É muito mais fácil assumir liberdade intelectual quando não temos que tomar decisões e não temos contas para pagar. A necessidade de tomar decisões muda-nos, muda o ângulo pelo qual vemos o mundo e muda o nosso comportamento.
A história está cheia de casos que ilustram esta realidade.
Segundo a obra imortal de William Shakespeare (totalmente ficcional), o futuro rei Henrique V era, na sua juventude, um folião incorrigível na companhia de Sir John Falstaff. Frequentavam a Boar’s Head Inn, um misto de taverna e bordel e viviam de dinheiro emprestado ou roubado.
No entanto, quando subiu ao trono pela morte do pai, Henrique repudiou John Falstaff e o grupo de juventude e transformou-se num rei prudente que terá governado com justiça e sabedoria.
Para quem esteja interessado existe uma versão em DVD do Falstaff de Shakespeare encenada e interpretada por Orson Welles que é uma obra prima absoluta. A amante de Falstaff é interpretada por Jeanne Morreau, essa mulher estranha que foi perseguida pela beleza até morrer. Não conheço outra mulher que tenha envelhecido tão bem, que tenha tido em cada momento a beleza que a idade recomenda.
Ocorreu-me este pensamento a propósito de um trabalho do FMI sobre a relevância dos deficits orçamentais da autoria do Dr. Vitor Gaspar, ex-ministro das finanças do governo de Portugal. Pode ser consultado no blog pessoal do Dr. Vitor Gaspar alojado na página web do FMI.
Na sua incarnação como ministro das finanças Vitor Gaspar defendeu contra tudo e contra todos (mesmo no interior do governo de então) a ortodoxia orçamental e a necessidade de controlar o deficit ainda que à custa de uma recessão brutal.
Entretanto Vitor Gaspar rumou ao FMI e agora, que não tem de passar cheques nem pagar as contas do estado, ei-lo que desabrocha na sua qualidade de intelectual capaz de pensar o mundo e de o pensar de forma heterodoxa ou, como se diz agora, fora da caixa.
Vitor Gaspar vem dizer-nos que isso do deficit do estado não interessa por aí além, o que interessa é o balanço do estado, isto é, a diferença entre o que o estado possui e o que o estado deve, ou seja, o vernacular deve e haver do estado.
Em geral pensamos no deve do estado apenas em termos da dívida pública. Por exemplo, dizemos que o estado português está muito endividado porque a dívida pública equivale a +/- 125% do PIB (felizmente a descer nos últimos anos)
Contudo, a dívida pública representa tipicamente bem menos de metade das responsabilidades dos estados. Em cima da dívida pública é preciso contar com dívidas de entidades públicas (empresas públicas, por exemplo) e, nomeadamente, com a responsabilidade pelas pensões futuras devidamente atualizadas.
Em Portugal as responsabilidades por pensões futuras, atualizadas para hoje, valem mais do que a dívida pública (134% do PIB).
Do lado do haver o estado tipicamente possui ativos físicos relevantes (infraestruturas, recursos naturais, etc.), mas também ativos financeiros (por exemplo, o fundo de capitalização da segurança social)
Se focarmos nesta perspetiva de deve e haver, o estado português tem o pior balanço entre os estados para os quais é possível fazer esta conta com um mínimo de rigor.
O estado português tem responsabilidades de 395,3 % do PIB e ativos de 259,9%, ou seja, tem uma riqueza líquida negativa de 135,4% do PIB.
Próximo de nós, só mesmo o Reino Unido onde a riqueza líquida negativa ascende a 125,3%.
O Japão é um caso curioso pois que embora tenha o maior ratio do mundo em termos de dívida/PIB, acaba por ter um balanço do estado praticamente equilibrado. A maioria dos estados, no grupo para o qual podemos fazer as contas com um mínimo de segurança, tem balanços positivos sendo o maior deles a Noruega, neste caso sobretudo devido à imensa riqueza em termos de recursos naturais (266,2 % do PIB).
Creio que podemos dividir a mensagem do Dr. Vitor Gaspar em duas linhas de força:
Devemos focar no balanço líquido de Ativos – Passivos Públicos. Num contexto de riqueza líquida positiva do estado o tema do deficit pode ser menos relevante.
De uma forma geral os estados gerem mal os seus ativos, ou seja, retiram deles menos rendimento do que seria possível. Haverá mesmo casos em que uma melhor gestão do património poderia ser suficiente para eliminar o deficit orçamental.
Esta epifania do Dr. Gaspar é um bocado recessa.
Enquanto ministro vendeu ativos públicos a mau preço para reduzir deficit.
Algumas dessas vendas são absolutamente condenáveis de um ponto de vista de segurança nacional, como foi o caso da venda da rede elétrica nacional (porventura seremos caso único no mundo nesta matéria), outras estão agora a ser investigadas porque, aparentemente, foram maus negócios, nomeadamente a venda da ANA, a concessionária dos aeroportos.
Para quem até vendeu ativos, a preço de saldo, que o programa da Troika não obrigava a alienar, é no mínimo estranho este flick flack à retaguarda.
Tal como Saulo de Tarso a caminho de Damasco, porventura Gaspar viu a luz. Não terá caído do cavalo – ao pendor pachorrento da criatura mais conviria um jumento e de jumento, como é sabido, não se dá grande tombo.
Só é pena que esta iluminação tenha vindo tarde…
A Gaspar o que é de Gaspar. Não consigo levar a sério uma criatura que não foi capaz de um único exercício orçamental sem retificativos (sim, sim, no plural!) e que cometeu a proeza, digna do Guiness, de errar na previsão do PIB já com o ano fechado.
No entanto, há uma informação relevante a tirar daqui. Os que pensam que existe em Portugal espaço para uma política fiscal expansionista (BE, PCP, etc.) podem tirar o cavalinho da chuva. Se tivermos juízo não deveremos, em tempos normais, correr deficits orçamentais pelo menos num par de décadas.
Seriam precisos 20 anos com o PIB nominal a crescer 4% ao ano (digamos 2% reais e 2% de inflação) e uma dívida nominal +/- constante (+/- deficit zero) para baixar o ratio da dívida para menos de 60%.
Se vier uma recessão séria (e em 20 anos virá, com certeza) será outra conversa. Então fará sentido esticar o balanço do estado. Mas também aí Vítor Gaspar fez tudo ao contrário…
José Figueiredo (Economista)
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