A Comissão Europeia publicou um Livro Branco sobre o Futuro da Europa. Felizmente que, ao contrário do documento chamado dos 5 Presidentes, publicado em meados de 2015 e que ainda navegava nas águas turvas de “mais Europa”, o Livro Branco aceita que devemos pôr tudo em causa e debater mesmo os cenários mais radicais.
Infelizmente foi necessário o Brexit e o ascenso dos populismos, para que os cabeças-duras de Bruxelas percebessem que já não é mais possível a uma qualquer vanguarda voluntarista (por mais bem-intencionada que seja) empurrar o processo de integração ignorando o sentimento popular.
As causas da desilusão com a integração europeia são variadas. Algumas nem sequer são especificamente europeias. A distribuição assimétrica dos benefícios da globalização (aumento da desigualdade) e o fim do mito da mobilidade social ascendente (desigualdade incurável), ajudaram a eleger Donald Trump nos Estados Unidos tal como ajudam a engordar o pecúlio eleitoral de Geert Wilders, Marine Le Pen ou Beppe Grillo.
Contudo, existem fundamentos especificamente europeus. E o menor deles não é, com certeza, a percebida ineficácia das instituições europeias - o atual arranjo das instituições europeias simplesmente não funciona.
Ainda há pouco tempo o governo polaco, por meras razões de política partidária interna, tentou bloquear a recondução de Donald Tusk - cidadão polaco de uma linha política diversa da que está atualmente no poder na Polónia - como Presidente do Conselho Europeu, a qual não colocava objeções aos restantes estados membros.
Consta que foi necessário alguém lembrar à Polónia que é, por acaso, o maior recebedor de fundos europeus e não lhe fica bem, por motivos mesquinhos de baixa política caseira, prejudicar o bom funcionamento da União.
O tamanho do cheque terá convencido a Primeira-Ministra polaca a assentir na recondução do seu compatriota não sem antes resmungar que o dinheiro não compra tudo embora, pelo seu comportamento, pareça comprar muita coisa. Estamos todos cansados disto!
Depois há situações que são especificamente nacionais. Países como a França, que têm uma grande comunidade imigrante de integração problemática, são tentados por soluções de controlo de fronteiras que são incompatíveis com as regras europeias.
Mas, porventura, o caso mais complicado é a Itália.
A Itália pode não ter um problema de imigração com a dimensão e complexidade da França, da Bélgica ou da Alemanha. Mas está na linha da frente do drama dos imigrantes ilegais que tentam chegar à Europa nos frágeis barcos que partem das costas da Líbia. É a Itália que chegam (quando chegam) esses imigrantes e é Itália que tem de lidar com o seu acolhimento.
Mas o pior de tudo para os italianos é que vivem numa economia que praticamente estagnou nos últimos 20 anos.
Fonte: FMI WEO
O PIB italiano é hoje pouco maior que no início do milénio e o PIB per-capita é mesmo inferior ao desse período. Grosseiramente podemos dizer que os italianos estão hoje em média mais “pobres” do que na viragem do milénio.
É difícil não reparar na coincidência entre o início deste período de estagnação e a introdução do euro.
Não devemos por isso espantarmo-nos se os italianos são atualmente dos mais céticos em relação à moeda única. A diferença entre os apoiantes e os detratores ainda é positiva mas por uma margem muito pequena. Por outro lado, o movimento 5 estrelas, que está em primeiro lugar nas sondagens para uma eventual consulta legislativa, tem no seu programa um referendo sobre a manutenção da Itália na UEM. A Liga Norte e mais recentemente a Força Itália (de Sílvio Berlusconi) também apoiam o referendo.
Em França, embora Marine Le Pen não pareça ter hipótese de vencer na segunda volta das eleições presidenciais, a ameaça de uma consulta popular sobre a permanência da França no euro não pode ser descartada. De qualquer forma o apoio dos franceses ao euro está em mínimos históricos. Na Holanda respirámos de alívio com a derrota da extrema-direita mas não podemos esquecer que, apesar de tudo, os extremistas de direita são já um dos maiores partidos em termos eleitorais. Na Alemanha os Alternativos estão a crescer embora não pareçam, para já, uma ameaça séria.
Depois do Brexit e no meio deste ambiente de claro descrédito em relação às instituições europeias, seria ridículo voltarem a propor-nos como remédio “mais Europa” tal como a conhecemos. Seria como duplicar a dose de um medicamento com o qual o paciente se está a dar mal!
O livro branco sobre a integração europeia da autoria da Comissão, que está disponível para debate público, parece resistir à tendência das elites europeias para a fuga para a frente.
O documento propõe 5 cenários hipotéticos que vão desde regredir para um simples mercado único até formatos de aprofundamento da integração.
Creio que a disponibilidade para colocar e debater cenários radicais não é seguramente o menor dos méritos do documento. Na situação a que chegámos não podemos dar-nos ao luxo de excluir nada.
Sou de opinião que o mal estrutural (porventura insanável) do projeto do euro foi justamente encomendar um fato que devia servir a todos quando na verdade não servia a ninguém.
Seria dramático não reconhecer este erro e reproduzi-lo!
Não é possível uma União Europeia com uma arquitetura institucional única e que sirva para todos. Há países preparados para uma integração mais forte outros nem por isso. Nalguns casos pesa a economia (alguns dos países do euro não estavam preparados para uma integração monetária e cambial), noutros pesa um sentido de exclusivismo nacionalista que impede a alienação de parcelas de soberania – o caso mais evidente é o do Reino Unido.
O projeto do euro poderia não ter sido um fracasso se estivesse limitado a um núcleo duro de 5 ou 6 países aos quais outros se poderiam ir juntando à medida que ganhassem músculo económico e financeiro para tanto.
Para alguns países, porventura, o limite de integração é mesmo a participação numa simples união aduaneira, para outros pode comportar níveis elevados de integração económica e política.
As metáforas para isto podem variar: “europa a várias velocidades”, “europa à la carte”, etc. Contudo, embora possamos não gostar das metáforas, acredito que a União Europeia, como existe hoje, e se não for capaz de oferecer geometrias variáveis, não resistirá muito mais tempo.
O Brexit foi um sinal claro de que existem limites. Há fronteiras para a cedência de soberania que alguns povos não querem ultrapassar mesmo sob a ameaça de custos económicos significativos.
Podemos pensar que os cidadãos do Reino Unido votaram Brexit enganados, sem consciência da totalidade das consequências do seu voto. Talvez! A campanha do referendo foi tudo menos transparente. Os “Brexiters” mentiram com quantos dentes tinham e os “Remainers” agitaram todos os espantalhos que puderam. Contudo os Brexiters, ao ganharem, podem, sem querer, ter salvo a União Europeia.
Não há inqueritos válidos.