E Pur Si Muove. Esta frase terá dito entre dentes Galileo Galillei, em 1633, quando a Inquisição o obrigou a abjurar as suas teses heliocêntricas.
Provavelmente a frase nunca terá sido proferida e será tão só uma criação posterior para compor um pouco a imagem do sábio italiano a quem alguma tradição atribui um comportamento cobarde. O papa da altura, Urbano VIII, da poderosa família Barberini, era amigo e admirador de Galileo. Aparentemente o papa conhecia bem o mestre e terá dito aos esbirros do Santo Ofício que nem era preciso recorrer à tortura, mostrar as máquinas seria suficiente. E foi!…
Em todo o caso ainda hoje a frase é muito citada quando queremos representar uma situação em que a razão continua a ser vencida pela força bruta do poder, mas, no entanto, os sinais de mudança começam a ser visíveis.
Parece-me que, tomada nesse sentido, a frase supostamente proferida pelo sábio italiano e o fundador da ciência moderna, faz todo o sentido na querela que alguns economistas (e não só, felizmente) mantêm com os modernos modelos de remuneração dos líderes corporativos.
Esses modelos levaram a salários exorbitantes – não é impossível encontrar pacotes de 9 algarismos – pessoas que ganham num mês mais que o trabalhador médio das empresas pode ganhar numa vida inteira.
Esses salários não têm qualquer justificação segundo nenhum critério de racionalidade seja económica ou financeira (como tentei demonstrar em crónicas anteriores) ou em qualquer outro domínio mas, acima de tudo, e já seria o bastante, são imorais e, mais que não seja nesse puro plano, devem ser combatidos.
Os que como eu se opuseram (e opõem) a esta loucura do capitalismo encontraram sempre um obstáculo difícil de contestar e transpor. Na verdade estes salários são uma questão privada – são um assunto entre os acionistas das companhias e as respetivas administrações. Que temos nós que ver com isso?!
Em teoria, os primeiros prejudicados com as altas remunerações dos executivos são os acionistas. Quanto mais for para o bolso dos executivos menos sobra para resultados e menos pode ser distribuído como dividendos. Se é assim porque não se revoltam os acionistas?
Pode haver muitas explicações para a complacência dos acionistas.
Uma delas é que interesses de curto prazo entre executivos e alguns acionistas podem estar alinhados. Hoje em dia os acionistas das grandes companhias não têm laços afetivos com as empresas. Na maior parte dos casos trata-se de investidores institucionais que procuram rendimentos ou mais-valias (mais estas que aqueles) e no mais curto prazo possível.
Se alguém lhes apresenta um programa em que se fazem resultados a curto prazo que permitam aumentar as cotações e saídas rápidas com mais-valias gordas, porque não pagar principescamente a tais damas e cavalheiros? Qual o problema de pagar salários de dezenas de milhões de dólares por ano se as empresas aumentam de valor em biliões e os acionistas ganham ainda mais?
Claro que os ganhos de curto prazo não garantem benefícios a longo prazo e muitas vezes até são contraditórios os primeiros com os segundos. Mas neste mundo da velocidade vertiginosa quem quer saber do longo prazo? Não era Keynes que dizia que a longo prazo estamos todos mortos? Quem quer saber dos amanhãs afastados?
Por outro lado o ativismo acionista pode não ser fácil. Os acionistas que participam de facto na vida da sociedade são poucos e muitas vezes, esses poucos, estão próximos dos Conselhos de Administração e alinhados com os respetivos interesses. Organizar a maioria que poderia, eventualmente, opor-se não é fácil!
Contudo, também aqui, “E Pur Si Muove”. Aos poucos vamos vendo a repugnância pelos salários milionários a tomar forma quer no plano da ação política, quer no sítio onde faz mais sentido: nos acionistas!
No plano da ação política o país onde a questão foi levada mais longe foi a Suíça. Por lá um referendo nacional votou um projeto de lei que visava ligar os salários dos executivos aos salários dos trabalhadores das empresas. O mais alto dos salários dos executivos não poderia ultrapassar um determinado múltiplo dos salários mais baixos.
A iniciativa falhou, contudo, cerca de 1/3 dos eleitores votou a favor do projeto legislativo.
Na Califórnia chegou a ser debatida uma iniciativa legislativa que ligava as taxas de imposto a pagar pelas empresas à abertura do leque salarial – quanto maior fosse a dispersão dos salários, quanto mais os salários do topo se afastassem dos salários mais baixos, maior seria a taxa de imposto a pagar sobre os lucros. Também aqui a iniciativa legislativa não passou.
Porventura não podemos esperar grande coisa do lado da política. As grandes corporações têm muito dinheiro e podem intervir nestes processos nomeadamente através do medo. Na Suíça, por exemplo, as grandes corporações ameaçaram que mudavam as suas sedes para fora do país se a lei fosse aprovada…
Talvez possamos esperar mais do lado dos capitalistas – começam a ser visíveis alguns exemplos.
O fundo soberano da Noruega é um dos maiores investidores do mundo com ativos de 870 biliões de dólares, qualquer coisa como quase 5 vezes o PIB português. O fundo tem participações em boa parte das grandes corporações capitalistas a nível global. Até há pouco tempo o fundo era neutral em relação à questão dos salários dos executivos não lhe sendo conhecida nenhuma orientação ativa em relação ao tema.
Mas as coisas começam a mudar. Recentemente o fundo declarou que vai deixar de ser neutral em relação a este tema e, por exemplo, já votou contra o sistema de remuneração dos executivos da Anglo American, uma das gigantes mineiras a nível mundial.
Nas duas maiores petrolíferas da Europa, a BP e a Shell, os acionistas revoltaram-se contra os salários exorbitantes dos gestores de topo. Na verdade não é fácil perceber como empresas que têm os resultados a cair, com programas de despedimentos que envolvem dezenas de milhar de trabalhadores e, não obstante, propõem aumentos de remuneração chorudos para os executivos de topo.
Na Goldman Sachs ou no Deustche Bank a situação é similar. Ninguém percebe como empresas que viram as cotações a cair a pique, que valem hoje apenas uma fração dos respetivos valores de livro, que pagam menos dividendos ou dividendo nenhum, encontram argumentos para continuar a pagar cheques gordos aos executivos de topo.
Em França foi o estado, o maior acionista da Renault, que colocou em causa a remuneração do CEO. Na WPP, um dos gigantes mundiais da publicidade, os acionistas ficaram chocados com a proposta de vencimento do CEO da companhia.
Na Suíça é também o estado, enquanto acionista, que começa a tomar posição ativa no tema. Na Swisscom, por exemplo, a remuneração do CEO foi reduzida em mais de 70%.
Claro que sempre se pode dizer que a revolta dos acionistas é mais visível em sectores em crise (banca, petróleo, etc.) onde os lucros estão a cair e a remuneração dos acionistas a encolher. Estivessem os lucros a crescer à pazada, as cotações a subir e os dividendos a cair na conta em doses valentes e talvez não houvesse tanto barulho.
Talvez! Contudo convém lembrar que a revolta também ocorre noutros sectores e em empresas onde os dividendos têm sido poupados. Por outro lado, a questão começa a passar para a política (como acontece na Suíça ou em França) e, noutras geografias, como no Reino Unido, entrou no fórum onde pode ser mais efetiva: o domínio da discussão pública e sabemos como ela é influente nas terras de Sua Majestade.
Por lá, por exemplo, para as empresas cotadas passou a ser obrigatório não só revelar quanto ganham os executivos de topo como também revelar a relação entre os salários de topo e os salários medianos da companhia. Talvez ganhem vergonha!
Por último uma referência à Blackrock. Este nome pode não ser conhecido de muitos, contudo, é o maior investidor do mundo com ativos sob gestão de 4,7 triliões de dólares, um pedaço mais que o PIB da Alemanha.
Na última assembleia geral alguns acionistas fizeram votar uma proposta que comprometia a Blackrock na luta contra as remunerações incompreensíveis dos executivos das empresas onde a Blackrock investe. A proposta foi votada por um ínfima minoria do capital presente. Quixotesco, dirão! Talvez, mas há apenas alguns anos o simples aparecimento da proposta seria uma ousadia impensável.
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