Consta que Winston Churchill terá dito que é estúpido desperdiçar uma boa crise. Creio que Churchill se referia ao espaço que as crises sempre abrem para verdadeiras reformas.
As reformas verdadeiras têm basicamente dois inimigos: a) – a inércia; b) - custos muito grandes no curto prazo e ganhos apenas no longo prazo, ou seja, para lá dos ciclos eleitorais ou dos mandatos corporativos.
Por isso, os políticos fogem delas como o diabo da cruz.
Nas empresas a situação é similar e basicamente pelos mesmos motivos. Os gestores são remunerados por resultados imediatos e, por isso, interessam-lhes pouco ganhos a longo prazo à custa do emagrecimento dos lucros de amanhã.
Em princípio esta perspetiva curta deveria ser contrariada pelo interesse acionista. Contudo, não é assim em muitos casos. Frequentemente os acionistas são investidores institucionais, com pouca ou nenhuma ligação afetiva às empresas, que, tal como os gestores, apenas pretendem a valorização rápida das ações para depois poder vender com gordas mais valias. O futuro a longo prazo interessa-lhes pouco!
Mas agora, com esta crise de proporções bíblicas que vamos viver, ocorre uma situação deveras invulgar - dá-se o caso de os custos já estarem incorridos, já não os podemos evitar. Sendo assim, seria tolo não aproveitar para fazer reformas verdadeiras.
Passo, tentativamente, a listar alguns dos setores onde as oportunidades me parecem mais significativas:
Fiscalidade
Há anos que a fiscalidade está a necessitar de uma reforma de alto a baixo.
Vamos sair desta crise com as dívidas públicas mais elevadas de sempre em tempos de paz. De uma forma ou de outra essas dívidas terão de ser pagas o que abre uma oportunidade única para medidas verdadeiramente transformadoras.
Vivemos num mundo cada vez mais desigual em que 1% da população detém mais de 50% da riqueza. Tributar apenas o rendimento tornou-se socialmente injusto e economicamente ineficiente. Uma verdadeira reforma fiscal deveria incluir a tributação da fortuna e um alívio da tributação dos rendimentos. O que ficar da tributação do rendimento deveria ser fortemente progressivo.
Do mesmo modo o modelo de financiamento da segurança social deveria ser reformulado. É altura de olhar mais para o valor acrescentado do que para a folha de férias. Numa época em que a revolução digital transformou o imaterial, o intangível na maior fonte de riqueza é preciso repensar o financiamento do estado social.
Igualmente tarda uma forma justa de tributar os lucros. Num tempo em que a revolução digital permite fazer lucros em qualquer lugar, mesmo sem qualquer domicílio fiscal, escapam a tributação local importantes transações das gigantes da tecnologia.
Por outro lado, a divergência de regimes fiscais entre países cria um espaço de arbitragem fiscal que está a ser aproveitado pelas multinacionais. A OCDE está há anos a trabalhar para um mínimo de concertação fiscal no espaço internacional. Chegou o tempo de entregar qualquer coisa…
Não falta que fazer nesta área…
Desigualdade e dívida
O mundo está afogado em dívida e a situação só vai piorar com a pandemia.
Nos anos 60 do século passado, nos países de capitalismo avançado, o total da dívida pública e privada andava tipicamente pelos 120% do PIB. Atualmente, para os mesmos países, esse ratio está próximo dos 300%.
As razões para esta “financialização” das economias de capitalismo avançado são várias.
Contudo, uma delas é inescapável e carece de reparação urgente: a desigualdade crescente entre ricos e pobres.
Acontece que quando os rendimentos estão excessivamente concentrados num pequeno número de famílias é cada vez mais difícil manter a máquina do consumo a alimentar as economias. Os ricos têm, naturalmente, uma propensão a consumir mais pequena, os pobres, pelo contrário, tendem a consumir tudo ou quase tudo o que ganham. Quanto mais os rendimentos se concentram nos que têm mais propensão a poupar mais difícil se torna dinamizar o consumo.
A solução que se se encontrou até agora foi criar mecanismos de endividamento para os mais pobres de modo a que a alavanca do consumo continue a puxar pelas economias.
O modelo chegou ao limite como abundantemente o demonstrou a crise financeira de 2008/2009.
Infelizmente, neste particular, a crise financeira foi desperdiçada. É certo que as reformas introduzidas no setor financeiro terão tornado o sistema mais resiliente (vamos ver!).
O ponto aqui é que não se tocou nas causas de fundo – nomeadamente a desigualdade crescente das sociedades modernas.
Há tanto que fazer nesta matéria…
Educação
Esta crise mostra que é possível ensinar, porventura, com mais eficácia e menos custos, recorrendo a métodos diferentes, com menos presença física e mais tutoriais informáticos, com métodos mais desenhados ao indivíduo e menos à classe… há todo um mundo para explorar aqui…
Modelos de Distribuição
Vamos ter de nos habituar a usar menos espaço físico e mais espaço digital. Isso não significa que a distribuição física desapareça – obviamente que não. Mas, porventura, a distribuição física que vai resistir terá de afirmar pela diferença, pela oferta original… O mais do mesmo, o normalizável, com grande probabilidade vai passar para a esfera digital. Isso já estava a acontecer com a falência de muitos conceitos de distribuição convencionais. Esta crise só vai acelerar o processo… Quem está nesta área que se cuide - a disrupção pode ser mais rápida do que se pensa…
Modelos de Produção
Creio que ficou claro que alguma renacionalização da produção industrial vai ter de acontecer, mesmo que à custa da perda de eficiência económica. Porventura, segmentos da cadeia de valor que estavam situados em apenas uma geografia (ou um par delas) vão agora ser distribuídas por mais locais. Alguma produção local estratégica tem de ser assegurada. No entanto, seria errado pensar que se pode voltar ao tempo pré-globalização. Destruiria valor e não é necessário.
Acredito que esta tendência abre uma oportunidade interessante para países ocidentais de desenvolvimento intermédio como Portugal. Se seremos capazes de a aproveitar são outros quinhentos.
Sistemas de Saúde
A Alemanha é, nesta matéria, uma história exemplar. Antes da crise, na Alemanha discutia-se a forma de o país de livrar de uma suposta capacidade excedentária a nível hospitalar. Como estavam enganados! Vai ser necessário um olhar novo para estes temas e para os modelos de financiamento dos sistemas de saúde…
Relações de Trabalho
É um lugar comum dizer que nunca mais serão as mesmas. Acredito que não serão. Há aqui um espaço imenso para aumentar eficácia, baixar custos e melhorar a qualidade de vida das pessoas.
A lista pode engrossar. Limitei-me a listar alguns tópicos que iam chegando à memória à medida que os dedos percorriam as teclas do computador.
Seria muito negativo que todo o sofrimento que esta crise vai inevitavelmente trazer fosse desperdiçado e não fossem feitas verdadeiras reformas de fundo.
Não há inqueritos válidos.