JOSÉ FIGUEIREDO (ECONOMISTA)

POPULISTAS E COMÉRCIO INTERNACIONAL: A necessidade de rever as regras

Donald Trump é definitivamente um homem perigoso.

Trata-se de alguém mentalmente instável, arrogante e narcisista qualidades que combina com uma imensa ignorância.

Como explicar então a sua vitória eleitoral e a aparente popularidade que continua a ter na sua base de apoio?

A verdade é que, no meio de toda aquela balbúrdia intelectual, política e administrativa, a extrema direita populista tem um ponto – toca na corda sensível de uma camada importante da população, em termos grosseiros e simplistas a camada que perdeu com a globalização.

Sabemos como essa camada se estratifica segundo níveis de escolaridade (intelectuais versus iletrados), idade (jovens versus idosos), localização geográfica (grande cidade versus pequenas cidades e campo), emprego (empregos tecnológicos ou criativos bem remunerados versus empregos mal pagos nos serviços), etc.

Em bom rigor nada disto é novo, estas oposições sempre existiram.

O que pode ter mudado?

Creio que duas coisas:

  1. O grande consenso que juntou durante décadas o centro direita e o centro esquerda e que dava como função do Estado amenizar as velhas fraturas acima referidas deixou de funcionar. No mundo anglo-saxónico a coisa começou a virar com a revolução neoliberal de Reagan e Thatcher (anos 80), na Alemanha, por exemplo, isso veio muito mais tarde com as reformas do mundo do trabalho do início deste milénio.

  2. A narrativa de que a liberalização do comércio internacional faria todos mais prósperos (é isso que dizem os modelos dos economistas) começou a ficar em causa e, curiosamente, quer no mundo desenvolvido quer nos países emergentes. Onde todos ganhávamos agora, aparentemente, todos perdemos.

Não se conclua que os modelos dos economistas estão errados. Eu que os estudei posso garantir-vos que resistem ao mais fino exame lógico. O problema é que, como nenhum economista sério ignora, não só os pressupostos dos modelos teóricos não são realistas (o mundo é muito mais complexo que o mais complexo dos modelos) como, por outro lado, os custos de fricção podem ser muito mais altos do que se imaginava.

Os modelos para funcionarem bem, entre outras coisas implicam que ninguém faça batota ou, pelo menos, que ninguém faça batota sistematicamente.

A verdade é que, se quisermos ser honestos, nesta matéria de comércio internacional, todos fazemos um pouco de batota, contudo, o problema aparece quando temos um país de dimensão significativa, a segunda economia do mundo, a fazer batota por sistema. Refiro-me obviamente à China.

Notar que também aqui Donald Trump não descobriu nada. A administração de Barack Obama tinha plena consciência do problema. O que a distinguia da abordagem de Trump era a estratégia. Trump trata o assunto como sabe, ou seja, à porrada, a administração Obama preconizava uma abordagem multilateral. O grande objetivo da parceria para o Pacífico (TPP) era, nem mais nem menos, que “amarrar” a China a um acordo de comércio multilateral onde a batota seria muito mais difícil.

Não podemos saber qual será o grau de sucesso da estratégica de Trump para lidar com o problema da China (problema real, diga-se). Elevado? Reduzido? Ignoro.

Também nunca saberemos comparar com a alternativa. Entre o bullying de Trump e a estratégia florentina de Obama o que daria melhor resultado? Ignoro, mais uma vez.

Uma coisa, contudo, podemos dar por clara: as atuais regras do comércio internacional já não funcionam. Sabemos a este respeito um par de coisas: desde logo que é possível fazer batota e batota sistemática e, por outro lado, que as atuais regras não são aceites pelas opiniões públicas de um lado e doutro da linha que divide ricos e pobres. As queixas que ouvíamos da parte dos países mais pobres em relação às regras de comércio, ouvimo-las agora também do lado de cá, isto é, nos países ricos.

O que simplesmente nos conduz à óbvia conclusão de que necessitamos de rever as regras de modo a acomodar as imensas alterações que se verificaram no mundo nas últimas décadas das quais a menor não é, com certeza, o ascenso da China a potência com pretensões globais.

Não sendo um especialista na matéria não sei dizer-vos que regras serão essas, no entanto, consigo visualizar umas quantas linhas de força:

Um eventual novo regime de comércio tem de reconhecer que a geração de valor vem hoje muito mais da propriedade intelectual que de ativos físicos puros e duros. A maiores companhias do mundo atual (Apple, Amazon, Facebook, Google, Alibaba, Tencent) não se distinguem por ter fábricas gigantescas, por consumirem enormes quantidades de capital físico (edifícios, máquinas, etc.) mas por serem detentoras de propriedade intelectual (marcas, sistemas, etc.) de enorme valor. A proteção dessa propriedade intelectual é um dos pontos mais sensíveis nas disputas comerciais hoje em dia. Os americanos e europeus queixam-se (e com razão) de práticas por parte do governo da China que, em última análise, podem ser classificadas como roubo de propriedade intelectual. Por exemplo, é frequente o governo chinês forçar a transferência de tecnologia a empresas que queiram instalar-se na China. Muitas das aquisições de empresas americanas e europeias por entidades chinesas destinam-se a comprar tecnologia sensível. Ou muito me engano ou o novo regime de comércio internacional deverá ter um capítulo extenso sobre o tema das patentes.

Entre as mais nocivas consequências negativas do atual regime de comércio estão a concentração corporativa (em muitos países quase metade das exportações está concentrada em cerca de 10 empresas) e a concentração regional (regiões ganhadoras – em geral as grandes cidades cosmopolitas e regiões perdedoras – campo e pequenas cidades).

Sabendo que o comércio livre tenderá a exacerbar estas tendências, um eventual novo regime de comércio internacional deve dar possibilidade aos estados de, através de políticas públicas, contrabalançar estes efeitos centrípetos.

No fundo trata-se de reconhecer que o comércio livre, entregue a si mesmo, gera necessariamente perdedores mesmo quando no agregado se contabilizam ganhos e que é obrigação dos estados proteger os mais fracos.

Sabemos como aqui caminhamos por uma vereda estreita e perigosa - podemos estar a abrir a porta ao protecionismo.

Contudo, a alternativa, ou seja, o que temos, também já provou que não conduz a resultados aceitáveis. Brexit, Trump, Itália e agora o Brasil entregue a um  fascista deveriam ser suficientes para nos fazer mudar de vida.

 

Data de introdução: 2018-11-09



















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