A morte de George Floyd, um negro americano torturado de forma cruel por um polícia branco, levantou uma onda de indignação à escala global que ainda se manifesta um pouco por todo o lado.
O tema do racismo voltou para a ordem do dia ao mesmo tempo que fica evidente o enorme desconforto das sociedades de capitalismo avançado em lidar com o assunto.
A verdade é que o capitalismo moderno não seria o que é sem as raízes coloniais e sem a escravatura que esteva na base dessa economia colonial.
A acumulação que permitiu o surgimento do capitalismo moderno esteve, em larga medida, pendurada na exploração colonial e na mão de obra escrava.
Usufruímos hoje de riqueza e bem-estar porque essa acumulação foi possível, mas tendemos a esquecer duas coisas: a) - que foi extraída a pessoas que trabalhavam sem remuneração; b) - que os descendentes dessas pessoas ainda cá andam. Só nos Estados Unidos são mais de 37 milhões.
A questão das reparações é, em termos morais, inescapável. O gasto argumento de que não devem os cidadãos de hoje pagar por factos que aconteceram há séculos não colhe. Gostemos ou não de enfrentar o facto, somos beneficiários há gerações de uma riqueza que foi extraída de forma ilegítima. Dado que não enjeitamos receber por herança o que as gerações anteriores nos deixaram, não podemos moralmente rejeitar os passivos que ficaram por pagar.
Como calcular o valor desse passivo? Qual o valor das putativas reparações a atribuir?
É claro que é desconfortável atribuir valores monetários à vida humana ou à degradação da mesma por via, por exemplo, de acidentes. No entanto, companhias de seguro, tribunais, advogados, etc. fazem-no todos os dias.
Melhor ou pior temos de atribuir um valor monetário, supostamente justo, para indemnizar os que sofreram o dano. Que os critérios não são “cientificamente” exatos sabemo-lo há muito. Basta ver como acontecimentos traumáticos mudam radicalmente os racionais do cálculo. Veja-se o que aconteceu depois do acidente da ponte de Entre-os Rios ou dos incêndios de 2017, quando o valor das indemnizações por morte foi largamente inflacionado.
Curiosamente o problema das indemnizações pela escravatura foi colocado na altura em que esta foi acabando em várias geografias ao longo do século XIX.
Nos Estados Unidos, onde havia cerca de 4 milhões de escravos à saída da guerra da secessão, foi estipulado que cada família escrava teria direito a 40 acres de terra, mais ou menos 16,5 hectares, e uma mula para reconstituir a sua vida como seres humanos livres.
Embora transformada em lei, a promessa nunca foi cumprida.
Temos aqui um primeiro critério para calcular o valor “em dívida”. Assumindo 4 pessoas por família estaríamos a falar de 1 milhão de famílias e 16,5 milhões de hectares. Um cálculo grosseiro diz-nos que o valor dessa terra à altura da libertação, atualizado pela inflação e considerando juros razoáveis, pode andar próximo de 3,1 triliões de dólares, cerca de 14,5% do PIB americano.
Utilizando como critério de cálculo a equalização hoje da riqueza média entre brancos e negros o custo seria de 11 triliões de dólares ou 51,4 % do PIB.
Uma perspetiva alternativa seria considerar o valor atual da quantidade de trabalho que não foi paga deduzido dos custos com a sobrevivência mínima dos escravos. Por esse método a dívida seria de 14 triliões, ou seja +/- 65,4% do PIB.
Nalgumas geografias, como é o caso do Reino Unido, as indemnizações foram mesmo pagas. Mas não aos escravos libertos. Quem foi indemnizado foram os proprietários de escravos que foram obrigados a libertá-los.
Temos aqui um caso um pouco diferente porque, melhor ou pior, um cálculo foi feito e ocorreram pagamento reais.
A comissão encarregada de fazer as contas em 1833 chegou a um valor de 50 milhões de libras para um total de 800.000 escravos libertados.
Quanto valeriam hoje 50 milhões de libras de 1833?
Não é fácil fazer a conta. Usar a inflação é enganador porque a composição do índice foi variando muito ao longo do tempo. Em 1833 não havia computadores nem smartphones…
Uma aproximação interessante seria ver quanto valiam os 50 milhões de libras em termos do PIB do Reino Unido da época. Embora as medidas do PIB nessa altura não fossem tão rigorosas como são hoje, é possível estimar a quota em torno dos 12% o que, para o PIB dos nossos dias, daria um valor de 264 biliões de libras.
Ainda podemos fazer uma outra conta. Quanto valeriam hoje os 50 milhões de libras se tivessem sido investidos em 1833 considerando um rendimento razoável? Podemos chegar a valores próximos de 375 biliões de libras.
Os cálculos que possamos fazer serão sempre discutíveis e servem apenas para formar uma ideia da dimensão da “dívida”.
De qualquer forma o que estas contas de merceeiro nos dizem é que, se aceitarmos o princípio de que “devemos”, temos de reconhecer que a “dívida” é grande e que a consequente reparação também tem de ser grande.
Como pagar a “dívida”?
Obviamente que não passará pela cabeça do mais radical pedir ao governo dos Estados Unidos que passe um cheque a cada família negra americana que, dependendo do cálculo, poderia ser superior a um milhão de dólares.
Nem creio que seja isso que a comunidade afro-americana pensa que deva ser a compensação.
A primeira compensação deve ser moral, ou seja, reconhecer a injustiça do passado e assumir a vontade de reparação.
O que os afro-americanos desejam e merecem é ser livres e iguais.
Que não são livres e iguais vê-se pelo tratamento policial e jurídico discriminativo, vê-se pelos níveis de riqueza comparativos, pelos níveis de educação académica, pelos empregos de uns e de outros, pelos bairros que as comunidades negras e brancas habitam, etc.
É aqui que está a compensação.
Programas de habitação decente para os mais pobres, garantia de acesso ao ensino superior nas melhores universidades quando se tem mérito (mas não se podem pagar as propinas milionárias), discriminação positiva nos sistemas educacionais para compensar as desvantagens dos meios familiares adversos, reformas na polícia e nos tribunais para garantir igualdade efetiva de tratamento, etc.
Voltamos sempre ao mesmo. Não há muito para inventar nestes domínios. A única coisa que é mesmo necessária é vontade e coragem política. Que, porventura, mais uma vez, assim que passar a onda de contestação, haverá de se desvanecer.
Só uma nota para as reações de algumas empresas confrontadas com o tema do racismo.
Muitas delas decidiram fazer doações (algumas milionárias) a ONG que lutam pela igualdade racial.
Temo bem que seja um caso de má consciência. Passar cheques para quem tem muito dinheiro é relativamente fácil e não tem qualquer valor moral. Quero acreditar que muitas dessas empresas têm dentro de portas problemas sérios de discriminação racial. Talvez fosse bom começar lá por casa e guardar os cheques para mais tarde. Se ainda sobrar dinheiro…
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