A subida dos preços da energia vai colocar muitas famílias em dificuldades.
Considerando as três principais matérias primas energéticas, ou seja, o petróleo, o carvão e o gás natural, a evolução dos preços desde a invasão da Ucrânia é como segue: O carvão térmico e o gás natural quase triplicaram de preço, o petróleo (brent) que cotava antes de fevereiro de 2022 por baixo de 90 dólares por barril chegou a andar por cima de 120 e ultimamente cota entre 80 e 90 dólares.
É frequente vermos na comunicação social passar a ideia que os preços do gás multiplicaram não por três, mas por dez. Tudo depende do ponto de referência que tomamos. A verdade é que os preços do gás já estavam a subir antes da invasão da Ucrânia. Tomando por referência os preços de janeiro de 2022 a multiplicação por três está certa. Se formos buscar a referências mais antigas o múltiplo de dez pode estar correto.
Trata-se de variações de preços com amplitudes que só vimos nos anos 70 com o embargo petrolífero promovido pelos países árabes.
Estas variações de preços estão a produzir transferências de riqueza colossais a favor de países com capacidade exportadora de matérias primas energéticas fósseis – o que já seria mau em si mesmo – ainda mais negativo é que um dos principais beneficiários seja a Rússia que, assim, vai tendo ampla capacidade de financiar a guerra.
O pior até podem não ser os preços elevados, nem as massivas transferências de dinheiro para regimes corruptos ou hostis, o mais assustador é que em alguns países, no próximo inverno, os governos podem ser obrigados a escolher entre aquecer as casas ou manter as fábricas a funcionar.
Outro caso em aberto é como vão as famílias mais vulneráveis pagar as contas da energia que podem tranquilamente mais que duplicar em pouco tempo?
Não disponho de números para Portugal, mas, nas economias de capitalismo avançado, a despesa em energia de uma família nos escalões mais baixos de rendimento vale por volta de 15% do rendimento disponível. Nos decis superiores, os mais ricos, esse peso andará pelos 2%.
É perfeitamente possível que, em alguns países, esse peso passe para mais do dobro. No Reino Unido há quem estime que esse valor possa chegar aos 41%. Para muitas famílias dos escalões mais baixos de rendimento pode ser a escolha entre comer ou aquecer-se no inverno.
Um tal cenário não é política ou moralmente comportável.
O debate sobre como navegar a crise humanitária que aí vem é importante porque as diferentes soluções que vemos aparecer no espaço público têm por base visões do mundo e da sociedade muito diversas ou mesmo conflituais.
As respostas liberais podem resumir-se na seguinte frase: deixar os preços evoluir livremente de acordo com as regras dos mercados (quase sempre mercados regulados, é certo) e ajudar diretamente os mais frágeis com apoios financeiros.
Uma outra variante do lado liberal, muito debatida atualmente no Reino Unido e defendida por Liz Truss, primeiro ministro eleita, é reduzir os impostos de forma regressiva em vez de dar dinheiro aos mais pobres. Regressividade aqui significa que a redução nos impostos é tanto maior quanto menor for o rendimento.
Claro que, em teoria, pagar menos impostos ou receber dinheiro do estado é a mesma coisa.
Contudo há países, como Portugal, onde este modelo não é simplesmente aplicável – boa parte da população portuguesa não paga IRS portanto só faríamos chegar dinheiro às pessoas se aplicássemos, como acontece em algumas geografias, o modelo de impostos negativos. Não é o caso!
Não creio que as soluções liberais sejam aceitáveis.
Desde logo por uma questão moral – enquanto deixamos os mercados a funcionar, nas excecionais condições atuais, algumas empresas vão fazer (como fizeram no passado recente) lucros muito acima do normal.
O modelo de deixar os preços andar e ajudar diretamente os mais frágeis equivaleria a subsidiar com dinheiro público empresas privadas que já estão a fazer lucros excecionais. Moralmente repugnante!
Por outro lado, um tal modelo seria difícil de aplicar. Em Portugal já temos uma tarifa social de energia para famílias mais frágeis.
O modelo tem funcionado relativamente bem em tempos normais. No período que aí vem vai ser necessário alargar muito o âmbito atual de aplicação de ajudas estatais. Onde traçar a fronteira entre os que podem suportar os novos preços e os que precisam de ajuda?
Acredito que vamos ter de entrar por territórios de que ninguém gosta, mas que podem ser inevitáveis. Controlo administrativo de preços pode ser necessário, fixação de preços máximos, idem.
Não tenhamos ilusões – tetos nos preços ou controlo administrativo dos mesmos não vão ser suficientes. Será sempre necessária a ajuda direta aos mais frágeis. O que não podemos permitir é que a ajuda aos mais frágeis acabe por engordar as contas de lucros de empresas que já usufruem de resultados anormais.
Tanto quanto consigo vislumbrar a solução só pode ser um cocktail de intervenção nos preços mais ajudas diretas aos mais frágeis e redução de impostos.
Os custos orçamentais das ajudas diretas, ou reduções de impostos (IVA, por exemplo) como forma de limitar os preços serão muito grandes. De onde vem o dinheiro para financiar estes gastos excecionais?
Claro que uma parte terá de ir para a conta do aumento do deficit público e da dívida.
Contudo, uma parte deveria vir de impostos especiais sobre aqueles que estão a beneficiar com a desgraça alheia.
Intervenção nos preços, impostos especiais e retroativos são coisas que me arrepiam e disso tenho dado abundante prova neste espaço de crónica.
Contudo, não estamos a viver tempos normais, estamos a viver tempos de guerra e, portanto, a necessitar de medidas típicas das economias de guerra.
O governo português anunciou, entretanto, o pacote de medidas de ajuda às famílias.
Basicamente é um mix de reduções de impostos e ajudas diretas com intervenção muito limitada em termos de preços. Quanto a tributação extraordinária de lucros excessivos estão, para já, fora de consideração.
Considero que, no essencial, as medidas são equilibradas e vão no sentido certo embora seja sempre possível discutir questões como a dimensão do pacote financeiro (podia ser maior?), o tempo da decisão (porque não mais cedo?), de composição das medidas (porque não reduzir temporariamente o IVA dos bens alimentares?) e, como sempre, questões de detalhe.
As críticas a este nível são perfeitamente aceitáveis, trata-se, para todos os efeitos, de temas controversos por natureza.
Contudo, a nossa oposição política apresenta-se a terreiro com base na ideia de que as medidas do governo não resolvem a totalidade do problema, como se existisse uma varinha mágica que permitisse que a maior crise do mundo ocidental em décadas pudesse ser ultrapassada sem custos e sacrifícios para todos.
Com uma oposição como a que vai tendo o Dr. António Costa não deve necessitar de ansiolíticos.
Não há inqueritos válidos.