Em Portugal nunca escasseou espaço ou auditório para os nacional-pessimismos e para os nacional-derrotismos. Na verdade, sempre tivemos grande disponibilidade para a autoflagelação e para nos considerarmos como um caso mais ou menos perdido, sem remédio visível.
Nesse quadro de generalizada autodepreciação, quando a crise das dívidas soberanas nos bateu à porta, em 2010/2011, foi muito fácil vender aos portugueses a narrativa do país gastador compulsivo, incapaz de se governar e a precisar de um par de açoites para aprender.
Essa narrativa era completamente falsa embora fosse, porventura, incontornável para convencer os eleitores dos países do centro e norte da Europa (Alemanha, nomeadamente) da necessidade de resgatar os “desgovernados” do Sul.
Como português senti-me humilhado pelo memorandum que nos obrigaram a assinar em estado de necessidade. Mas o que mais me custou foi ver como o governo da altura aceitou e ampliou a narrativa de uma culpa coletiva (rotundamente falsa!) que reclamava uma expiação exemplar.
Mas como diz a cantiga do Fausto “atrás dos tempos, vêm tempos e outros tempos hão-de vir”.
Desde os tempos da crise de dívida soberana e da intervenção da troika muita água correu debaixo das pontes, vivemos uma pandemia e muita coisa mudou em Portugal. Gostaria de me referir a dois aspetos em que mudámos significativamente e, tanto quanto consigo ver, para melhor. Refiro-me concretamente à nossa recente afeição pelas chamadas “contas certas” e à intransigente intolerância à inflação.
Portugal sempre correu orçamentos deficitários desde que passámos a viver em democracia. De alguma forma tornou-se um hábito. Nunca foi particularmente constrangedor para qualquer governo apresentar um orçamento deficitário, nunca foi necessária grande eloquência para defender a necessidade do déficit ou mesmo, aqui e ali, apelar para o carácter virtuoso do mesmo, e, verdade seja dita, a opinião pública não dava grande importância ao assunto. Claro que umas quantas vozes mais austeras iam lembrando que os deficits públicos são, para todos os efeitos, dívidas que um dia terão de ser pagas, que não é prudente acumular dívidas públicas para lá de certo limite, que o custo do financiamento, quer ao Estado quer à economia, pode ficar proibitivo, etc.
Contudo, a verdade é que o putativo equilíbrio das contas públicas não era a primeira das preocupações dos portugueses.
Durante os anos da troika os deficits públicos foram enormes, contudo, a partir de 2015 as finanças públicas portuguesas encetaram um processo de recuperação notável ao ponto de em 2018 se ter conseguido um quase equilíbrio orçamental. Em 2019 registou-se o primeiro excedente das contas públicas desde que vivemos em democracia.
Seguiram-se os anos da pandemia e, naturalmente, as contas públicas voltaram ao vermelho, contudo, em 2022 tínhamos regressado ao quase equilíbrio e em 2023 e 2024 voltámos aos excedentes.
A expressão que se vulgarizou para descrever este “novo normal” foi “as contas certas”.
A verdade é que, sem nos darmos conta, o paradigma mudou. Atualmente seria muito difícil a um qualquer governo apresentar e justificar um orçamento deficitário, um orçamento sem “as contas certas”.
Naturalmente que no futuro não faltarão situações em que as contas públicas haverão de voltar a escrever-se a vermelho. Uma nova pandemia, uma crise económica internacional, uma catástrofe natural ou situações que nem sequer podemos nomear e menos ainda antever, haverão de nos obrigar a correr de novo deficits nas contas do estado.
O que mudou não foi a impossibilidade de correr deficits, eles ocorrerão sempre – o que mudou é que, no futuro, as situações de deficit terão de ser muito bem justificadas perante a opinião pública e, talvez mais importante, a mesma opinião pública exigirá a correção dos saldos negativos em devido tempo. Os deficits passaram a ser a anormalidade e não a rotina. E isso é bom!
Se as previsões do FMI se mostrarem acertadas, em 2029 Portugal terá um ratio dívida/PIB de 77% e terá deixado para trás países como a Finlândia, a Espanha, a França, a Bélgica, a Grécia e a Itália.
O segundo aspeto de mudança a que gostaria de abordar é a intolerância geral à inflação.
O surto inflacionista de 2021/2022 foi uma experiência nova para a esmagadora maioria da população. São relativamente poucos os que têm memória do ciclo inflacionista dos anos 70/80 do século passado.
Para muitos foi uma experiência simultaneamente nova e amarga.
Podemos racionalmente fazer um esforço para compreender e aceitar algumas subidas de preços. Podemos estar de acordo em que as subidas de preços resultaram inicialmente de deslocamentos e desencontros entre oferta e procura em consequência da pandemia. Na altura em que estávamos confinados em casa a procura deslocou-se dos serviços que não podíamos consumir (restaurantes, viagens, etc.) para as mercadorias cujos preços obviamente subiram. A guerra na Ucrânia só agravou as coisas com o encarecimento brutal das matérias primas energéticas.
Contudo, isto é apenas uma parte da história, a parte que a economia pode explicar. Muitas empresas aproveitaram a situação para subir os preços muito para além dos aumentos dos custos (a chamada inflação pela ganância), outras preferiram não mexer nos preços mas reduziram as doses de produto por embalagem (Shrinkflation, no jargão anglo-saxónico).
Sem dúvida que a inflação é um mal terrível que deve ser evitado a todo o custo. Podemos eventualmente ter a visão diletante que se os preços subirem 5% e os salários subirem na mesma ordem de grandeza não é o fim do mundo – o poder real de compra é constante.
Mas esta visão ingénua é um erro. A inflação é o mais injusto dos impostos, o que mais prejudica os mais frágeis da sociedade. Podemos ver a inflação como uma luta de todos contra todos pela repartição do bolo económico, luta onde os mais frágeis perdem sempre. É, por isso, que costumo dizer que a inflação é não só um problema económico, é também um problema moral.
É minha convicção que a experiência inflacionista de 2021/2022 deixou marcas profundas nas pessoas que perceberam que, para além daquilo que a economia até certo ponto pode explicar, existe um lado moral inaceitável nos processos inflacionistas e que é intolerável.
Assim como duvido que um qualquer partido político possa doravante ganhar eleições sem prometer retidão orçamental, sem se mostrar um fervoroso adepto das “contas certas”, também não acredito que seja possível voltar a ganhar a preferência do eleitorado sem uma atitude de total intolerância em relação à inflação.
Sem dúvida, dois desenvolvimentos positivos.
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