PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente

Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a vida com as sequelas de uma doença que deixava uma parte das suas vítimas com atrofias musculares, deformações dos membros, problemas respiratórios e dificuldades na fala e na deglutição.

A eficácia da vacinação permitiu que a doença fosse considerada erradicada na Europa há mais de 20 anos. Essa eficácia pode estar em risco porque, diz a OMS, as taxas de vacinação estão a descer (registe-se que Portugal é exceção nesse movimento neoobscurantista que nos assola).

Por estes dias foi notícia que o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças põe a hipótese de que o vírus da poliomielite, encontrado em esgotos da Espanha, Alemanha e Polónia possa estar de novo em circulação, apesar de não serem conhecidos casos de pessoas infetadas.

Philip Roth, deu-nos, no romance Nemesis, uma aproximação literária à doença, partindo de um surto ocorrido em Newark em 1944. O protagonista, Bucky Cantor, um jovem animador desportivo infetado aos 23 anos, ficou, como muitas outras das suas vítimas, paralisado. Após a doença, Bucky afastou de si a namorada com quem ia casar e viveu com amargura e sentimento de culpa pelo seu destino e pelo dos jovens possivelmente infetados por si, esmagado pela fatalidade. A reação que Philip Roth imaginou para Bucky espelha a perceção da vida que era dada ainda há algumas décadas atrás, às pessoas com deficiências e incapacidades, consideradas vítimas de uma fatalidade para a qual havia que buscar os culpados e condenadas a uma vida menor.

Entre as vítimas da poliomielite na Europa encontramos uma das personagens mais marcantes do movimento pelos direitos das pessoas com deficiência.

Em 1961, um jovem alemão de 17 anos chamado Adolf Ratzka contraiu a doença. Adolf, tal como o personagem Bucky Cantor, ficou paralisado. A perspetiva de vida que o seu país, como quase todo o mundo, então lhe oferecia era a institucionalização prolongada e a vida infeliz que Philip Roth atribuiu a Bucky

O jovem Adolf não se resignou. Conseguiu uma bolsa de estudo para os EUA, onde, quando chegou, em 1967, o movimento da vida independente dava os seus primeiros passos. Essa experiência proporcionou-lhe condições na altura ímpares: o apoio de um assistente pessoal e um veículo adaptado à sua deficiência física. Nessa sua experiência americana entrou em contacto com os ativistas do movimento para a vida independente e as suas experiências pioneiras. Como o próprio disse décadas mais tarde à revista Time “Fui catapultado de uma existência vegetal num hospital alemão para um viveiro do ativismo flower-power”. 

Regressado à Suécia em 1973, contaminou o seu país e a Europa, nas décadas seguintes, com a recusa do fatalismo para as pessoas com a sua condição e a exigência de oportunidades e políticas inclusivas. O seu contributo foi particularmente relevante para o desenvolvimento das políticas de desinstitucionalização.

Em 1984, fundou em Estocolmo uma cooperativa, em que centenas de pessoas com deficiência se associaram para pôr em prática um modelo de cuidado baseado nos princípios do poder do utilizador, a quem foi dado o poder de recrutar, formar e gerir os seus assistentes pessoais e do pagamento direto, através do apoio ao utente para gerir os seus custos e não a instituições. Uma década mais tarde fundou o Instituto para a Vida Independente na Suécia, que liderou até 2017.

Nas décadas seguintes, Adolf Ratzka organizou por toda a Europa movimentos de apoio à vida independente. Entre nós, apenas em 2017 foi criado a nível político um quadro de apoio a pessoas com deficiência inspirado nesta visão, com a adoção do “modelo de apoio à vida independente” pelo Decreto-Lei Nº 129/2017, um dos frutos da passagem por funções governativas de uma ativista dos direitos das pessoas com deficiência, a Secretária de Estado Ana Sofia Antunes, ela própria uma pessoa cega.

Não é agora o momento de falar dos sucessos e das dificuldades da mudança de visão nas políticas para a deficiência em Portugal. Hei-de voltar a elas. Mas a notícia sobre o vírus da poliomielite, fez-me recordar Adolf Ratzka, falecido este ano, e as suas causas. Dezembro tem nos seus primeiros dias o dia internacional das pessoas com deficiência, celebrado desde 1992 a 3 de dezembro, procurando mobilizar as sociedades para o apoio à dignidade, aos direitos e ao bem-estar das pessoas com deficiência. O movimento da vida independente em que Ratzka mergulhou na Califórnia e que tanto advogou na Europa é um quadro de boa realização da vida digna para todos. Como ela dizia “a Vida Independente é sobre ter o mesmo leque de opções e o mesmo grau de autodeterminação que as pessoas sem deficiência têm garantidas.” Toda a diferença entre a realidade e este objetivo é responsabilidade nossa, coletiva.

 

Data de introdução: 2024-12-11



















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