JOSÉ FIGUEIREDO

Sobre a desigualdade - I

Porque não nos revoltamos contra os níveis crescentes de desigualdade? Porque aceitam sociedades democráticas distribuir rendimento e riqueza de forma tão desequilibrada?

Estando a esmagadora maioria da população e dos votantes do lado perdedor, porque não assistimos a movimentos de massas reivindicando alteração do status quo ou, pelo menos, a votações maciças em partidos que coloquem o tema da desigualdade na agenda?

Podem dizer-me que não é exactamente verdade que tenhamos assistido de forma passiva ao crescimento da desigualdade.

Não tivemos os movimentos “Occupy Wall Steet”? Ou os Indignados em Espanha? Não ganhou o Syriza, um partido radical de esquerda, as eleições na Grécia? Não estão por todo o lado a crescer movimentos populistas de contestação?

É possível! Contudo, talvez com excepção dos movimentos “Occupy”, trata-se, genericamente, mais de representações políticas de questões nacionais (situações de crise económica profunda) do que movimentos cuja agenda política se baseie directamente na luta contra desigualdade. Notar que, embora a desigualdade estivesse a crescer de forma alarmante um pouco por todo o lado antes da crise, em tempos de crescimento económico não vimos esses movimentos na rua.

Confesso-vos que não tenho uma explicação clara para esta complacência. Posso apenas partilhar convosco algumas explicações tentativas.

1. A distribuição pode ser mais desigual, contudo, até os menos afortunados estão um pouco melhor em termos absolutos.

O trabalhador de uma empresa cotada, em que o CEO ganha num mês o que ele pode aspirar a ganhar em toda a vida, pode achar que o pay-check do CEO é injusto. Contudo, se também os seus rendimentos estão a crescer, porquê revoltar-se?

É verdade que se olharmos para o rendimento de uma família mediana nos Estados Unidos (mais uma vez o lugar onde posso encontrar dados longos e fiáveis), verificamos que ele mais que duplicou entre 1950 e meados dos anos 80.

Contudo, também verificamos que, de meados dos anos 80 até agora (30 anos), o rendimento da família mediana americana pouco aumentou. Ora foi exactamente durante esse período, em que o rendimento das famílias medianas estagnou, que a desigualdade subiu de forma galopante.

Não creio por isso que o velho aforismo: “quando a maré sobe levanta todos os barcos ”, explique tudo ou sequer parte significativa do enigma.

2. Uma coisa é a desigualdade real e outra é a percebida

Existe um paradoxo americano. A verdade é que a sociedade americana é mais desigual que as sociedades europeias. Contudo, o apoio popular às políticas de redistribuição é menor na América que na Europa.

Aparentemente é um absurdo e não é fácil de explicar.

Um artigo da VOX remete-nos para algo, afinal muito simples, mas que esquecemos com alguma facilidade: por vezes, mais do que a situação real conta a percepção que temos dela.

O boneco seguinte mostra como a percepção da desigualdade é diferente na América e na Europa.

O que resulta é que os americanos, embora vivam numa sociedade extremamente desequilibrada, vêem-se a eles mesmos como uma sociedade de classe média.

Como se pode ver no quadro acima 54% dos alemães estão convencidos que vivem numa sociedade de tipo A ou B, onde a esmagadora maioria da população está nos escalões inferiores e com pouca gente no “meio”.

Poucos alemães (18,6%) estão convencidos que o seu país se aproxima do tipo 3, ou seja, uma sociedade onde a maioria está no meio e pouca gente nos escalões inferior e superior.

Mas a sociedade alemã é mesmo tipo 3.

Ou seja, enquanto na Europa, sociedades tipicamente classe média se vêm a si próprias como desiguais e, como tal, necessitando de redistribuição de rendimento via políticas públicas, nos Estados Unidos, onde a desigualdade é muito maior, há uma forte oposição a políticas redistributivas porque são percebidas como não necessárias e potencialmente mais causadoras de dano que de bem.

3. Os Media são dominados pelo poder do dinheiro. A narrativa que vende é a da complacência em relação á desigualdade.

Vivemos num mundo em que o espaço mediático está nas mãos do poder do dinheiro. As narrativas que passam são esmagadoramente favoráveis à manutenção do status quo o qual, obviamente, não é apresentado como injusto. Não só as teses contrárias têm dificuldade em passar como, pior do que isso, nem sequer o debate é aberto.

Claro que há excepções, claro que aqui ou ali o debate aflora. Mas o desequilíbrio de forças e de oportunidades entre os que defendem o actual estado de coisas (ou tentam provar que não é um problema ou que, ainda que o seja, é insolúvel) e os que o contestam é enorme.

Tenho para mim que não teria sido possível alterar a distribuição do rendimento e da riqueza nos últimos 30 anos, na dimensão em que esse processo ocorreu e com relativa paz social (e política) sem um forte adormecimento das opiniões públicas pela via da ideologia e pela via da comunicação. E creio que, nesse processo, os Media tiveram um papel relevante.

4. A esquerda democrática entregou os pontos

Desde a “terceira via” que a esquerda democrática deixou de ser verdadeira alternativa.

O combate político a uma sociedade injusta e desequilibrada foi substituído pelo combate à pobreza através de meios públicos. O labour de Tony Blair (ou o primeiro governo de José Sócrates em Portugal) teve sucessos razoáveis no combate à pobreza.

Mas enquanto combatiam a pobreza fechavam os olhos à sociedade extremamente injusta que estava a ser criada pela dinâmica económica. Na prática, desde que os impostos fossem pagos, era como se a acumulação de riqueza por uma pequena camada da sociedade fosse um tema politicamente irrelevante. Se a economia cresce, se os ricos pagam os impostos, para quê perturbar os mercados?

Lembrar que, na Alemanha, o processo de ajustamento da primeira década deste século, que, entre outras coisas, fez com que os salários reais nesse país praticamente não tenham crescido nos últimos 15 anos, foi desencadeado pelo SPD. Não foi a direita!

Obviamente não está em causa o mérito do combate à pobreza com políticas públicas. O que quero frisar é que o problema da desigualdade é de natureza diferente e requer opções políticas de fundo que vão muito para lá do uso de meios públicos para ajudar os mais pobres. Por mais mérito que isso tenha.

Curiosamente este desaparecimento em combate da esquerda democrática é, em boa parte, culpa dos economistas.

Um dia destes explico porque penso assim.

José Figueiredo, Economista

 

Data de introdução: 2015-05-07



















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