SÍRIA

Maristas combatem sofrimento em Alepo

Espalhada por diversos pontos do mundo, a Congregação dos Irmãos Maristas tem uma missão na martirizada cidade de Alepo, os Maristas Azuis, onde tentam, por todas as formas, atenuar o sofrimento de uma população castigada há mais de quatro anos pela guerra.
Em Portugal, o Lar Marista de Ermesinde, instituição fundada por iniciativa da Província Portuguesa, atual Província Marista de Compostela, é uma das IPSS que, sob a égide da CNIS, irá acolher refugiados menores não-acompanhados, que dentro de poucos dias chegarão a Portugal.
Em permanente contacto com os seus irmãos Maristas Azuis, o Lar Marista de Ermesinde fez chegar ao SOLIDARIEDADE uma missiva enviada de Alepo, na qual o irmão Nabil Antaki dá uma imagem do que se passa na cidade mártir e dos vários projetos que a Missão desenvolve para melhorar, dentro do que é possível, a vida do alepinos.
É esse relato na primeira pessoa desde Alepo, enviado a 17 de setembro de 2016 para os irmãos de Ermesinde, que aqui agora se transcreve e que Nabil Antaki intitulou «O Mundo que nos rodeia. Revolta e compaixão (Carta de Alepo nº 27)».

«A trégua negociada entre russos e americanos entrou em vigor faz já cinco dias. Até agora, ela é muito respeitada. Os alepinos de confissão muçulmana puderam celebrar el Eid al Adha (festa do sacrifício) nas ruas e nos jardins públicos sem medo dos morteiros e das garrafas de gás cheias de pregos e explosivos que os rebeldes lançam sobre Alepo, desde há quatro anos e dois meses, produzindo todos os dias múltiplas vítimas. Até agora, não houve uma matança como, faz 70 dias, com motivo da festa do Fitr, quando os morteiros lançados sobre as zonas civis, nas ruas cheias de famílias em festa, fizeram dezenas de mortos, sobretudo crianças. Mas os alepinos estão alerta, são céticos quanto à observância da trégua, pois esta não se refere aos dois grupos reconhecidos como terroristas pela comunidade internacional, o Daesh e o Al-Nusra.
A situação tornou-se ultimamente muito complexa. Agora há uma internacionalização do conflito sobre o terreno. Por um lado, a Turquia, que, durante anos, apoiou os terroristas deixando-lhes transitar pelas suas fronteiras com as armas, tem-se convertido num ator direito sobre o terreno. O exército turco entrou na Síria (sem o acordo da Síria, que é um estado soberano, membro fundador da ONU) para, supostamente, combater o Daesh, mas é, sobretudo, para lutar contra as milícias curdas que controlam várias aldeias e cidades da franja fronteiriça, do lado sírio, do sul da Turquia. Agora sim, essas milícias são apoiadas, assessoradas e armadas pelos americanos que são, em princípio, os aliados da Turquia. Que confusão. Por outro lado, os americanos têm admitido que tinham uma base na Síria com membros das forças especiais do lado de Hassaké, ao leste da Síria. Enfim, fala-se muito na retoma das negociações, mas as posições permanecem inamovíveis.
Alepo, a nossa cidade, continua a sofrer. Os meios de comunicação ocidentais fizeram uma exposição mediática do conflito. Os alepinos renunciavam com muito gosto a essa fama. Eles estão a sofrer desde há mais de quatro anos e já têm vontade que este pesadelo termine. Estão indignados quando os meios de comunicação não falam dos sofrimentos dos civis de alguns bairros do Leste de Alepo controlado pelos rebeldes e os terroristas e que contam com 250.000 habitantes. O sofrimento do 1.500.000 de alepinos de Alepo ocidental mantêm-se em silêncio. Estão indignados pelas dezenas de granadas de morteiros, foguetes ou de garrafas de gás que caem cada dia sobre as zonas civis de Alepo sem que ninguém proteste. Estão indignados pela falta total de energia elétrica desde há muito tempo, as centrais elétricas estão no lado rebelde. Estão indignados pela falta total de água durante a onda de calor do verão (40 graus à sombra), obrigados a utilizar a água de 300 poços perfurados em plena cidade nos últimos dois anos. Estão indignados pelo bloqueio que sofrem a cada certo tempo e pelas carências que se seguem. Estão indignados de ver, cada vez que o exército sírio avança um pouco ou ganha uma batalha para aliviar o cerco que os terroristas impuseram a Alepo, os governos e os meios de comunicação a gritar “crime de lesa humanidade” e a pedir uma trégua para deter o avanço do exército sírio.
Os dramas, que vivemos ou vemos, são tão numerosos que sem cessar encontramo-nos indignados. (…) O projeto imobiliário “1070” compõe-se de dezenas de edifícios por terminar por causa da guerra, sem paredes, sem sanitários, só o chão e o teto. Estavam ocupados por centenas de famílias deslocadas. Abandonaram os seus apartamentos em julho de 2012, quando os rebeldes invadiram os seus bairros e refugiaram-se em Alepo sob o controlo do estado sírio. Tinham-se alojado primeiro nas escolas públicas e, a seguir, foram transferidas para a “1070”, onde se instalaram com lonas como paredes, bidões para a água e baldes para os sanitários. Faz um mês, “1070” tem sido o alvo, vários dias consecutivos, de disparos de morteiros e foguetes lançados pelos terroristas de Al-Nusra antes de invadir a zona. Esses deslocados, pela terceira vez, abandonaram os seus mortos e feridos e o pouco que conseguiram adquirir nos quatro anos de miséria para ir viver em tendas de campanha colocadas sobre o terreiro central do dispositivo. Revolta e compaixão.
Entre a revolta e a compaixão, nós, os maristas azuis, seguimos com os nossos programas em favor das famílias deslocadas e dos mais pobres: O programa “Os Maristas Azuis para os deslocados” segue distribuindo os cabazes de alimentos e medicamentos mensais a 850 famílias. Ajudamo-las também a pagar o preço da subscrição de “1 AMPERE” para que possam acender um par de lâmpadas à noite com os geradores privados. Damos-lhes uma vez por mês carne ou frango. Alugamos-lhes apartamentos para se alojarem. Uma vez mais este ano, no início do ano escolar, demos os materiais escolares a todas as crianças que vão à escola, além da ajuda para pagar os gastos escolares.
O projeto “Civis Feridos de Guerra” continua a curar, gratuitamente, civis de todas as religiões, feridos a bala ou de estilhaços, no hospital S. Louis, gerido pelas irmãs de S. Joseph da Aparição.
O “Projeto Médico dos Maristas Azuis” financia mais de 100 atos médicos por mês para ajudar os doentes que não têm os meios para pagar o custo de uma operação cirúrgica, uma hospitalização, um raio X ou até, às vezes, uma consulta ou exame de laboratório.
O projeto “Tenho Sede” continua a distribuir a água, de forma gratuita, às famílias de que somos responsáveis. As nossas quatro camionetas, providas de tanques, vão desde a manhã até a noite entre os poços e os apartamentos.
O projeto “Gota de Leite” distribui cada mês, a quase 3.000 crianças de dias até aos 10 anos, o leite suficiente para o mês.
Ao início do verão, habilitamos uma parte do nosso pátio para convertê-lo num jardim com baloiços, escorregas, etc…
Inaugurámos um Espaço-Verão de Férias onde as nossas famílias vão a passar cinco tardes por semana num lugar mais seguro que os seus bairros. As crianças brincam sob a vigilância das monitoras e os adultos passam uns momentos de ócio a jogar cartas, tric-trac ou simplesmente relaxando, tomando um café, um chá, um refresco ou pelando sementes.
As nossas duas carrinhas fazem a viagem de ida e volta entre o local e os bairros. Esta iniciativa trouxe a alegria a todas a pessoas e tem sido uma boa terapia anti stresse.
A nossa equipa de visita aos deslocados foi ampliada com vários voluntários, antigos maristas da família Champagnat. Visitam regularmente as famílias, os seus lares, mesmo quando vivem nos bairros periféricos mais perigosos como “1070”, para estabelecer laços de solidariedade, informar-se das suas necessidades e ajudar a resolvê-las.
Os nossos projetos pedagógicos vão por bom caminho. Os educadores (educadoras) dos dois projetos “Aprender a Crescer” e “Quero Aprender” reúnem-se, desde princípios de setembro, todas as manhãs para as sessões de formação e aprendizagem dos programas, à espera de um novo ano escolar. Vai a ser difícil devido ao número recorde de solicitações de admissão e às solicitações aceites embora o pouco espaço disponível. Todas as crianças de “Quero Aprender”, e que não iam à escola por diversas razões, conseguiram este verão o nível exigido pelo Ministério de Educação Nacional e estão a ponto de ingressar no ciclo escolar sem começar do zero. É um motivo de orgulho para as crianças, seus pais e para todos nós. “Skill School” segue reunindo adolescentes. O seu número atingiu os 75, que constitui o máximo da nossa capacidade.
O nosso Centro de Formação para Adultos, o “M.I.T.”, além dos períodos de três dias organizados desde há três anos várias vezes ao mês, vai inaugurar em poucos dias uma nova fórmula. Uma sessão de 100 horas num período de oito semanas, três tardes por semana, para permitir a participação das pessoas que trabalham. O tema é: “Como empreender o seu próprio projeto?”. Temos contratado os melhores peritos de Alepo para ajudar os adultos jovens a empreender e a realizar um projeto e assim ganharem a vida. Ensinaremos, de maneira prática, aos participantes como encontrar a ideia para um projeto, como realizá-lo, como avaliar o custo do produto, como fazer um orçamento, como elaborar um plano de ação, como obter um financiamento, como fazer o marketing e a venda. No fim do curso, os participantes apresentarão os seus projetos a um júri de peritos e ajudaremos no financiamento dos mais viáveis e melhores projetos.
O nosso projeto “Erradicação do Analfabetismo” concluiu o 1º período de sessões com 40 participantes. Todos foram apresentados ao exame do Ministério de Cultura e receberam o certificado que acredita que estão ao nível do 4º ano básico. Há que ver a felicidade destes adultos ao receber os seus certificados, todos orgulhosos por saber ler e escrever.
Continuamos a acompanhar as famílias, para as escutar, para lhes dar apoio psicológico, para compreender as suas necessidades, para lhes devolver a dignidade frequentemente burlada, para lhes dar um pouco de esperança e lhes fazer sentir que estamos com elas.
Indignados por tudo quanto estamos a viver, a ver, a ouvir e sentir. Sim, nós, os Maristas Azuis, estamos indignados. Não podemos aceitar o inaceitável.
A compaixão é um dos nossos valores. Partilhamos o sofrimento dos nossos irmãos e irmãs, a sua angústia, o seu desespero e os seus dramas.
A solidariedade é a nossa maneira de viver a caridade e o amor com eles e para eles».

 

Data de introdução: 2017-01-24



















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