HENRIQUE RODRIGUES, ADVOGADO

Ó da guarda, quem nos guarda?

1 – Os jornais noticiaram a publicação, há alguns dias, do Relatório do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT), do Conselho da Europa, em resultado da visita que realizou a Portugal, entre 27 de Setembro e 7 de Outubro de 2016, tendo concluído, como relata o Expresso de sábado passado, além da consabida sobrelotação das prisões, pela existência de maus tratos e condições degradantes, configurando, nalguns casos, “tratamento desumano” dos presos.
Respigando, das respostas dadas na entrevista concedida ao Expresso, a esse propósito, pelo Dr. Celso Manata, Director-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, o que terão sido alguns dos comportamentos assacados, nesse Relatório do CPT, às autoridades prisionais, retira-se a conclusão de que o Relatório do Conselho da Europa ficou com a convicção da prática, entre outras, das chamadas “agressões de boas-vindas”, referenciado mesmo a existência de uma sala de espera do Estabelecimento Prisional de Lisboa “onde os guardas agrediam os reclusos”.
Por sua vez, o Público de há dias refere igualmente declarações da advogada Julia Kozma, responsável pela Delegação do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa que visitou o nosso País, afirmando que “Portugal está no topo dos países da Europa Ocidental com o maior número de casos de violência policial”.
Prossegue o Público que “o comité … lamenta “a ausência” de “consciência” pela parte do Ministério da Administração Interna (MAI) de que existe um alto risco de maus tratos pela Policia de Segurança Pública ou pela GNR. “Pensa que o facto de existir a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) é suficiente", mas “isto é algo estrutural e sistemático, a solução tem que vir do MAI”.
Por sua vez, na entrevista ao Expresso, o Dr. Celso Manata, não obstante procurar dar nota de melhorias no que toca ao tratamento dos presos e confessar que, por falta de provas, a grande maioria dos inquéritos não resulta em condenações dos agressores, não deixa de frisar que sabe que, “mesmo não conseguindo provar o que nos dizem, devemos partir do princípio de que pode ter acontecido …”
No mesmo sentido, há poucos meses, o Ministério Público acusou 18 polícias da Esquadra de Alfragide, também por práticas de tortura e tratamentos desumanos, cruéis e com prazer em causar sofrimento, relativamente a um grupo de jovens, que, presumivelmente agredidos, vieram a ser eles os acusados pela Polícia como agressores, com falsificação dos autos pelos polícias – segundo a mesma acusação.

2 - É por estas e por outras como estas que o nosso País não goza de boa fama nas instâncias europeias civilizadas, no que toca à promoção e protecção dos direitos humanos, principalmente dos grupos minoritários ou mais desfavorecidos ou expostos.
E não se pode dizer que se trata de fenómenos recentes.
Se percorrermos a História de Portugal, seja de trás para a frente, seja da frente para trás, a maior parte do tempo os portugueses sofreram verdadeiros tratos de polé por parte das autoridades, de forma iníqua ou arbitrária, tendo Portugal coexistido longamente com práticas e sistemas autoritários e opressores: no século XX, não fugimos à vaga dos fascismos na Europa, aguentando uma ditadura da mediocridade durante 48 anos, sofrendo igualmente as ofensivas e execuções sumárias da Guarda Municipal e das milícias partidárias durante a 1ª República; no início do século XIX, com D. Miguel, eram também o terror, a enxovia ou a forca que mantinham os povos com rédea curta; no século XVIII, o Marquês de Pombal e o Intendente Pina Manique deixaram igualmente um rasto de ferocidade na perseguição e extermínio dos inimigos, mesmo que imaginários; nos séculos XVI a XVIII, a Inquisição foi queimando, em vagas de sucessivos autos de fé, livros, efígies e hereges, reais ou inventados, a troco de denúncias; no século XV, D. João II matava, pela sua própria mão, o cunhado e primo.
Este excurso histórico poderia ser acompanhado quase pari passu com outro, sobreposto, sobre o grau de respeito do Estado pelas liberdades dos súbditos ou dos cidadãos, consoante a época.
Na verdade, também não temos muito de que nos orgulhar do nosso passado, sob este ponto de vista – em que, dos últimos seis séculos de História, só durante a Monarquia liberal, entre 1836 e 1910, e agora, nos mais recentes 44 anos, temos um ar mais limpo para respirar desafogadamente.

3 – Claro que as elites mais civilizadas ou com uma formação democrática mais sólida pressentem com mais vigor a ameaça que o autoritarismo ou o exercício discricionário do poder constituem para a nossa vida colectiva e para os direitos civis.
Como escreveu Lord Acton, “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente.”
Já no 1º Governo de António Guterres, Alberto Costa, então Ministro da Administração Interna, nos alertava para a pouca preparação das polícias no que toca aos direitos humanos e ao respeito pelos cidadãos em geral e para a necessidade de mudar o respectivo figurino – “Esta não é a minha polícia”, como então proclamou.
E a propósito do Relatório do CPT, a que venho aludindo, o próprio MAI, segundo o Público, garante que "a formação das polícias incorpora a prioridade dada aos direitos humanos e firme oposição a quaisquer práticas xenófobas ou racistas, contribuindo para a boa avaliação de Portugal como país inclusivo e tolerante" e que "as violações à lei são investigadas pelas próprias forças de segurança, pela IGAI e transmitidas de imediato ao Ministério Público".
E também o Dr. Celso Manata, na entrevista ao Expresso sobre o tema, salienta que, mal chegou à Direcção-Geral que dirige, instaurou “tolerância zero aos maus tratos a reclusos e também à corrupção e ao tráfico de droga e telemóveis”, e que, desde 2006 a 2017 foram demitidos 13 elementos da guarda … ao todo foram sancionados 119”; mas também que, numa paráfrase da célebre expressão de Alberto Costa, “Temos de mudar a cultura da organização e agir junto dos guardas que lidam com isso todos os dias.”
Mas, sendo certo que muito se progrediu nos planos de formação dos corpos policiais, desse Governo de Guterres, já lá vão mais de 20 anos, até hoje, o certo é que continuamos no lado errado do ranking.

4 – A pergunta que fica é esta: e, enquanto não “mudar a cultura das organizações” (para ir buscar a expressão ao Dr. Celso Manata), como proteger os cidadãos do arbítrio de quem exerce poderes de autoridade?
Aliás, o que fica dito sobre as polícias vale, mutatis mutandis, para todas as forças ou órgãos que disponham de tais poderes: como impedir eficazmente o arbítrio, como impor uma cultura assente no respeito pelos direitos, ao invés da suspeição como princípio e da devassa como sistema, como exigir o primado da lei, em vez da arrogância do palpite ou do “achismo”, erigido em norma jurídica?
Como diz o Comité para a Prevenção da Tortura, não basta a acção de uma Inspecção-Geral de um qualquer Ministério, que, contaminada por uma irmandade corporativa, não tem a distância que permita um juízo justo.
Mas os Tribunais tardam em decidir; e quantas vezes, como diz o Dr. Celso Manata, as ilegalidades foram cometidas pelas autoridades, mas não se conseguem provar...?
E os danos, na fama, na vontade, ou na honra, ficam sem castigo…
É preciso inventar novas fórmulas, que garantam a legítima e eficaz defesa do arbítrio e da agressão de quem detém autoridade – e vontade política para legislar nesse sentido.
Comecemos por casa e pela tutela – “cadáver adiado que procria”, como dizia o Pessoa. 

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2018-03-09



















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