JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Covid-19: Nós não vamos sair bem disto...

Obviamente não sei o que aí vem. Não me refiro sobretudo à economia. Melhor ou pior, em mais ou menos tempo, a economia acabará por recuperar. Vamos ter dois trimestres terríveis, algures na segunda metade do ano as coisas começarão a estabilizar e, ao longo de 2021, as economias começarão a recuperar.
O que me preocupa, e muito, é o que vai acontecer no domínio das relações humanas e da coesão social. Infelizmente temos tudo para recear o pior.
Desde logo a qualidade das lideranças atuais. Nos Estados Unidos a chefia do estado está entregue a um tolo. No Brasil, um presidente lunático mandou cancelar medidas estaduais de contenção perfeitamente lógicas e razoáveis. Em Itália, um governo fraco não conseguiu ter mão nas instituições nos momentos nevrálgicos do começo do surto. Merkel está cansada e enfraquecida. Boris Johnson, em UK, é um aventureiro e mentiroso compulsivo. A estratégia inicial de UK era um perfeito disparate e um caminho certo para o desastre. Emendaram a mão, haja Deus!
Dos ditadores cínicos da China e da Rússia esperem o pior. Tentarão tirar todo o partido (económico, político) que puderem desta crise com a qual lidarão melhor que as democracias por óbvias razões de poder ilimitado.
Poderia continuar esta lista, mas não creio que valha a pena. Só uma nota sobre os bancos centrais. Quer na FED quer no BCE não temos líderes à altura. Jay Powell vive em pânico constante dos tweets do tolo do Trump, e só depois de um bom par de asneiras, ele, ou alguém por ele, parece ter retomado algum controlo. Christine Lagarde é um desastre como se viu na primeira conferência de imprensa onde teve de enfrentar um par de perguntas corrosivas. Não tem mãos para aquele Ferrari…
Mas também há motivos de esperança. Nos Estados Unidos, na ausência de uma verdadeira liderança federal, começam a emergir lideranças intermédias notáveis. É o caso de Andrew Cuomo, governador de NYC.
Em Portugal está a emergir a liderança do atual primeiro ministro em contraste com um presidente ausente e marcado pelo medo. Depois de uma ridícula quarentena apareceu-nos na televisão, cravado de medo, tentado justificar o injustificável. Agora que não é possível andar por aí aos beijos e aos abraços, a criatura mostra a sua vacuidade.
Um segundo motivo de preocupação, que aliás resulta do primeiro (má qualidade das lideranças), é que não vejo em lado nenhum alguém a falar do futuro. Sim, do futuro, do pós-crise. Por pior que esta seja, ficarão 7 biliões de seres humanos no planeta que vão continuar a viver e deveríamos estar a cuidar disso.
Em meados de 1944, com a guerra na Europa e no extremo oriente em full force, reuniam-se em Bretton Woods os obreiros do sistema monetário que haveria de vigorar depois da guerra. Essa, ainda durou mais um ano. Quando acabou a guerra, o sistema, com as respetivas instituições (que ainda hoje existem), estava no essencial construído. Essa foi a última grande contribuição do maior dos economistas, John Maynard Keynes – morreria pouco depois.
E vou agora ao que mais me preocupa – o risco de dissolução social. Pode parecer vagamente fora de tempo esta questão. Afinal, não estamos todos, no essencial, a cumprir voluntariamente as medidas de contenção? Não vemos um pouco por todo o lado notícias de donativos de famosos, de bilionários, clubes de futebol e sei lá mais quem? Não vemos as fábricas de perfumes da Louis Vuitton a fabricar desinfetantes? Não vemos os italianos a cantar nas janelas para aliviar a solidão dos vizinhos?
Não se iludam – estamos na fase dos beijos e dos abraços. Essa é a parte mais fácil. Imaginem que isto dura um par de meses e que saímos com 10 %, 15% ou mais de desemprego? Imaginem que, em breve, teremos uma boa parte das famílias, de novo, com balanços negativos. Imaginem que a Europa não consegue responder coletivamente e que é salve-se quem puder?
Nos Estados Unidos circulam abundantemente nas redes sociais sinais de macabras divisões intergeracionais. Há quem veja no covi19 um meio de remover os boomers que, agora, são um peso para os sistemas de saúde e para os sistemas de pensões.
Os millenials - os mais velhos estão agora a chegar aos 40 – iludidos por uma falsa sensação de segurança (o Covid-19 só mata velhos) – assumem que esta crise não lhes diz respeito. São outros que vão morrer. Macabro, mas real, realíssimo.
Se isto durar muito tempo, se o cansaço acabar com a cooperação geral e voluntária no esforço de contenção, é bem possível que os que agora cantam à janela passem a gritar insultos aos que furam o sistema (se entrarmos no salve-se quem puder, vão ser muitos).
Os famosos e ricos que agora vemos louvar nas televisões pelos gestos solidários, quando for claro que o impacto da crise é fortemente assimétrico e que vão pagar os mesmos de sempre, serão escarnecidos e objeto de ódio.
Se for necessário recorrer a algum tipo de racionamento não esperem que a civilidade geral das filas nos supermercados continue.
Temo bem que todos os fantasmas do passado recente estejam na sombra, prontos a emergir desta vez reforçados com uma perspetiva de desagregação social ainda maior.
Em Itália, onde a esmagadora maioria da população era a favor da integração europeia, atualmente mais de metade da população está disponível para rever o tema da integração.
A possibilidade de desintegração da zona euro pode surgir de novo das sombras e, como sempre, serão os mais frágeis a sofrer mais. Quando ficar claro que as ditaduras lidaram melhor com esta crise (seja isso real ou simples manipulação da informação), o apelo para soluções autoritárias, que já vinha em crescendo, vai aumentar.
Não sou um pessimista e não quero assustar ninguém. Comecei por dizer que a economia vai recuperar e que a recuperação até por ser em V inclinado.
Mas receio bem que haja um antes e um depois em matéria da forma como vamos convivendo uns com os outros em sociedades mais ou menos estruturadas. Temo que o depois não seja bom.

 

Data de introdução: 2020-04-06



















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