Os salários são um preço, o preço ao qual vendemos a nossa força de trabalho.
Obviamente trata-se de um preço que não tem nada de trivial. Desde logo por razões meramente quantitativas – o nível dos salários é uma variável macroeconómica fundamental da qual dependem, entre outras coisas, o nível de preços, as taxas de juro, a competitividade, etc..
Mas acima de tudo os salários são importantes se não cometermos o segundo pecado capital dos economistas – ignorar a moral. Os salários não um preço como os outros, referem-se a seres humanos, à sua vida, à qualidade da sua vida. Não são, não podem ser um mero número!
A valorização dos salários é (devia ser) um objetivo fundamental para qualquer ciência e política económica dignas desse nome.
Vivemos a este respeito, no período chamado de ajustamento (entre 2011 e 2015) um tempo de aviltamento dos valores essenciais da economia e da política. Não só a valorização dos salários deixou de ser uma preocupação, como o seu contrário, a redução dos salários, passou a ser um dos principais desideratos da ação política do governo. Chegámos a um ponto em que, se empresários e trabalhadores não se entendessem para reduzir o nível dos salários, o poder soberano do estado fá-lo-ia à força reduzindo as contribuições patronais para a segurança social à custa do aumento das contribuições dos trabalhadores.
Felizmente que se demonstrou que a indignidade tem limites - a intenção era de tal maneira absurda que a rua se encarregou de a despachar em pouco mais de um fósforo.
Mas o nauseabundo pano de fundo continua a poluir o nosso ar, a ideia de que os salários baixos são uma coisa boa, ou não sendo uma coisa boa são, apesar de tudo, inevitáveis (o lado negro do fado tem muitas vidas) continua a informar uma boa parte do discurso de uma direita que gosta de se dar uns ares de liberal (embora se trate de “liberalismo” de extração recente e profundamente ignorante) e de parte de um empresariado tosco e atrasado.
Felizmente que essa perspetiva maligna em relação aos salários foi abandonada pelo atual governo que suscitou um acordo a nível da concertação social para que o salário mínimo aumente para 600 euros até ao fim da corrente legislatura. Naturalmente que todos esperamos que os salários acima do mínimo comecem também a subir.
Vem isto a propósito de um estudo publicado recentemente pela Euromonitor sobre a evolução dos salários na China.
Habituámo-nos a pensar na China como a fábrica do mundo, um sítio onde os salários eram tão baixos, tão baixos que fazia sentido enviar para lá os segmentos da cadeia de valor intensivos em trabalho. E de tal maneira nos habituámos a esta ideia que nem reparámos que entretanto passou uma geração e que uma geração é muito tempo.
Em 1980 o produto per-capita da China, medido em dólares correntes, era de 2% (50 vezes menos) do produto per-capita dos Estados Unidos, hoje é de 15%. O produto per-capita da China multiplicou por 28, o dos Estados Unidos por 4,5. Em Portugal, no mesmo período, o produto per-capita multiplicou-se por 6.
Entretanto os salários na China foram crescendo na medida em que o processo de urbanização, ou seja, de transferência massiva de pessoas do campo para a cidade, foi arrefecendo e limitando a oferta de mão-de-obra disponível.
A Euromonitor, para poder comparar a evolução dos salários em diferentes geografias, recorreu à base de dados da Organização Internacional do Trabalho, ao Eurostat e às agências estatísticas nacionais. Para que os valores fossem comparáveis converteu tudo em dólares e descontou a inflação.
Olhando para o sector das manufaturas (não é lá que estão os salários mais baixos) o Financial Times publicou o gráfico em baixo.
O que podemos ver é que os salários industriais da China são hoje maiores que os da generalidade dos países da América Latina incluindo países como o México, o Brasil ou a Argentina. Na América Latina apenas o Chile se pode atualmente gabar de ter salários industriais mais elevados que a China.
Mas o que chama mais a atenção no gráfico, e que obrigou a aumentá-lo em altura, é a referência a Portugal. Há uma década atrás os nossos salários industriais eram 5 vezes os da China ou são apenas 1,25 vezes maiores.
Em apenas uma década os salários reais dos nossos operários caíram, segundo a metodologia da Euromonitor, cerca de 28,5%.
Naturalmente que a metodologia da Euromonitor é discutível e provavelmente se fizemos o mesmo exercício para a totalidade dos salários (incluindo agricultura e serviços) e não apenas para os salários industriais, porventura, a comparação não seria tão vexatória.
Mesmo com todas as limitações e questionamento que possamos fazer desta informação, a verdade é que deveríamos todos ter vergonha de ser incapazes de valorizar os salários dos nossos compatriotas. Como dizia Blaise Pascal num dos seus pensamentos: ”só é vergonha não ter vergonha”.
Perante estes dados alguém comentava comigo que havia em tudo isto um lado bom: um dia destes as nossas confeções poderiam competir com a China.
Não sei se deva classificar esta perspetiva como miséria do pensamento ou pensamento da miséria.
Não consigo imaginar objetivo nacional mais medíocre que o de poder competir com a China no dia em os nossos salários forem equivalentes aos do império do meio.
Mas por outro lado não podemos esquecer que a competitividade não tem que ver só com o nível ou com a evolução dos salários.
A China continua e continuará a ser um bom sítio para instalar indústrias embora, provavelmente, não as mesmas que por lá deram à costa no início dos anos 80. Por duas razões.
Em primeiro lugar porque na China não são só os salários que sobem, também sobe a produtividade, pelo que produzir na China continuará a ser atrativo ainda por muitos e bons anos.
Por outro lado não podemos esquecer que o mercado interno Chinês é gigantesco – em muitas categorias de produtos (automóveis, por exemplo) é o maior mercado do mundo e representa mais de 1/5 do mercado mundial. Mesmo que os salários subam e subam bem, a simples proximidade do maior mercado do mundo vai levar a que fiquem por lá muitas e boas atividades.
Os que têm como solução a perspetiva da miséria (à força se necessário) bem podem tirar o cavalinho da chuva.
Não há inqueritos válidos.