COVID-19

A emergência da covid-19, a política monetária e o que isto nos diz sobre o estado do mundo

Vai por aí muita conversa sobre a indignação de António Costa a propósito de supostas palavras ofensivas de um tipo qualquer que, ao que consta, é ministro das finanças da Holanda.

Não conheço as palavras em concreto, conheço apenas a versão de António Costa.

A ser verdade o que diz António Costa, a indignação é mais que justificada e, ainda bem que há alguém com a hortaliça no sítio e coragem para pôr a boca no trombone.

Não creio que a indignação de António Costa vá adiantar grande coisa em relação ao assunto em apreço - a presuntiva emissão de coronabonds - mas, mesmo que só sirva para nos aliviar a bílis, é bom e é útil.

Duas notas sobre isto.

Em primeiro lugar, nestas alturas, é preciso ter muito cuidado com as palavras, as nossas e as dos outros. É muito fácil, em períodos de tensão, uma simples acentuação mudar o sentido percebido das palavras e transformar fraseado banal em linguagem agressiva ou mesmo ofensiva.

Em segundo lugar, por mais que eu deteste essa gente empanturrada de virtude que vive na Europa central e do norte, convém ter destas matérias uma abordagem racional.

As coisas não são tão simples como se possa pensar e, se a emissão das coronabonds fosse para a frente, provavelmente, acabaríamos por não gostar das consequências.

Vamos imaginar que, por exemplo, a Alemanha cedia e aceitava subscrever dívida solidária.

Desde logo seria ilegal segundo a lei alemã. Ok, as leis são os homens que as fazem – mudavam-se.

Mas as consequências poderiam ser terríveis. Quanto subiriam as intenções de voto na extrema direita da AFD? Que governo teríamos na Alemanha daqui a um ou dois anos?

Na Holanda há dois partidos populistas muito fortes e imagine-se como cavalgariam uma eventual complacência do governo sobre a subscrição de dívida solidária.

Mesmo em França – que apoia o projeto das coronabonds – não tenho nada a certeza que a opinião pública se perca de amores pela possibilidade de avalizar dívida italiana…

Sejamos realistas, não é caminho…

De certa forma, os empanturrados de virtude do costume, por mais canalha que seja o seu egoísmo, talvez estejam a prestar um grande serviço à Europa ao inviabilizar um modelo que não é solução.

Não sabemos quanto vai custar o combate à pandemia.

Vamos imaginar que custa 10% do PIB da zona euro, ou seja, 1,2 triliões de euros. Provavelmente será mais embora a dimensão efetiva, para o efeito do raciocínio, seja irrelevante.

Admitindo que os gaps orçamentais seriam financiados com dívida (coronabonds eventualmente incluídas), isso implicaria que a dívida global da zona euro saltaria para cerca de 100% do PIB (está atualmente em cerca de 90%), mas com grandes diferenças entre países. Portugal, porventura, regressaria ao pico dos 135% do PIB, Espanha escalará bem acima dos 100% e Itália é melhor nem fazer contas.

Mesmo que o BCE mantenha a promessa de compra ilimitada da dívida soberana e, com isso, consiga conter os spreads, não é difícil concluir que, por exemplo, para Itália o que se vê pela frente continua a ser uma catástrofe que os italianos (e muito bem) vão considerar intolerável. Mesmo com o infinito do BCE os spreads BTP-BUNDS estão em 200 PB.

Consta que o Dr. Fausto vendeu a alma ao diabo em troca de uma juventude eterna e dos favores da bela Margarida.

Temo bem que os italianos façam pior negócio com o demo…

Se a Europa pretende sobreviver com um mínimo de justiça e dignidade tem de pensar em soluções fora da caixa – mais dívida, ilimitadamente, ainda que subscrita solidariamente, não é solução.

Onde ir então buscar os 1,2 triliões de euros?

Simples, imprimindo notas e nem seria preciso gastar papel e tinta.

Dividiria em duas partes.

Metade, 600 biliões, seriam cash puro. O sistema do BCE adiantaria 600 biliões ao tesouro por conta de dividendos futuros.

Dependendo dos países podemos estar a falar de 15 ou mais anos de dividendos, mas que importa. Em tempos de guerra não se limpam armas…

Para o balanço do BCE é irrelevante – passa a ter um ativo novo de 600 biliões (adiantamento a acionistas) contra um aumento do passivo que, no fim, será essencialmente aumento das reservas dos bancos comerciais no banco central.

O balanço do BCE vale atualmente 4,6 triliões pelo que os 600 biliões até não são nada do outro mundo. Para quem está disponível para comprar ativos sem limite…

Os restantes 600 biliões poderiam vir de um esquema de seguro criativo.

Vamos imaginar que criamos uma companhia de seguros com um capital de 100 biliões subscrito pelos estados membros da zona euro.

Essa companhia emite apólices em que aceita prémios de seguro contra catástrofes pandémicas.

Como sempre os prémios deveriam ser calculados em função do risco, contudo, nesta primeira leva, para facilitar as coisas, os prémios poderiam ser iguais para todos – 0,5 % do PIB.

A companhia nasceria com 100 biliões de capital e 60 biliões de prémios.

A companhia aceitaria a reclamação dos sinistros de 600 biliões e para fazer face à despesa teria de se endividar em 500 biliões.

A base dos sinistros seria o aumento súbito e imprevisto da dívida pública por causa do evento pandémico.

Para evitar abusos (não duvidem que nestas coisas há sempre um par de chicos espertos) o seguro teria uma franquia de, por exemplo, 20% do sinistro e não indemnizaria mais que uma determinada percentagem do prejuízo.

A companhia nascia falida, contudo, não deveria ser difícil levantar a dívida a bom preço com o backstop do MEE ou do BCE – deixaria os pormenores para depois.

Admitindo que não teremos um novo evento pandémico nos próximos 10 anos o capital estaria reintegrado no fim da década. Daqui a 15 anos a companhia estaria capitalizada e já poderia acudir a uma nova emergência similar, viesse ela a acontecer, com base no seu próprio balanço.

Se tivermos a sorte de não ter nenhum evento similar em 15 anos, teremos então um instrumento novo para lidar com catástrofes pandémicas.

Estas soluções aqui desenhadas a traço grosso têm a vantagem de ninguém avalizar dívidas de outrem, não violarem, tanto quanto vejo, nenhum tratado europeu e, sobretudo, de evitar que as dívidas soberanas escalem por aí a cima e desencadeiem uma nova crise de dívida que atingiria de forma injusta os mesmos de sempre – os países periféricos.

Já vimos como os políticos – por razões que até compreendo – vão ter muita dificuldade em sair fora da caixa.

Para vender aos eleitorados locais soluções heterodoxas, os políticos precisam de respaldo “científico”. No fundo é esse respaldo que permite agora aos governos tomar medidas que seriam impensáveis não fosse a comunidade científica dizer-nos que a alternativa é o desastre total.

Claro que a economia e as finanças não são ciências exatas. Mas, como estamos a ver, também não o é a virologia. Os melhores modelos dos virologistas têm falhado por muito… Nem por isso vamos deixar de ouvir os cientistas – não temos outro guia.

Talvez a união europeia devesse criar um comité de sábios para fundamentar as medidas excecionalíssimas que vão ser tomadas. Talvez…

 

Data de introdução: 2020-03-29



















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