos Estados Unidos, hoje é de 15%. O produto per-capita da China multiplicou por 28, o dos Estados Unidos por 4,5. Em Portugal, no mesmo período, o produto per-capita multiplicou-se por 6.
Entretanto os salários na China foram crescendo na medida em que o processo de urbanização, ou seja, de transferência massiva de pessoas do campo para a cidade, foi arrefecendo e limitando a oferta de mão-de-obra disponível.
A Euromonitor, para poder comparar a evolução dos salários em diferentes geografias, recorreu à base de dados da Organização Internacional do Trabalho, ao Eurostat e às agências estatísticas nacionais. Para que os valores fossem comparáveis converteu tudo em dólares e descontou a inflação.
Olhando para o sector das manufaturas (não é lá que estão os salários mais baixos) o Financial Times publicou o gráfico em baixo.
O que podemos ver é que os salários industriais da China são hoje maiores que os da generalidade dos países da América Latina incluindo países como o México, o Brasil ou a Argentina. Na América Latina apenas o Chile se pode atualmente gabar de ter salários industriais mais elevados que a China.
Mas o que chama mais a atenção no gráfico, e que obrigou a aumentá-lo em altura, é a referência a Portugal. Há uma década atrás os nossos salários industriais eram 5 vezes os da China ou são apenas 1,25 vezes maiores.
Em apenas uma década os salários reais dos nossos operários caíram, segundo a metodologia da Euromonitor, cerca de 28,5%.
Naturalmente que a metodologia da Euromonitor é discutível e provavelmente se fizemos o mesmo exercício para a totalidade dos salários (incluindo agricultura e serviços) e não apenas para os salários industriais, porventura, a comparação não seria tão vexatória.
Mesmo com todas as limitações e questionamento que possamos fazer desta informação, a verdade é que deveríamos todos ter vergonha de ser incapazes de valorizar os salários dos nossos compatriotas. Como dizia Blaise Pascal num dos seus pensamentos: ”só é vergonha não ter vergonha”.
Perante estes dados alguém comentava comigo que havia em tudo isto um lado bom: um dia destes as nossas confeções poderiam competir com a China.
Não sei se deva classificar esta perspetiva como miséria do pensamento ou pensamento da miséria.
Não consigo imaginar objetivo nacional mais medíocre que o de poder competir com a China no dia em os nossos salários forem equivalentes aos do império do meio.
Mas por outro lado não podemos esquecer que a competitividade não tem que ver só com o nível ou com a evolução dos salários.
A China continua e continuará a ser um bom sítio para instalar indústrias embora, provavelmente, não as mesmas que por lá deram à costa no início dos anos 80. Por duas razões.
Em primeiro lugar porque na China não são só os salários que sobem, também sobe a produtividade, pelo que produzir na China continuará a ser atrativo ainda por muitos e bons anos.
Por outro lado não podemos esquecer que o mercado interno Chinês é gigantesco – em muitas categorias de produtos (automóveis, por exemplo) é o maior mercado do mundo e representa mais de 1/5 do mercado mundial. Mesmo que os salários subam e subam bem, a simples proximidade do maior mercado do mundo vai levar a que fiquem por lá muitas e boas atividades.
Os que têm como solução a perspetiva da miséria (à força se necessário) bem podem tirar o cavalinho da chuva.

 

Data de introdução: 2017-03-10



















editorial

O COMPROMISSO DE COOPERAÇÃO: SAÚDE

De acordo com o previsto no Compromisso de Cooperação para o Setor Social e Solidário, o Ministério da Saúde “garante que os profissionais de saúde dos agrupamentos de centros de saúde asseguram a...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Imigração e desenvolvimento
As migrações não são um fenómeno novo na história global, assim como na do nosso país, desde os seus primórdios. Nem sequer se trata de uma realidade...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Portugal está sem Estratégia para a Integração da Comunidade Cigana
No mês de junho Portugal foi visitado por uma delegação da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa, que se debruçou, sobre a...