A cimeira europeia de 28/29 de Junho apresentava-se com uma ambição invulgar. Do menu constavam as migrações, o Brexit e, como “pièce de résistance”, a reforma da zona euro (UEM). Chegou a falar-se da “mãe de todas as cimeiras”.
Contudo, este é, desgraçadamente, um dos casos em que os resultados são inversamente proporcionais à ambição. Por junto tivemos uma lista de banalidades sobre o Brexit, um falso acordo sobre as migrações e meia dúzia de linhas sobre a reforma da UEM.
Creio que para ordenar o nosso pensamento sobre a zona euro deveríamos colocar três questões:
O euro, a UEM, têm conserto? São reformáveis? Ou, pelo contrário, são um cadáver adiado à espera de um final turbulento?
Se a resposta a 1 for sim, a reforma da UEM é necessária?
Se possível e necessária, por onde ir?
Em relação a 1, eu que sou um confesso incréu em relação ao projeto do euro, deveria responder não! Considero o euro um erro colossal, uma utopia sempre em risco de virar distopia ou, em linguagem mais chã, um sonho que pode, a todo o momento, tornar-se pesadelo.
Costumo colocar dois adjetivos ao euro: maldito e irreformável. Mantenho o primeiro, sobre o segundo começo a ter dúvidas.
O meu pressuposto de irreformabilidade repousava na ideia de que uma moeda moderna, do tempo do “fiat money”, criado a partir do éter e com respaldo apenas no crédito do soberano, implicava união política e integração fiscal.
Ora todos sabemos que a união política é impossível porque os povos europeus a não querem (eu também não!) e a integração fiscal é repudiada pelos países potencialmente contribuintes com a Alemanha à cabeça.
Irreformável, portanto?
A minha convicção negativa em relação a este ponto está um pedaço abalada desde que li um documento do CEPR (Centre For Economic Policy Research) que foi preparado por um grupo de catorze economistas franceses e alemães, gente da melhor proveniência (algumas das melhores universidades e institutos deste vasto mundo) e de garantida independência. Não passei de incréu a convertido, mas confesso que começo a ter dúvidas.
Acreditando que o euro é reformável a resposta à questão 2 é claramente sim. A reforma da zona euro é necessária por uma mera questão de sobrevivência. De facto, é tudo menos garantido que a União Económica e Monetária (UEM), tal como existe hoje, resista à próxima crise financeira.
Claro que se pode sempre dizer que quem resistiu à crise de 2008/2009 e à crise de dívida soberana que começou em 2010 (e ainda não está resolvida - ver o caso de Itália), resiste a tudo.
Não seria tão otimista.
No meu ponto de vista há três nuances que podem não estar disponíveis na próxima crise.
Desde logo não é garantido que possamos, mais uma vez, lançar mão a soluções ad hoc em função do curso dos acontecimentos – a tolerância a soluções casuísticas será muito menor no próximo episódio.
Depois é tudo menos garantido que os interesses (e os dirigentes políticos) da França e da Alemanha estejam alinhados quase na perfeição quando chegar a próxima tormenta. Nem Angela Merkel nem Nicholas Sarkozy vão estar por lá nessa altura.
Finalmente, não vamos ter Mario Draghi à frente do BCE. Não vou ao ponto de dizer que foi Mario Draghi e a famosa declaração de Agosto de 2012 - “whatever it takes” - que salvou o euro. O euro foi salvo por três triliões de razões, tantas quantos os euros que o BCE investiu em compra de títulos de dívida, sobretudo dívida soberana.
Mas seria imprudente menorizar o papel de Mario Draghi e ele, seguramente, não vai estar ao leme no próximo abalo.
Finalmente, a questão de por onde ir.
Como sempre podemos colocar versões minimalistas ou mais ambiciosas.
Os incréus, e aqueles que, como eu, pelo menos pretendem manter uma dose de razoável ceticismo, tendem a defender uma versão curta: concentrar os esforços na integração bancária e dos mercados de capitais, conferindo à integração fiscal e à reforma institucional um papel secundário.
O nosso argumento é simples: a integração financeira e dos mercados de capitais parece exequível (ainda que difícil), num quadro político realista, a integração fiscal e a reforma institucional são sonhos bonitos, mas irrealizáveis.
Contudo, o documento dos economistas franceses parece demonstrar que incluir o edifício todo na reforma não é uma questão de ambição, de, eventualmente, mais olhos que barriga – simplesmente sem o edifício todo a coisa não funciona.
Dando de barato que só uma reforma global pode funcionar, resta um círculo para quadrar: como reconciliar a visão alemã com a visão francesa!
Na verdade, a reforma da zona euro sempre oscilou entre duas perspetivas, tradicionalmente vistas como irreconciliáveis: a mitigação e a prevenção das crises.
A perspetiva da mitigação é sobretudo francesa e sulista (“carpe diem”), a da prevenção é mais germânica e nórdica (os dias de sol não duram sempre…). A primeira foca nos mecanismos e nos arranjos institucionais para lidar com as crises, a segunda foca na disciplina orçamental e nas reformas para evitar os sobressaltos.
O politicamente correto pode toldar-nos a vista e o pensamento. Quando o que está pela frente é algo de tão complexo (e arriscado) como reformar a UEM seria insensato ignorar as diferenças reais de perspetiva que distinguem povos e culturas - a metáfora infeliz da aguardente e mulheres, da autoria daquele senhor holandês com um nome impronunciável, não saiu do vácuo. Nem, tampouco, estas dissonâncias cognitivas são de agora.
A Europa do centro e norte não é melhor nem pior que a Europa do Sul – é diferente e todo o esforço de reforma que não parta dessa constatação estará condenado ao fracasso.
A França, pela voz de Emmanuel Macron, pretendia criar uma estrutura supranacional com capacidade fiscal e financeira para funcionar como instrumento de estabilização da UEM – um orçamento, um tesouro, um ministro das finanças e um ministro da economia para a zona euro.
A Alemanha tem uma perspetiva mais prudente.
Orçamento comum? Talvez! Mas não como instrumento de gestão dos ciclos: para tal seria necessário um orçamento gigantesco e, provavelmente, uma estrutura de transferências fiscais permanentes. Nem pensar!
Orçamento comum sim, mas pequeno e destinado a apoiar o investimento nos países com mais dificuldade em agarrar o futuro, por exemplo, nas áreas da digitalização, inteligência artificial e quejandos.
Então como lidar com os países sujeitos a choques assimétricos violentos? Seguramente não com orçamento comum. A proposta alemã é transformar o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM) numa espécie de Fundo Monetário Europeu que pode emprestar a quem está em dificuldades.
Mas serão empréstimos para pagar e só para quem se sujeitar a programas de estabilização, provavelmente duríssimos à moda do FMI (ou pior!).
Qual das duas visões vai triunfar? Ainda não sabemos – nada de essencial ficou decidido na cimeira. Por junto o comunicado final refere dois passos concretos: a) -aprovação do início das negociações que poderão (!) levar ao sistema unificado de seguro dos depósitos; b) - o ESM servirá de respaldo financeiro (se necessário) ao Fundo de Resolução Bancária.
Ambos os passos são essenciais para completar a união bancária e são bem-vindos. Mas não são suficientes sequer para completar uma verdadeira união bancária e, segundo os sábios franceses e alemães, mesmo uma verdadeira e efetiva união bancária seria sempre curta.
Voltaremos ao tema.
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