É um lugar-comum dizer-se que a economia portuguesa está estagnada desde o início do milénio.
Como nesse período, durante a maior parte do tempo, fomos governados pela esquerda, a nossa direita política pretende insinuar que foram as políticas públicas inclinadas à esquerda as culpadas do marasmo em que vivemos.
Obviamente que não tivemos uma governação imaculada ao longo das duas décadas deste século. Cometeram-se erros, com certeza, contudo, tenho para mim que os eventuais desvios da boa governança têm um peso relativamente pequeno no nosso mau desempenho económico.
Portugal foi, como outros países que nos são próximos, atropelado por uma tempestade perfeita, onde se juntaram os desvios de competitividade gerados pela má arquitetura do euro, a abertura do mundo (China, sobretudo) e o alargamento da união europeia a leste.
O euro provocou um ganho artificial de competitividade a favor de alguns países do norte da europa, nomeadamente, a favor da Alemanha. Os países do sul da europa foram todos prejudicados por esse desvio.
A Alemanha já era em 2000 o país com o PIB per capita mais elevado. O pior é que, nestas duas últimas décadas, a riqueza por cabeça cresceu mais nas terras germânicas que em todos os países do Sul e da bacia do mediterrâneo
O maior perdedor é Itália. Em 2000 o PIB per capita transalpino era 93% do alemão, atualmente é de 72,5%. Para a França o trambolhão é de 99% para 90%, a Grécia caiu de 54% para 46%, a Espanha de 69% para 64% e, em Portugal, o menor dos tombos, passámos de 55% para 52%. Divergimos todos. O que menos diverge, apesar de tudo, é Portugal.
Frequentemente são convocadas comparações com os países de leste, alguns dos quais estarão próximos de nos agarrar ou mesmo ultrapassar. Também aqui as coisas não são tão simples como o comentário da direita simplisticamente proclama.
Deixo este tema para uma outra crónica uma vez que esses países estão fora do euro.
O meu ponto é indagar se os desvios introduzidos pelos defeitos na arquitetura do euro, que prejudicaram todos os países com os quais nos devemos comparar, por proximidade geográfica, sócio económica ou cultural, podem autocorrigir-se ou se, pelo contrário, tendem a eternizar estas tendências centrífugas.
As vantagens da Alemanha com a introdução do euro são várias mas salientaria duas: a)- o euro confere aos germânicos uma vantagem cambial no sentido em que se tivessem mantido o marco ele estaria fortemente valorizado dificultando as exportações e facilitando as importações; b)- a Alemanha é o devedor mais credível da zona euro e financia-se, estado e empresas, mais barato que, por exemplo, os países do sul.
Isto deveria ter sido claro para os pais fundadores do euro, mas não foi! Este erro de arquitetura tem levado ao crescimento alemão e à estagnação de boa parte da zona euro.
Poderíamos admitir, em favor dos criadores do euro, que estes desequilíbrios convocam mecanismos endógenos de correção.
Por exemplo, o benefício cambial permite às empresas alemãs exportar com boas margens. Essas margens só podem ir parar a dois sítios: remunerar o trabalho ou o capital. Se, por exemplo, uma boa parte do benefício cambial fosse parar a aumento dos salários reais e do poder de compra dos trabalhadores alemães algum mecanismo de correção poderia ter ocorrido.
O aumento dos salários reais teria provocado um aumento dos preços relativos da Alemanha, corrigindo, assim, parte do ganho cambial, por um lado, e, por outro, a procura acrescida para consumo teria ajudado as empresas dos restantes países da UEM.
Só que este mecanismo virtuoso nunca funcionou. Desde 2004 até agora os lucros das grandes empresas cotadas alemãs cresceu 8,1% ao ano, o que compara com 1,5% em França, 1,9% em Espanha ou -2,4% em Itália.
No mesmo período os salários nominais na Alemanha cresceram 3% ao ano.
Resumindo, o bónus dos defeitos da arquitetura do euro foi direitinho para os bolsos dos acionistas das empresas e, em muito pouca medida, para o comum dos alemães, ou seja, o eventual mecanismo de correção não funcionou.
Este estado de coisas pode mudar?
Poderia mudar por duas vias: vontade política expressa de redistribuição da riqueza ou ação sindical.
Talvez não devamos esperar grande coisa do lado político. Embora o Partido Social Democrata tenha ganhos as eleições, vai governar em coligação com a Partido Liberal e com os Verdes. O Partido Liberal é, tradicionalmente o partido das empresas e os verdes fizeram uma viagem meteórica da esquerda radical para a direita. Vai longe o tempo de Joschka Fischer, um antigo radical de esquerda, à frente dos verdes na Alemanha.
Resta a esperança no movimento sindical. A Alemanha é talvez o país onde, apesar de tudo, o movimento sindical continua a ter alguma força negocial e alguma capacidade para influenciar o ciclo político.
Em teoria a tarefa nem deveria ser difícil. Estudos de opinião mostram que entre a elite económica alemã existe a consciência de que a desigualdade social atingiu níveis preocupantes e se tornou um problema que é preciso atacar.
Prova dessa consciência é o que se passou recentemente em Berlim. Quando as rendas em Berlim se tornaram insustentáveis para a maioria da população chegou-se à medida extrema de as congelar.
Uma eventual redistribuição da riqueza na Alemanha seria fundamental para compor um pouco o enviesamento da zona euro. Seria bom para os alemães comuns e seria sobretudo bom para todos os países que têm sofrido com os erros de arquitetura do euro.
Contudo, eu esperaria pouco quer da política quer das decisões dos conselhos de administração das empresas.
Se alguma coisa de substancial acontecer será pela luta dos trabalhadores que terão de conquistar cada cêntimo como sempre aconteceu – lutando duramente.
Resumindo – o eventual mecanismo de autocorreção dos defeitos de arquitetura do euro por via de uma justa distribuição do bónus da moeda única nos países ganhadores, simplesmente não funciona – o sistema não é convergente, é divergente.
O euro, o maldito euro, continuará a dar ganhos a alguns, prejuízos a muitos e não se corrige por si mesmo.
Não deixa de ser curioso que mesmo no país que mais perdeu com o euro, a Itália, a esmagadora maioria da população prefira continuar na união económica e monetária. O mesmo acontece com as elites políticas e económicas da terra de Dante, Da Vinci ou Galileu.
Estranho, muito estranho!
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