No último governo socialista, Rui Cunha foi Secretário de Estado-Adjunto do Ministro do Trabalho e da Solidariedade; antes, de 1995 a 1999, tinha desempenhado funções na Secretaria de Estado da Inserção Social. É membro do Gabinete de Estudos da área da Saúde desde 1974, altura em que se filiou no partido de Mário Soares. Na última legislatura foi vice-presidente do Grupo Parlamentar do P.S. e coordenador para os assuntos de Trabalho na Comissão Parlamentar de Trabalho e dos Assuntos Sociais.
SOLIDARIEDADE - O Partido Socialista venceu as eleições com uma maioria absoluta que lhe permite mudar as políticas em todas as áreas. No sector social, as propostas apresentadas ao eleitorado, as diferenças face ao PSD não eram muitas. O que é que vai ser diferente com o PS no governo?
Rui Cunha - O que se vai passar é o seguinte: O PS aposta no aumento do crescimento da economia, o que significa que a riqueza produzida vai ser distribuída com maior justiça social. O crescimento sustentado da economia significará que as pessoas mais desprotegidas estarão na primeira linha das nossas preocupações. Essa é uma grande diferença em relação àquilo que se passou nos últimos três anos. O combate contra a pobreza e contra a exclusão social foi um combate que amorteceu neste país, como se a pobreza e a exclusão não tivessem, infelizmente, continuado a aumentar. Com o regresso do PS ao governo as pessoas vão, de novo, estar em primeiro lugar. O programa que o PS apresentou ao eleitorado é um programa que dedica uma atenção muito especial às questões sociais e designadamente ao papel dos parceiros e das parcerias na intervenção social.
SOLIDARIEDADE - Até que ponto o PS vai privilegiar a relação com as IPSS? A ideia defendida pelo anterior executivo de que as famílias deveriam ser apoiadas directamente tem cabimento, nos próximos tempos?
Rui Cunha - Como sabe, durante o governo socialista foi criado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social. Foi uma assinatura entre o governo do PS com a União das IPSS, Misericórdias, Mutualidades, Associação Nacional de Municípios, Associação Nacional de Freguesias. Isso significa que o PS dá uma atenção especial aos promotores sociais e, no programa que apresentou ao eleitorado, volta a referir que não é possível intervir nesta área sem parcerias activas e sem a cooperação directa dos parceiros sociais. Quando estivemos no governo lançámos aquilo que foi designado por uma nova geração de políticas sociais e agora dissemos ao eleitorado que é preciso arrancar com a terceira geração de políticas sociais.
SOLIDARIEDADE - O que é que isso, concretamente, significa?
Rui Cunha - Para além das respostas que estão tipificadas nós entendemos que, desta vez, devemos avançar muito para as respostas locais. Isto é, cada comunidade tem a sua especificidade própria. Há algumas em que o problema principal é o dos idosos; outras são as crianças; há comunidades em que as respostas do apoio domiciliário servem perfeitamente, há comunidades que, por outro lado, não gostam que estranhos lhes entrem em casa; é preciso outro tipo de respostas. Desta vez devem ser feitos contratos sociais, locais, entre os parceiros, os serviços de protecção social do Estado, as instituições, o poder local e outros tipos de associações voluntárias. A terceira geração de políticas sociais deve promover as respostas mais adequadas para as especificidades de cada comunidade.
SOLIDARIEDADE - Mas a tendência é para o apoio directo às famílias?
Rui Cunha - A tendência é para considerar que todos os parceiros são imprescindíveis e que podem ser feitas experiências pontuais, mas nunca querer rebentar com aquilo que existe e que está a funcionar. Se não fosse a intervenção das instituições estaríamos muito pior do que estamos. Elas têm um papel crucial na protecção social. Seria completamente irresponsável, de repente, acabar com este sistema que existe, de partenariado, de subsidiariedade. Seria precipitada a criação de um sistema para o qual as famílias, a sociedade e a iniciativa privada não estão preparadas, nem o Estado, que não tem vocação para dirigir directamente os equipamentos e os serviços de prestações sociais. Agora experiências pontuais devem ser feitas de forma muito cautelosa e localizada.
SOLIDARIEDADE - Existe a ideia de que as instituições fazem melhor e muito mais barato. Acha que este factor económico é determinante na Economia Social?
Rui Cunha - É importante, mas não é factor único. No programa que apresentámos voltamos a referir esse dado de que as instituições são capazes de prestar serviços sociais a mais baixo custo, mas também que as instituições conseguem apelar a um conjunto de voluntários, criar postos de trabalho, são entidades empregadoras mas são também pólos dinamizadores na comunidade.
SOLIDARIEDADE - Mesmo no final do mandato, interrompido, o executivo anterior deixou no ar duas ideias polémicas. Uma delas chegou a ter alguma concretização com a entrega de equipamentos sociais do Estado a instituições de forma, diremos, atabalhoada…
Rui Cunha - Também aí as experiências devem ser cautelosas e localizadas. Em matéria de princípios eu não tenho nada contra o facto de um equipamento do Estado ser gerido através de um acordo, ou protocolo por uma IPSS, mas é preciso verificar muito bem as circunstâncias para que os interesse dos utentes, em primeiro lugar, das IPSS e do Estado, em segundo lugar, sejam salvaguardados. Pode ser testado mas não deve ser feito apenas porque fica mais barato ao Estado.
SOLIDARIEDADE - A outra ideia foi expressa pelo secretário de estado da Segurança Social e dizia que as IPSS deviam recorrer mais ao voluntariado, diminuindo, por essa via, a prestação económica do Estado…
Rui Cunha - Felizmente no nosso país há duas componentes do sistema que são complementares e têm funcionado muito bem. O voluntariado - e deve recordar-se que a maior parte dos dirigentes das IPSS são voluntários - e a componente do assalariado. Isto sempre existiu nas instituições e do meu ponto de vista é salutar que continue a existir. Deve continuar a existir num regime de complementaridade. O resto é disparate...
SOLIDARIEDADE - Já que estamos a falar de tendências, que dizer da municipalização da acção social? O que é que deve ser feito para evitar que algumas câmaras municipais decidam chamar a si a prestação de serviços sociais, muitas vezes duplicando a construção e a instalação de equipamentos e valências já existentes, implementadas pela sociedade civil?
Rui Cunha - Na minha opinião, e em consonância com aquilo que o PS apresentou ao eleitorado, o que é importante é a implementação da rede social. O que faz sentido é o funcionamento em rede. Se numa determinada localidade há carência de um determinado equipamento não se justifica que uma IPSS arranque com um equipamento, a câmara faça o mesmo e a misericórdia local decida fazer a mesma coisa. Isto não faz sentido, deve aprofundar-se o funcionamento em rede. Se em cada localidade, cada componente souber para onde deve encaminhar quando o caso não cabe nas suas competências, obter-se-á muito melhores serviços, melhor eficácia, melhor eficiência. Por muito generosas que sejam as ofertas elas não fazem sentido se não houver funcionamento em rede. As iniciativas devem estar de acordo com o levantamento das necessidades locais. Deve optimizar-se o funcionamento de cada resposta social de forma coordenada para não haver dispersão de meios, tentando chegar a uma economia de escala.
SOLIDARIEDADE - Uma das grandes preocupações de todos os partidos, expressa nos programas, é o financiamento do sistema social. Quais são as medidas que o governo socialista tem de pôr já em prática para evitar a falência do sistema?
Rui Cunha - De imediato deve ser feito um novo livro branco da Segurança Social. Em segundo lugar, a determinação da idade de reforma que deve acompanhar a esperança de vida. Quando na Europa se estipulou a idade de reforma nos 65 anos a esperança de vida cifrava-se nos 67 anos. Partia-se do princípio que se pagava dois anos de reforma. Como se sabe hoje em dia a perspectiva vai quase nos 80 anos e é preciso ir adaptando. Mas deve ser feito não de forma compulsiva, muito menos cortando direitos adquiridos, mas criando incentivos e introduzindo benefícios para aqueles que forem mais tarde para a aposentação e penalizando aqueles que querem ir mais cedo. É preciso combater uma tendência dos últimos anos que é a antecipação da reforma e as pré-reformas. Por outro lado, é preciso recuperar aquilo que o PS fez quando esteve no governo que é recuperar o fundo de capitalização. Como sabemos tudo depende dos ciclos económicos. Quando o ciclo é de crescimento há um maior afluxo de contribuições à segurança social; quando o ciclo é de recessão e de travagem o afluxo é menor. Nos ciclos positivos deve fazer-se uma capitalização maior. Foi o que fizemos durante o nosso governo, embora tivéssemos sido criticados provou-se que estávamos certos. O nosso sistema é distributivo: nós hoje, que trabalhamos, estamos a pagar as reformas da geração que nos antecedeu, mas a geração que aí vem terá que pagar as nossas reformas. Se o sistema falir somos nós os prejudicados. É preciso garantir uma almofada financeira.
SOLIDARIEDADE - A privatização dos fundos de pensões é admissível para o governo socialista?
Rui Cunha - A privatização não. Não significa que não possa haver a opção por sistemas complementares. Nós entendemos, ainda, que tem que haver um limite aos valores das reformas e esse limite é o vencimento do Presidente da República. As pessoas que recebem mais agora devem continuar a receber, mas os aumentos devem ser congelados. E, de futuro, o salário presidencial deve ser o limite superior.
SOLIDARIEDADE - Se houve medida que tenha ficado na memória dos portugueses, do último governo PS, foi o Rendimento Mínimo Garantido, entretanto transformado em Rendimento Social de Inserção. Este governo vai recuperar e manter a medida?
Rui Cunha - A filosofia que esteve subjacente à implementação do RMG foi a de inserção ou reinserção social. Noutros países da Europa a filosofia é linear: há o entendimento de que os cidadãos não podem viver abaixo de um determinado limiar e o Estado assegura essa prestação. Em Portugal o objectivo do RMG era recuperar o indivíduo para a vida activa, salvo nos casos de deficiência profunda, idosos, crianças em idade de não poderem trabalhar - neste caso combatendo o abandono escolar. Houve muitos casos de sucesso. É evidente que não há nenhuma prestação que não tenha desvios e fraude, mas o que se deve fazer é aumentar a fiscalização e estimular a participação dos tais parceiros que devem funcionar em rede. A propósito disso devo dizer que os técnicos queixam-
-se muito que correm de comissão em comissão e que chegam ao fim do dia cansados, participando em diversas e diferentes reuniões com as mesmas pessoas. É preciso que as várias comissões que tratam do RMG, da luta contra a pobreza, da toxicodependência, da sida, etc., é preciso que funcionem de uma forma articulada porque, no fundo, são as mesmas pessoas que correm de reunião para reunião. O tal funcionamento em rede… Quanto ao RMG, a medida em si é positiva e deve manter-se, melhorando o funcionamento, a aplicação e a fiscalização.
SOLIDARIEDADE - Em síntese, com o PS no governo o que é que vai mudar, no sector social, nos próximos tempos?
Rui Cunha - Tendo em conta a minha experiência e aquilo que me chegava do que foi a governação destes últimos três anos, devo dizer que, aquele diálogo e cooperação que havia com o governo do PS, abrandou muito. Mas, concretamente, se olharmos para o PIDACC destes últimos três anos vê-se que decresceu 65 por cento. Isto, independentemente da crise, representa um abandono desta área. Se virmos atentamente, no sector social foi onde aconteceu o maior decréscimo com o governo do PSD/CDS/PP. Há uma clara falta de sensibilidade do governo que cessou funções em relação às questões sociais que são fundamentais para o desenvolvimento do país. Se Portugal não apostar nos recursos humanos, emprego, formação profissional, não combate a pobreza, não combate a exclusão social, não consegue apoiar as famílias
SOLIDARIEDADE - Qual deve ser a prioridade deste governo?
Rui Cunha - Na situação em que estamos a prioridade é o emprego. Com emprego tudo se resolve. Tudo fica mais fácil com a família, os filhos, os idosos… Nesta situação conjuntural a prioridade é o emprego.
Data de introdução: 2005-04-06