Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos, é a primeira mulher a liderar a Associação Nacional de Municípios Portugueses. Com 54 anos, a autarca socialista, ex-deputada, formada em advocacia, tem tido, nestes primeiros seis meses, como missão principal a descentralização de competências.
São muitas as razões para justificar um processo que não tem corrido da melhor maneira. A pandemia, a guerra na Ucrânia, as eleições legislativas ajudam a perceber o atraso nas negociações entre o Governo e a ANMP, em áreas como a Educação, a Saúde e a Ação Social, que envolvem a transferência de funcionários, equipamentos e, em consequência, um pacote financeiro.
O atraso da publicação dos diplomas levou à prorrogação dos prazos: de 1 de janeiro de 2021 para 31 de março de 2022 e, no caso da Ação Social, como o diploma setorial foi publicado já este ano, o prazo foi prorrogado até 01 janeiro de 2023.
Apesar da Câmara do Porto ter saído da ANMP, descontente com a falta de dinheiro para as competências que o governo dispensa, Luísa Salgueiro diz que o processo entrou nos eixos e deve estar concluído em breve.
SOLIDARIEDADE – Como estão as coisas entre o governo e a ANMP em matéria de descentralização?
LUÍSA SALGUEIRO – Há um trabalho intenso com o governo e profícuo de partilha e negociação com vista a resolver e ultrapassar algumas das dificuldades que têm sido encontradas pelos autarcas ao nível da execução das competências, centrada muito na área da educação, uma vez que desde o dia 1 de abril se tornou obrigatório todas as câmaras assumirem e isso tem um impacto elevado ao nível dos recursos que serão transferidos. Temos estado muito focados numa negociação muito intensa e positiva com o governo para que haja regras que garantam a melhor situação das autarquias e que permita uma verdadeira descentralização. Neste período estamos dedicados mais à saúde e educação uma vez que na área social, por proposta da ANMP, o governo entendeu que poderia passar para 1 de janeiro do próximo ano. Brevemente vamos começar a trabalhar em todo o país, como se fez agora, ouvindo as preocupações, as dificuldades, as reflexões dos autarcas para depois, com o governo, podermos resolver problemas que, entretanto, sejam identificados.
Apesar da saída da Câmara do Porto da ANMP, das críticas dos autarcas ao pacote financeiro da descentralização, tem dado a entender que está tudo a correr bem...
Está a correr bem para que se possam alterar algumas das condições que estavam por resolver, algumas lacunas, no sentido de afinar a relação entre o governo e as câmaras municipais, reforço de financiamento, clarificação de regras. Estão a correr bem nesse sentido. À medida que o processo vai amadurecendo e se vão executando as competências pode sempre haver novos problemas. O processo, como eu sempre disse quando cheguei à ANMP, é dinâmico e vai-se aprofundando e melhorando. Não posso dizer que estão resolvidos todos os problemas, sanadas todas as dificuldades, mas está a ser feito muito caminho no sentido daquilo que os municípios pensam ser melhor.
Qual é o maior problema neste momento?
A educação. Porque a educação, por força da lei, operou para todos, mesmo para os que não tinham aceitado, no dia 1 de Abril. A saúde também é difícil, mas cada uma das câmaras assina um auto de transferência de competências. Portanto, antes de as assumir têm condição de conhecer as situações que herdam. Sabem como estão os centros de saúde, os equipamentos, os contratos, todas as responsabilidades. Enquanto entenderem que não estão reunidas as condições para assumir as competências não assinam esse auto. É uma segurança.
Uma das seguranças que a lei prevê é a neutralidade orçamental, mas parece não se verificar...
A lei diz que deve ser neutra do ponto de vista orçamental, mas do ponto de vista do Orçamento do Estado. Ainda há pouco tempo o Tribunal de Contas sublinhou isso. A transferência de competências deve ser neutral significa que o orçamento de Estado não pode ter acréscimo de despesa. Claro que deve ser também neutra orçamentalmente para a autarquia, mas o que importa é que haja um equilíbrio porque estamos a verificar que as verbas que o governo afetava a determinadas áreas parece ser insuficiente. Havia uma suborçamentação que agora se torna mais evidente.
Como está a ser resolvido?
Está a ser resolvido com reforço das verbas que ficam a cargo do governo.
Sem mexer no Orçamento de Estado?
Portugal tem agora mecanismos extraordinários ao seu dispor. O Portugal 20/30, ao nível do investimento, o PRR e está anunciado que o governo recorrerá ao Banco Europeu de Investimentos para fazer reabilitações profundas de escolas, por exemplo. São mecanismos de financiamento extraordinário a que Portugal vai recorrer para fazer algo importante que é a recuperação de mais de 400 escolas no país que depois as autarquias vão assumir.
Em matéria de Saúde, as ruturas que se têm verificado, podem influenciar as negociações com o governo?
No que está em causa não impacta. As competências que estão a ser transferidas para as autarquias não significam gestão de recursos ao nível de pessoal médico, de saúde.
As autarquias nem são problema nem solução...
Nós podemos aliviar o Ministério da Saúde de algumas tarefas que não tenham a ver com a gestão dos médicos e enfermeiros. Vamos ficar responsáveis pela gestão dos assistentes operacionais e recebemos uma verba correspondente relativa aos profissionais que passem para a gestão autárquica. Esta crise tem que ver sobretudo com recursos humanos da área de medicina e enfermagem que não passarão para as autarquias. É alheio ao processo de descentralização.
O mesmo em relação aos professores...
As autarquias só têm responsabilidade de pessoal não docente, assistentes operacionais.
Ao invés, na área social lida-se muito mais com pessoas e acordos de cooperação com o Estado. Como estão a correr as coisas neste sector?
Eu, enquanto presidente da Câmara de Matosinhos, já assumi as competências em matéria de Ação Social no dia 1 de Abril. Mantemos o modelo que no que diz respeito à gestão dos processos de Rendimento Social de Inserção. A Segurança Social já tinha protocolado com uma IPSS e vamos manter esse modelo. É claro que nós temos sempre a vantagem da proximidade. Nós conhecemos as pessoas, as famílias, as situações. O SAS também passa para as autarquias e seremos nós a dar as respostas imediatas. A vantagem é a da proximidade e do conhecimento e somos quem melhor consegue agilizar os recursos. Mais uma vez é importante que do ponto de vista financeiro não se crie aqui nenhum desequilíbrio que venha a prejudicar os municípios.
Nas matérias especificas da área social a transferir para os municípios grande parte do trabalho estava a ser desenvolvido pelas IPSS, numa relação protocolada com o Estado. As câmaras vão substituir a Segurança Social?
Nalgumas coisas vão. A ideia é que algumas das valências sociais possam ser internalizadas. Eu dei o exemplo do Município de Matosinhos, onde as coisas se manterão como estão, mas noutros municípios podem ser eles a gerir diretamente as situações. O serviço do Município que trata da Ação Social é o mesmo que trata da Habitação e da Educação. Há uma visão dos problemas locais diferentes numa autarquia em relação ao que se passa no Instituto de Segurança Social, que é desconcentrado, mas que não tem esta rede. Nós conhecemos as famílias e as pessoas individualmente. Fazemos uma avaliação muito mais adequada das necessidades e dos recursos a afetar para responder a essas necessidades. É a grande vantagem da descentralização da área social.
Mas defende que no processo de descentralização na Área Social deve fazer-se tábua rasa do que são os acordos de cooperação estabelecidos entre as Instituições Sociais e o Estado?
As regras mantêm-se. Vamos, por exemplo, avaliar uma família que é beneficiária do RSI. Há um contrato assinado com a Segurança Social que monitoriza essa relação. Nós vamos fazê-lo com uma diferença: nós conhecemos todo o quadro familiar. As câmaras sabem dos reais problemas das pessoas e não tratam dos casos administrativamente.
Eu falava da tentação das câmaras mudarem tudo, designadamente a cooperação existente com as IPSS...
Vamos passar por um processo em que vai ser necessário que as IPSS, o setor social demonstre a vantagem do seu trabalho. As Câmaras Municipais vão ter de fazer uma avaliação, mesmo as que têm as IPSS como parceiros, vão ter que fazer uma avaliação das vantagens e desvantagens desse modelo. O que lhe digo, refletindo sobre a experiência do meu Município de Matosinhos, é que acho que é altamente vantajoso o que está a acontecer no modelo assente na relação com as IPSS. Mas é claro que os presidentes de câmara vão ter condição de fazer a avaliação se querem internalizar esse serviço ou mantê-lo fora. É preciso que se demonstre as virtualidades deste modelo.
Não estará isso mais do que demonstrado? Não considera que pode haver razões meramente de cariz político para fazer essa internalização, como lhe chama?
As normas subjacentes a todas estas respostas e o modelo que está desenhado é no sentido de evitar que isso aconteça. Os critérios, as formas de avaliação e as regras ficam inalteradas independentemente de quem assuma a competência, se é a autarquia se é através de uma IPSS.
Há quem defenda que caso haja rescisões dos contratos com o Estado, ao arrepio de investimentos feitos pelas instituições, deva haver lugar a indemnizações...
Eu aí respondo como jurista: é uma questão de direito que tem que ser analisada.
No pacote do processo da descentralização na área social não poderá vir incluído o risco de uma proximidade perniciosa que leve à tentação de algumas câmaras tomarem conta das respostas por conveniência política?
O importante é que as regras sejam bem definidas bem como os critérios de avaliação do trabalho realizado e a forma de exercício de competências. Se houver indicadores que tenham que ser demostrados sobre a forma de atribuir prestações, como avaliar as situações, julgo que esse risco é mínimo. Acho que as válvulas de segurança estão nos diplomas.
Pode haver transferência de recursos humanos do Estado central para as autarquias?
Estamos ainda a trabalhar nessas matérias, mas penso, pelas informações que temos, que haverá poucas situações em que sejam transferidos funcionários da administração central para a local. Haverá sobretudo financiamento para contratação de pessoas.
A Câmara do Porto saiu da ANMP por discordância com este processo de descentralização. Tem dito que o processo não está concluído e que, portanto, terá sido uma atitude precipitada e sem sentido...
Nunca faz sentido. Mesmo que as coisas corram mal nós vamos estar unidos contra o governo, a resolver problemas, nunca os municípios uns contra os outros. Acho que, se nos dividirmos, é a fragilização do poder das autarquias. O presidente da ANMP, seja quem for, tem que liderar todos os municípios mesmo aqueles que têm capital de queixa contra o processo. Nós devemos unir-nos na defesa dos interesses comuns e não cada um por si a defender apenas os seus interesses.
Como é que entende então esta atitude da Câmara do Porto?
Não comento. É uma decisão que a C.M. do Porto e a Assembleia decidiram e eu tomo conhecimento dela.
E o facto de haver outros municípios que ameaçam com um comportamento semelhante?
Estamos a trabalhar num processo que visa acomodar as necessidades e as reivindicações e as situações de todos os municípios portugueses. Dos 308, incluindo o Porto. Tem de haver regras universais, transparentes e objetivas para todos. Espero que quando esta fase do processo terminar a ANMP continue a ser o espaço onde todos discutem, por vezes divergem, mas tem um denominador comum que é a defesa do municipalismo português. Espero que não haja razões para mais saídas. Na história da Associação Nacional de Municípios nunca houve divisão. Seria um mau contributo, não para a ANMP mas para os municípios.
Tem dito que todos podem falar com o governo mas a negociação é feita só com a ANMP.
O governo tem de falar com todas as autarquias, mas a relação com os municípios portugueses é feita só com a ANMP. É o interlocutor legítimo.
Significa que o Porto não será prejudicado nem beneficiado por ter saído.
A ANMP está a trabalhar para os 308 municípios. Não pode haver regimes de exceção em matéria de descentralização de competências.
O que é que a pandemia, a guerra na Ucrânia e as eleições legislativas provocaram neste processo?
O mundo mudou muito desde a aprovação da lei da descentralização de competências até à sua aplicação prática. A lei é de 2018 e no dia 1 de Abril tornou-se imperativo um conjunto grande de competências. Quando foi aprovada não se imaginava que nós íamos estar assim. Também por isso importa revisitar algumas das regras estabelecidas. Sobretudo a situação financeira. As autarquias tiveram que reorientar as suas prioridades. Na pandemia tivemos que socorrer as pessoas com vacinas, testes, centros de vacinação, máscaras, equipamentos de proteção individual. Quando se analisar o que foi a prestação de Portugal na resposta à pandemia, ficará demonstrado, penso eu, que são os municípios que estão na primeira linha da resposta às populações. Quanto às consequências da guerra: recebemos refugiados e tivemos que encontrar locais de acolhimento, transporte, alimentação, vestuário, formalização da documentação, alojamento, cursos de português, escolas para as crianças... A resposta está nos municípios. Por outro lado, temos que lidar com o aumento de preços na energia, combustíveis, matérias-primas, obra, quem sente isso em primeira linha? Os municípios. A nossa condição financeira mudou e também por isso temos que ter mais cuidado na transferência de competências.
A descentralização abre o caminho para a regionalização?
Desde o congresso do PSD não vale a pena falar sobre isso. O novo líder meteu a regionalização na gaveta.
V.M Pinto (texto e fotos)
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