JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

O relatório Draghi ou a desesperada esperança no futuro da união europeia

Algures no tempo, neste espaço de crónica, prometemos voltar ao tema do relatório Draghi sobre a restauração da competitividade europeia, assim que ele fosse tornado público. E o prometido é devido!

As grandes linhas diretoras do documento já eram conhecidas pelo que o que temos agora de novo é a análise fina ao nível setorial e a correspondente quantificação dos diagnósticos e das medidas recomendadas.

A União Europeia, se tomada no seu conjunto, é um dos três grandes blocos económicos do mundo, um pouco menor que a economia americana e de dimensão similar à economia chinesa.

A União Europeia navegou relativamente bem o período da globalização, da mundialização das cadeias de valor em que o mundo parecia reger-se por regras e onde os argumentos de poder ou força bruta pareciam não ter lugar.

A União Europeia soube aproveitar as oportunidades criadas pela emergência das novas potências económicas, em particular a China, para potenciar o seu sistema exportador ao mesmo tempo que um mundo regido por regras (e a expetativa de que assim continuasse!) permitia manter orçamentos de defesa curtos e, portanto, criar capacidade de despesa pública para outras finalidades.

Entretanto tudo mudou! A União Europeia vê-se subitamente num mundo onde o nacionalismo económico renasceu das cinzas ao mesmo tempo que os argumentos de força bruta e o desprezo das regras voltam a ser moeda corrente como abundantemente demonstram a guerra na Ucrânia ou a situação no Médio Oriente.

A verdade é que a Europa não estava preparada para nenhuma destas grandes mudanças. No plano da defesa a Europa continua a depender totalmente da proteção que os Estados Unidos queiram oferecer. No plano da economia a Europa vê-se subitamente cercada por dois blocos económicos, Estados Unidos e China, que prosseguem deliberadas e assumidas políticas industriais de proteção da produção local através de, entre outras iniciativas públicas, programas massivos de investimento público ou de apoio ao investimento privado através de subsídios, descontos fiscais, etc.

Não é necessário sobrecarregar excessivamente as nossas sinapses para perceber que a Europa, se quiser sobreviver como um bloco político e económico relevante, tem de resolver os dois temas, ou seja, tem de conseguir um módico de autonomia na sua defesa e tem de investir massivamente para aumentar a sua produtividade e, desse modo, poder competir com os outros dois monstros da economia global.

O relatório Draghi, para além de conter uma análise detalhada dos setores considerados mais relevantes e um minucioso elenco das medidas a tomar, também nos permite uma visão mais macro, a qual cabe melhor num espaço de crónica como este que me é dado ocupar.

Para atingir os objetivos enunciados no relatório Draghi o total de investimento adicional anual necessário é de 750 a 800 biliões de euros, ou seja, algures entre 4,4 e 4,7% do PIB da União Europeia. Para se ter uma ordem de grandeza deste esforço de investimento, compare-se com o famoso plano Marshall que ajudou na recuperação económica da Europa a seguir à devastação da segunda guerra mundial - valia entre 1 e 2% do PIB da altura. A adição necessária ao investimento na União Europeia equivale a passar a taxa de investimento atual (formação bruta de capital fixo/PIB) de cerca de 22% para próximo de 27%, ou seja, regressar aos níveis dos anos magníficos da recuperação europeia do pós-guerra.

Naturalmente que a primeira questão que nos ocorre neste contexto é de onde virá o dinheiro para financiar um esforço de investimento desta ordem de magnitude.

Claro que a maior parte do investimento total será investimento privado e financiado nos sistemas financeiros em base comercial.

Contudo, uma parte do esforço terá de assumir forma de investimento público ou ajudas públicas ao investimento privado na forma de subsídios, empréstimos ou créditos fiscais. Trata-se aqui de pura macroeconomia básica. Na União Europeia o investimento total distribui-se genericamente em quatro quintos privado e um quinto público. Um aumento do investimento privado de 4% do PIB implicaria, segundo os modelos da Comissão Europeia,   uma redução do custo do capital em cerca de 250 pontos base o que, aparentemente, não é possível, ou seja, por aqui não chegamos lá!

Acresce que muita desta intervenção pública terá de ser assumida ao nível da União o que é um problema. Em áreas como o investimento em tecnologias avançadas de inteligência artificial, investimento nas conexões internacionais das redes de energia ou investigação e aquisição comum na área da defesa, a intervenção da União Europeia enquanto tal é indispensável. Acontece que o orçamento da União vale atualmente cerca de 1% do PIB o que contrasta com orçamentos dos estados na casa de 50% do PIB. Para além de pequeno o orçamento da União está comprometido em cerca de dois terços com apenas duas políticas, a saber, a política de coesão e a política agrícola comum. Por outro lado, a dívida comum da União assumida no âmbito da NextGenerationEU, para suporte do esforço de recuperação pós-covid, começa a ser reembolsada em 2028 ao ritmo de 30 biliões de euros por ano.

Parece claro que os objetivos do relatório Draghi não serão exequíveis sem um alargamento substancial do orçamento da União Europeia, seja através do aumento das contribuições dos países membros, seja com novas fontes de receita ao nível da União, seja, finalmente, com recurso à emissão de dívida comum.

Podemos imaginar como é uma tarefa difícil.

Aumentar as contribuições dos estados numa altura em que muitos deles enfrentam situações fiscais como só se viram em tempo de guerra não parece fácil.

Criar novas fontes de receita a nível comunitário pode parecer mais exequível, contudo, tratar-se-á sempre de novos impostos que os cidadãos terão, de uma forma ou de outra, que pagar. Resistência e contestação serão inevitáveis.

Emitir dívida comum vai, com certeza, colher a oposição e a resistência da parte dos falcões fiscais europeus, nomeadamente, dos suspeitos do costume com Alemanha, Holanda e Áustria provavelmente à cabeça. Acresce no caso alemão que o Tribunal Constitucional pode inviabilizar qualquer emissão de dívida comum europeia adicional à NextGenerationEU, a qual só passou no Tribunal Karlsruhe porque foi considerada uma situação excecional e sem repetição.

Para ajudar à festa vemos um pouco por todo o lado na União Europeia o ascenso de partidos políticos que são críticos da União e que pretendem recuperar para o nível nacional parte do poder que foi transferido para  Bruxelas.

Este é o lado dramático do relatório Draghi. Creio que ninguém de bom senso discordará que, se a União Europeia pretende continuar a ser um ator relevante nos planos político e económico, algo próximo das medidas sugeridas no relatório terá de ser realizado. O risco de que os egoísmos nacionais, o ascenso dos nacionalismos ou o simples imobilismo possam tolher as medidas apresentadas é enorme. Como refere Mário Draghi nos seus documentos, o imobilismo pode não matar a União Europeia, contudo, vai colocá-la no caminho de uma “lenta agonia”.

 

Data de introdução: 2024-10-09



















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