O ciclone IDAI devastou Moçambique a 14 de março deste ano. O pior desastre do hemisfério sul escolheu a cidade da Beira como principal vítima: Mais de 600 mortos; Mais de 1600 feridos; Mais de dois milhões de pessoas afetadas.
Meio ano depois… As feridas graves provocadas pelo ciclone IDAI na cidade da Beira, em Moçambique, ainda não estão curadas. A destruição e os escombros estão misturados com as imagens da pobreza habitual e as desgraças fundem-se. Parece que sempre foi assim.
O coração da cidade está doente. O Hospital Central da Beira, que serve a população de quatro províncias, num total de 9 milhões de pessoas, ficou muito maltratado. Daviz Mbepo Simango, Presidente do Conselho Municipal da Beira é, ainda, o rosto do desalento: “Fora do IDAI, olho para o HCB e vejo que há um certo abandono, negligência, desrespeito pela vida humana. São aspetos que têm que ser corrigidos. Não são admissíveis numa sociedade civilizada”.
Logo após o IDAI a limpeza do Hospital foi a prioridade, a par da medicina de catástrofe. A cooperação italiana transferiu para tendas no exterior os blocos hospitalares inoperacionais e continuaram a ser feitas cirurgias de emergência. O retrato traçado por Filomena Fernandes, Diretora do Bloco de Sangue, é comum a todas as oito unidades do HCB: “Tivemos o teto aberto e transferimos as coisas porque os serviços não podiam parar. Improvisamos serviços. Graças a Deus temos este apoio que é bem-vindo. Daqui para a frente o sofrimento vai ficar minimizado.” O apoio a que se refere é a ajuda estrutural da Health4Moz, uma ONG portuguesa que meteu mãos à obra para reerguer o hospital, como refere Nelson Duarte Mucopo,
Diretor Geral do HCB: “Estamos em dificuldade de funcionar, por isso é que tivemos que pedir apoio. A Health4Moz está a trabalhar connosco para reconstruir todo o hospital.”
SEGUNDA MISSÃO DA HEALTH4MOZ
Carla Rêgo é médica e professora na Faculdade de Medicina no Porto. Nasceu na Beira e aí viveu até aos 16 anos. É a presidente da Health4Moz, uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento, que há seis anos juntou uma equipa de profissionais médicos e enfermeiros e dedicou-se à solidariedade científica com incidência nos PALOP, sobretudo em Moçambique. Em 22 missões esta foi a segunda por causa do IDAI, no âmbito do Movimento Unidos pela Beira. Médicos e enfermeiros da área da saúde materno-infantil estiveram cerca de duas semanas na cidade da Beira. O objetivo é recuperação e reconstrução. Física, clínica e organizacional. “O Movimento Unidos pela Beira criou o objetivo de colaborar com a reabilitação, reconstrução e reorganização de serviços, apoio médico e medicamentoso. A 16 de Maio, dos oito blocos que constituem a unidade, arrancou a reconstrução do Bloco Cirúrgico, Imagiologia e Serviço de Sangue, num plano definido com a administração do HCB.”
O Hospital Central da Beira parece um estaleiro. Carla Rêgo faz questão de ver tudo o que está a ser feito pela TCO Constrol, uma empresa de Braga com grande atividade em Moçambique.
O Bloco Operatório foi a primeira prioridade da equipa da Health4Moz. As obras começaram em meados de maio e devem ficar prontas nos próximos meses. A abordagem é simples: Esquecer o passado e começar de novo.
Dos 8 blocos do Hospital Central da Beira metade está praticamente recuperada pela Health4Moz. Todo o esforço financeiro tem origem na solidariedade de instituições e mecenas. A empresa de construção civil, por exemplo, faz as obras quase a preço de custo. Ao todo é preciso um milhão e meio de euros para curar as feridas do Hospital. “As obras de reconstrução do hospital são todas da Health4Moz e dos apoios que conseguir encontrar. Não tem apoio de entidades ou governo moçambicano. Quando arrancou o «Unidos pela Beira» o primeiro parceiro foi a Câmara do Porto que deu 100 mil euros. Permite reconstruir a quase totalidade do bloco operatório. Foi o objetivo da doação. Esse valor pode servir de bitola. Há edifícios que custam menos. Se conseguíssemos o conceito de um edifício, um parceiro, criaríamos aqui uma obra emblemática da cooperação portuguesa.”
As obras de reconstrução do Hospital Central da Beira são só uma parte do que é preciso. A outra é a reorganização dos serviços e o apoio médico e medicamentoso. Todos serviços têm falta de recursos e os que existem precisam de organização. Mesmo o de pediatria, de construção recente, feito pelos chineses. Amir Seni, Diretor do Departamento de Pediatria, explica que “no edifício principal de Pediatria há 168 camas e o berçário tem capacidade para 50 crianças. Temos 90 por cento de lotação, mas às vezes chegamos aos 130 por cento. Chega a haver dois ocupantes por cama. É possível num quarto com 8 camas, num pico, podermos ter até 16 crianças mais os adultos acompanhantes. A equipa de portugueses tem estado a reforçar o básico. Chegaram, avaliaram e concluíram que é necessário começar de raiz e ir subindo. O que sustenta o hospital é o trabalho de enfermagem de qualidade. Vigilância, higiene e assepsia são fundamentais para o sucesso do tratamento. Eles têm sido instrumentais: reforçam as boas práticas e estão a formar os nossos enfermeiros. O tempo é curto, mas é o primeiro passo.”
É a segunda missão da Health4Moz no âmbito do ciclone IDAI. Durante duas semanas é muito trabalho para os sete voluntários, onde se incluem médicos e enfermeiras portuguesas, da área materno infantil. No dia a dia, sob a aparência da tranquilidade, todo o serviço de Pediatria parece viver em permanente emergência, como constata Lurdes Teixeira, enfermeira dos cuidados intensivos de Pediatria do Hospital de S. João, no Porto: “É todos os dias… Estão mal e demoram a chegar cá, não há transportes, não há ambulâncias, não há água quente…”
Em permanente sobressalto e correrias, a enfermeira, Lurdes Teixeira, é chamada várias vezes à urgência. São muitos os casos de crianças entre a vida e a morte… “Estou aqui há uma semana e percebi que nada é o que nós pensamos. Usam a medicina alternativa para completar o tratamento. Entram em comas profundos, mas não dizem. Vão ao curandeiro e depois não sabem qual a mistura que foi administrada. As coisas correm muitas vezes mal…”
A taxa de mortalidade na Pediatria do Hospital Central da Beira é elevada. É particularmente evidente na sala de neonatologia, onde a enfermeira Florbela Neto, tenta encontrar alguma ordem. “Neste tempo que estive aqui de manhã faleceram três, à tarde faleceram mais três e de noite não sei quantos foram. Uma taxa de mortalidade muito grande. Há pouco para oferecer aos bebés. São muitos prematuros e não há quase nada a oferecer. Trabalha-se aqui sem recursos…”
O espaço para os bebés prematuros é pequeno. Não há condições. Os bebés partilham tudo desde o oxigénio, às máquinas, até ao próprio berço. “É duro chegar aqui e ver que as incubadoras já estão ocupadas por outros bebés porque os anteriores já faleceram. Estão sempre a chegar novos bebés e não temos local onde os acomodar. Em excesso, partilham berço, com patologias distintas e ficam infetados”. Uma angústia partilhada com Daniel Virella, médico especialista em Neonatologia do Hospital D. Estefânia, em Lisboa: “Nesta unidade, nesta sala, o mais importante é controlar a infeção hospitalar, higiene e assepsia. É o principal problema. Não há falta de vontade, mas apenas falta de condições. Temos situações de asfixia muito graves em que temos para dar apenas conforto. Não podemos aspirar a tratar o que não é tratável…”
No serviço de Pediatria com cerca de 170 camas há quatro especialistas em saúde materno-infantil. O resto são clínicos gerais. Cada enfermeiro tem a seu cargo 60 leitos. O caos e a desorganização são uma rotina que muitas vezes esconde o que tanta falta faz.
No Hospital Central da Beira a linha entre a vida e a morte está presa por arames. O trabalho da equipa da Health4Moz divide-se entre o acudir e o cuidar. É preciso fazer mudanças que permaneçam e as prioridades na Pediatria estão bem definidas, como refere Daniel Virella: “A primeira higiene, a segunda higiene, a terceira assepsia, a quarta nutrição, a quinta critérios de tratamento e cuidados paliativos…”
Começar de novo já que não é possível nascer outra vez. A ideia da Helth4Moz é que a aposta mais forte tem que ser na formação. Identificar a realidade, perceber as carências e preparar o futuro. Nesta missão no Hospital Central da cidade da Beira as ações de formação foram uma constante. A maior parte da assistência médica aos nascimentos em Moçambique é feita em centros de saúde pelos enfermeiros. A formação e atualização de conhecimentos tem que ter isso em conta. Conceição Freitas, enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia, no Hospital de S. João, no Porto, explica que “os enfermeiros são muito importantes num país com falta de médicos. São eles que fazem vigilância da gravidez e parto. Têm um papel muito importante e autónomo. Temos que os dotar de conhecimento e instrumentos para resolverem as diversas situações com que lidam diariamente.”
Reconstruir o Hospital e deixar sementes de mudança que podem ajudar a construir o futuro. A atenção dada à saúde materno infantil do Hospital da Beira não foi obra do acaso, como explica Carla Rêgo, Presidente da Health4Moz: “Esta equipa em particular faz parte de um protocolo com a DGS de Portugal e teve formação durante três anos na área da saúde materno-infantil. É uma área fundamental. 50 por cento da população moçambicana tem menos de 15 anos. A assistência à mulher grávida, gravidez e recém nascidos é muito importante.”
Na Beira, em Moçambique a ajuda portuguesa é sentida como uma dádiva. Nelson Duarte Mucopo, diretor geral do Hospital Central da Beira destaca “o apoio multifuncional. Para além da reconstrução do hospital, que envolve todos os blocos existe a componente da formação, cursos de capacitação dos funcionários. Vai ajudar muito. E já notamos a diferença.” O mesmo diz o Presidente do Conselho municipal: “Temos muito a agradecer. Não temos recursos, mas temos a cabeça e as mãos para acarinhar esse projeto, esta iniciativa e estamos presentes para que apareçam mais missões, como estas.”
Dentro de dois meses o coração do Hospital Central da Beira vai estar a bater com um ritmo próximo do normal. Os blocos principais voltam à capacidade máxima. A fundamental ajuda portuguesa é, ainda assim, uma pequena gota de solidariedade no mar de pobreza e miséria.
Victor M. Pinto, texto e imagens
O QUE É A HEALTH4MOZ?
A Health 4 Mozambican Children and Families (Health4MOZ) é uma associação sem fins lucrativos de direito português, com estatuto de Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), criada em maio de 2013. Teve na sua origem a solidariedade e vontade de um grupo de médicos e professores universitários portugueses em resposta ao repto de médicos moçambicanos.
Tem como único objetivo ensinar, transmitir conhecimento de excelência a alunos e profissionais de Moçambique, pois acredita que a transmissão do conhecimento e a capacitação são as grandes mais-valias que fazem melhorar as sociedades e mover o mundo! O trabalho da Health4MOZ é totalmente voluntário, pro bono, num espírito de verdadeira solidariedade científica.
A sua atividade é creditada por protocolos firmados em Portugal com a academia (faculdades), com os maiores hospitais do país e com a Ordem dos Médicos. Tem ainda o apoio, em função das áreas de formação, das Sociedades Científicas Portuguesas e o reconhecimento e apoio da Direcção-Geral da Saúde, da Secretaria de Estado da Cooperação, da Embaixada de Portugal em Maputo e da Presidência da República.
Em 6 anos de atividade a Health4MOZ realizou 22 Missões em Moçambique que envolveram a participação de 95 profissionais de Portugal.
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