HENRIQUE RODRIGUES

Negócios privados e responsabilidades públicas

1 - No passado sábado, 30 de Junho, participei na cerimónia do descerramento de uma lápide, na Reitoria da Universidade do Porto, lembrando o papel das lutas estudantis, e também o da Academia do Porto, no derrube da ditadura de Salazar e Caetano.

Tratou-se de uma iniciativa do Conselho Geral da Universidade, por proposta do então estudante e activista da Academia, e hoje membro do seu Conselho Geral, José Pacheco Pereira, que o Presidente deste órgão, Alfredo José de Sousa, Provedor da Justiça durante o governo da troika e pai da actual Ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, conseguiu levar a bom (P)porto.

Apesar de estudar em Coimbra, participei em muitas iniciativas estudantis que ocorreram no Porto, no início da década de 70 do século passado, e aqui muitas vezes estive em manifestações fustigadas pela polícia e varridas pelos carros de água.

Apesar de já terem passado 43 anos sobre o derrube do anterior regime, é-me confortável ter a mandar nas polícias, como Ministra da Administração Interna, uma personalidade que fez dos direitos humanos o eixo do seu percurso profissional, nomeadamente no que toca aos assuntos relativos ao direito de asilo, às migrações e aos direitos dos estrangeiros em geral, numa identidade de missão com o papel que a CNIS, titular do Prémio dos Direitos Humanos da Assembleia da República, vem desempenhando nesse capítulo, designadamente no acolhimento de famílias e menores não acompanhados refugiados do Médio Oriente.

(No XIII Governo Constitucional - o 1º Governo do Engº António Guterres -, entre 1995 e 1997, foi Ministro da Administração Interna o Dr. Alberto Costa, também ele opositor ao Estado Novo, que, não obstante ser titular do Ministério respectivo, não se coibiu de se distanciar então expressamente das polícias que comandava. “Esta não é a minha polícia” – foi a sua expressão, que ficou célebre.

É certo que que tem havido, desde há muitos anos, um trabalho de formação das polícias, treinado mais a vertente da cidadania do que a da repressão, não sabendo eu se o ex-Ministro Alberto Costa formularia hoje o mesmo juízo de desvalor: mas, por mim, céptico relativamente a todos os poderes, acho que morrerei com a mesma prevenção que trago desde a juventude.)

2 – Não acompanho, pois, o desejo de certa imprensa, e de certa Oposição, que pretendem que seja a demissão da Ministra Constança Urbano de Sousa a pagar a expiação da dor e da cólera nacional com os efeitos devastadores do incêndio de Pedrógão Grande.

(Mais depressa deveria ser demitida uma boa parte do jornalismo que foi tratando da reportagem dessa mágoa nacional, numa exibição e aproveitamento voyeurístico e impúdico da dor e do luto.)

Tive ocasião, na última semana de Junho, de percorrer o IC 8, entre Castelo Branco e Condeixa, atravessando o território da catástrofe, e de ver com os meus próprios olhos quilómetros e quilómetros de uma paisagem espectral de floresta calcinada, sem sinal de vida nem esperança dela – e percebo, e acho legítimo, que, havendo responsabilidades, por acção ou omissão, de dirigentes ou serviços, estas mortes sem sentido reclamem punição.

Há que deixar apurar essas responsabilidades – mas só é de justiça punir quem deva ser punido.

E tal apuramento há-de ser escrupuloso e não deixar zonas de sombra.

Por exemplo: num sinal de competência que a mim próprio, céptico impenitente e crónico, me deixou assarapantado, a Polícia Judiciária descobriu, no meio de 300 quilómetros quadrados de extensão, aquela específica e singular árvore que, na versão inicial dos Serviços sobre a origem do fogo, fora atingida por um raio e havia constituído, por tal razão, a ignição inicial da catástrofe.

Foi-nos mesmo mostrada a fotografia dessa árvore, fendida a meio pelo raio destruidor.

Mais habituado à incompetência de tais entidades do que à respectiva competência, fiquei absolutamente deslumbrado com a rapidez e a minúcia da descoberta: como é que os conhecimentos de polícia científica conseguiam, em tão pouco tempo, e no meio da maior destruição, descobrir essa agulha no restolho do fogo?

Pois bem: não é que os jornais de hoje nos informam, pela voz autorizada do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, que não houve, naquela hora inicial e naquele local, raio nenhum!

Quem diz a verdade: a PJ ou o IPMA?

E quem deve ser sancionado, se nos mentiu?

3 – Uma coisa parece desde já certa, na medida em que é confessada pelos próprios responsáveis: o sistema de comunicações de emergência, o SIRESP, adjudicado aos amigos do costume – SLN (BPN), PT, Motorola - pelos governos do bloco central, não funciona em situações de emergência – para que foi concebido e criado.

Nunca percebi por que desígnio os nossos representantes eleitos, que vão sucessivamente governando este rincão e abanando a sua todavia escassa árvore das patacas, utilizam mais a sua imaginação prodigiosa para inventar negócios inúteis, com a única finalidade de deslocar para os amigos o que nos sugam em impostos, do que em afectar os poucos recursos nacionais para o desenvolvimento e a justiça.

O SIRESP, cuja existência o País ignorava, é um caso típico dessa inutilidade: trata-se de um sistema de comunicações alternativo para caso de catástrofes, concessionado a operadores privados, mas que tem a particular característica de não funcionar em caso de catástrofes – com a devida protecção jurídica no texto contratual, que exonera os operadores de responsabilidade, nessas específicas situações, que constituem o motivo do contrato.

A Senhora Ministra da Administração Interna ficaria credora da nossa eterna gratidão se pusesse em pantanas os negócios à volta dos incêndios e desse solidez ao interesse público nos contratos que tutela.

Se conseguir resistir à pressão mediática que pede a sua demissão, terá consigo a única condição de que precisa para pôr ordem na casa: o apoio dos cidadãos.

 

4 – Quer o tratamento do desenvolvimento dos incêndios na zona do Pinhal Interior, quer o espantoso roubo de material de guerra em Tancos, retiraram das primeiras páginas dos jornais as boas notícias relativas aos sucessos na economia e na execução orçamental.

“Ó cousas, todas vãs, todas mudaves/qual é tal coração que em vós confia?” – já ensinava Sá de Miranda, no século XVI.

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

 

Data de introdução: 2017-07-08



















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