JANEIRO 2018

Uma cultura muito nossa

1. Tendo especulado enfadonhamente sobre um caso de desvio em vários milhares com cumprimento genuinamente solidário e escrupulosamente exemplar, caso que até pode nem ser caso, alguma comunicação social pode ter estado a contrariar uma "cultura muito nossa" em que cada português se sente "guarda do seu irmão" e em que ninguém rejeita "fazer o que está ao seu alcance na construção coletiva" de um melhor devir para cada e para todos.
E quando se diz "cultura muito nossa" é porque, entre nós, a ação social direta desenvolvida pelas pessoas de cada localidade e da generalidade das localidades, que se organizam, se potencializam e se movimentam em favor das pessoas com deficiência, das suas crianças, dos seus jovens e dos seus idosos - e muito especialmente em favor dos que mais precisam - é muito anterior ao despertar do Estado para as suas responsabilidades sociais. Há capilaridade, caridade, cidadania, cooperação, gratuitidade, opção preferencial pelos mais carenciados, proximidade, solidariedade, subsidiariedade e voluntariado.
Quando o Estado despertou para o social, é certo - e muito bem - que reconheceu que o devia fazer como Estado moderno: conhecer, reconhecer e apoiar quem já o fazia, coresponsabilizar-se nos caminhos a endireitar e nas metas a definir, coordenar, regular e velar pelo cumprimento responsável e rigoroso e prevenir suprindo para que ninguém ficasse para trás e para que fosse assegurada a igualdade de oportunidades e a universalidade dos direitos. Nesse sentido, em 19 de dezembro de 1996, foi assinado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, subscrito pelo então Primeiro-Ministro (Engº António Guterres), pelos presidentes da Associação Nacional dos Municípios e da Associação Nacional das Freguesias e pelos três presidentes das organizações representativas do Sector Social Solidário (União das Instituições Particulares de Solidariedade Social / CNIS, União das Misericórdias e União das Mutualidades).
Hoje pode afirmar-se que, muito especialmente na área da proteção social, Portugal é exemplo ímpar na Europa: os acontecimentos recentes da crise que se quer ver superada bem o confirmam e destacam-nos preferencialmente. Porque a eventual subordinação a um Estado providencialista, mas eventualmente ineficaz e pesado, foi superada por uma sociedade verdadeiramente comprometida, democrática, envolvida e responsável.
E todos ficamos a lucrar: mais inovação e melhor qualidade, mais respostas sociais, muito mais emprego, muito mais pessoas empenhadas no bem comum e muitíssimas mais pessoas apoiadas na construção do seu devir...
E, não se duvide: também maior moderação, menor alijamento de responsabilidades e muito menores custos para um Estado que, sem se idealizar mínimo, sempre deve proteger a sua dimensão.
Inverter este percurso é não saber ler a história e não querer segurar o futuro...

2. Também alguma comunicação social - e não só - parecia ignorar a opção preferencial pelo voluntariado no exercício dos titulares dos órgãos sociais das IPSS. Assim, impõe-se, desse logo, lembrar que, até à publicação do Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de Novembro, isto é, seguindo a versão primitiva do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro – que aprovou o chamado Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social -, já vigorava o princípio da regra da gratuitidade do mandato dos titulares dos órgãos sociais das IPSS. Mas também esse princípio já previa a possibilidade excecional de tal exercício ser remunerado, nos termos do artº 18º, 2 do referido Estatuto – com a circunstância de aí não ser estabelecido qualquer limite a essa remuneração.
No atual regime, em vigor desde Novembro de 2014, mantém-se o princípio da gratuitidade do mandato e mantém-se a exceção – embora de modo mais restritivo, na medida em que agora tal possibilidade tem o limite de 4 IAS (Indexante dos Apoio Sociais = 428,90€ a partir de janeiro deste ano).
Sendo o voluntariado a grande realidade vigente e preferida, não deixa de ser oportuno acautelar dedicações com exclusividade e sem outros rendimentos e prevenir a necessária renovação e o conveniente rejuvenescimento dos órgãos sociais das Instituições de Solidariedade.

3. Na ressaca do episódio, não tem faltado, em meios antecipadamente hostis ao papel que a Constituição e a Lei conferem às IPSS no nosso País, quem venha defendendo que o Estado coloque um elemento seu nas Direções das Instituições, ou um fiscal à porta de cada uma destas.
Trata-se de quem não tem memória de quanto custou o exercício da liberdade de associação como grande conquista do 25 de Abril, estruturante do regime democrático, e que pretende restaurar os hábitos do tempo da ditadura – em que o exercício do direito de associação dependia da autorização, dos humores e da vigilância das autoridades. Ou, com isso, talvez nefastamente se queira criar uns quantos lugares para as respetivas "famílias ideológicas"... 
Ou se pretenda voltar ao regime do Código Administrativo, de Marcello Caetano, que permitia, com efeito, que o Governo demitisse os órgãos sociais das então chamadas Instituições Particulares de Assistência e para elas nomeasse comissões administrativas – mas que acabou em 1979.
E que é para não voltar.

Lino Maia

 

Data de introdução: 2018-01-05



















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