O cartaz do encontro não podia ser mais premonitório. A árvore que metaforizava a Família medrou nos discursos e reflexões da maioria dos palestrantes. Se bem que congregados no desejo de ver florir mais Família, mais famílias felizes, a maioria dos oradores não se coibiu de alertar para a mole imensa de pragas que vão corroendo a árvore, extirpando-a do verde viçoso e florido, deixando negros e esqueléticos galhos como herança para os vindouros.
Não houve unanimidade no diagnóstico. Quem está mais perto do governo (com ele trabalhando ou colaborando), traçou cenário mais optimista. Quem está no terreno não vê adubar as 100 medidas prometidas pelo actual executivo. Não se contrapôs centena de riscos, mas elencou-se número bastante para nos preocupar a todos.
Falamos do seminário subordinado ao tema “A família face à exclusão”, encontro promovido pela CNIS, em Fátima, no passado dia 29 de Maio.
A abrir o encontro, o Presidente da CNIS deixava o alerta. Sendo a família uma “questão decisiva”, o “assunto do século XXI”, os políticos andarão distraídos, descuidando colocá-la no topo das suas prioridades. Ao catálogo de 100 medidas anunciadas pelo actual governo, o Cónego Francisco Crespo chamou-lhe “100 puros desejos” que urge levar à prática “com a maior urgência possível”.
100 COMPROMISSOS, EM VEZ DE CEM MEDIDAS
Margarida Neto, Coordenadora Nacional para os Assuntos da Família (CNAFA), preferiu chamar-lhe “100 compromissos”, sendo “alguns da responsabilidade do Estado e outros da comunidade”. Pediu ajuda para a implementação da centena, alertou para a necessidade de todos disponibilizarmos mais tempo às nossas famílias: “Se é verdade que a família é hoje mais democrática, verificamos que a disponibilidade é menor, porque não há tempo. E este é um grande dilema. Não é por acaso que o divórcio sobe, que o recurso às drogas disparou de novo, que o abandono escolar tem aumentado” – afirmou Margarida Neto.
Dulce Rocha (Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco - CNPCJR), enfatizou a necessidade de se promoverem mais políticas de inclusão, desiderato com potenciação viabilizadora através da participação das IPSS: “Neste capítulo, a contribuição das IPSS é muito importante. Defendo uma colaboração institucional entre as instituições e as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, cujo número já ronda as 250 no nosso país”.
“Não há outra via que não seja a da cooperação” – acrescentou a oradora, para quem “em vez de intervirmos para remediar, devemos intervir por antecipação, e sempre promovendo a inclusão na família”: “Procuremos sempre a medida de apoio junto da família” – pediu Dulce Rocha.
Antes de entrar, com profundidade bastante aplaudida, no âmago da questão em debate, Maria do Rosário Carneiro pregou alfinete na contenda denominatória “100 medidas? – 100 Compromissos?”:
“Pelo que vejo são intenções. Espero sinceramente que estas intenções não sejam aquelas que fazem o inferno estar tão cheio!” – ironizou a deputada independente, eleita nas listas do PS.
Para a parlamentar, a família é “o primeiro grupo inclusivo, a primeira das estratégias para a inclusão, o sítio da felicidade, onde realizamos o nosso projecto de vida de sermos felizes com outros”: “É o sítio da confiança, onde todos nos conhecemos. O sítio do capital social, o sítio da sustentabilidade social”.
Maria do Rosário Carneiro lembrou as “alterações fantásticas” que se verificaram no tecido social, nas últimas décadas. A conquista da igualdade de direitos entre homens e mulheres surge à cabeça do rol, conquista de sedimentação “irreversível”, que “nunca pode ser colocada em causa em nome de nada”: “A democratização da família, a paridade entre o homem e a mulher na gestão da casa é uma revolução notável. Nós é que revelamos, muitas vezes, incapacidade para gerirmos esta articulação”.
“A DENSIDADE HORÁRIA TERRÍVEL DAS MULHERES TRABALHADORAS”
Notou a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, ratio de 54,8% para os homens e 42% para o sector feminino. Mulheres com 40,7 horas de tempo de trabalho médio, a que há que somar os dispêndios nos transportes, mais duas horas diárias nas tarefas do lar. Tudo somado, às mulheres exigem-se 54,7 horas semanais de trabalho, cifra pesada se atentarmos no facto de 93% das mulheres que trabalham o fazerem a tempo inteiro. Há mais dados. Por exemplo, 68% das mulheres que trabalham não interromperam a sua actividade para dar apoio à família, porque “a maioria das famílias não pode dispensar um dos salários”.
À “densidade horária terrível”, Maria do Rosário Carneiro anexa as “crescentes dificuldades económicas das famílias”, lembra o “meio milhão de desempregados” actualmente existente em Portugal.
A este “contexto nacional de empobrecimento”, acresce o facto de 26% das mulheres trabalhadoras terem os filhos à sua guarda: “Outros 26% estão confiados às redes informais da família alargada. Ou seja, temos 52% de crianças à guarda da rede informal, com apenas 33% sob a responsabilidade da rede formal. Número interessante, este!” – pontua a deputada, libertando explicação dramática: “Isto acontece porque o recurso à rede formal não é acessível à maioria das famílias”.
No capítulo dos idosos – números indexados a famílias trabalhadoras e não ao universo global da população portuguesa, a exemplo dos anteriormente carreados –, “2,6% estão em lares, havendo 52,6% a viver com as suas famílias e 44,8% nas suas próprias casas”.
Também aqui, segundo a deputada, “os que estão nas instituições são os que têm maior capacidade económica”.
É tendo por base estes dados estatísticos que Maria do Rosário Carneiro sustenta estarem, hoje em dia “as famílias mais pobres”: “As famílias empobreceram, são pobres. Temos meio milhão de desempregados, e todos sabemos que, sem trabalho não há construção familiar. O desemprego é factor de ruptura familiar, os maiores índices de violência familiar têm o desemprego na sua génese. Isto para não falar da política de habitação, que dificulta significativamente a progressão das famílias”.
Maria do Rosário Carneiro reparte as culpas do actual estado de coisas: “As famílias têm culpas, porque perderam competências. A comunidade também, basta olharmos para o facto de sermos o país europeu com menos capital social. E temos a responsabilidade do Estado, seja a nível das políticas universais, seja das compensatórias”.
O negro do lado direito do cartaz vai-se adensando. O diagnóstico sereno de Paulo Delgado confere mais crueza aos ramos vazios, escancaradamente abandonados pelo verde-Esperança.
O professor universitário lembrou que as crianças a nascer por estes tempos, ou que tenham nascido nos últimos anos, têm mais probabilidade que os pais se divorciem do que serem acompanhadas por um irmão. Alertou para a necessidade de não nos atermos apenas às estatísticas oficiais, por exemplo as que medem o número de divórcios. Há outras cifras negras a ter em conta: “A ruptura familiar não passa apenas pelo divórcio. Lembro o abandono familiar, considerado o divórcio dos pobres”.
Não havendo projecções similares para Portugal, o director do IFCOOP (Instituto de Formação e Cooperação Internacional), lançou para o debate números de um estudo francês, recentemente publicado pelo Le Monde. Projecção para 2050 indica que um em cada três franceses terão mais de 60 anos nessa data, e que os idosos serão duas vezes mais que os jovens até aos 20 anos.
AUMENTO SIGNIFICATIVO DAS “CRIANÇAS-CHAVEIRO”
Paulo Delgado detalhou leque de factores de risco pairando sobre a família: o individualismo reinante, “no seu lado mais sombrio”; uma crescente “fragilidade do casal” e o consequente “aumento de rupturas”, a par do “consumismo” e da “perda de valores”.
A falta de tempo para a família não foi esquecida pelo docente universitário, constatando a existência de um número cada vez mais significativo de “crianças-chaveiro”: “Refiro-me às crianças que saem de casa já com os pais no trabalho, regressam da escola para aquecerem a comida no micro-ondas e depois ligarem a TV. Têm chave de casa, mas vão perdendo os pais de vista. Muitas vezes vão para a cama antes dos progenitores terem regressado do trabalho”.
No capítulo específico das famílias com crianças deficientes, Cristina Louro considerou fundamental que a estes agregados familiares se preste a ajuda necessária de molde a formar uma identidade própria em tais crianças:
“Apostemos num trabalho para a autonomia, em vez da campânula protectora que muitas famílias erguem em torno da criança com deficiência” – pediu a Secretária Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência (SNRIPD).
“Se queremos trabalhar para a autonomia, temos que ajudar à habilitação dos deficientes, ajudar as famílias a franquear os espaços públicos, a enfrentarem os olhares curiosos que tanto magoam” – sublinhou Cristina Louro, lembrando que a inadaptação ao social é muito complexa, pedindo por isso o esforço de voluntários que se disponibilizem a visitarem regularmente tais famílias, prestando-lhes o apoio e o conforto de que tanto carecem.
Joaquina Madeira denunciou os “três equívocos” que moldam o percurso geracional dos seres humanos. À fase prévia à produção (infância e juventude), associamos sempre a escola. A etapa da produção surge indissociavelmente ligada à empresa. Por último, a fase da pós-produção, do “descanso e desinvestimento do trabalho”, imageticamente lapada ao lar.
“Temos que descontruir este sistema tão segmentado, tão sincopado das idades” – pediu a Vogal do Conselho Directivo do Instituto de Solidariedade e Segurança Social (ISSS).
Outro equívoco reside no facto de, quando falamos de utentes dos lares, nos referirmos apenas às suas necessidades, “desvalorizando assim as suas capacidades e as suas competências próprias”.
“O terceiro equívoco traduz-se na ideia de massificação induzida pela expressão terceira idade. A terceira idade não tem um carácter identitário, do género um monte de gente que está ali e não produz. Ser velho não é um defeito, é uma qualidade. A vida é um contínuo de transformações e de adequação à mudança” – sublinhou Joaquina Madeira, defensora de “um envelhecer activo”, “a forma futura incontornável de envelhecer”.
TERCEIRA IDADE SÓ A PARTIR DOS 75 ANOS
Para fintar as estatísticas, que nos assustam com a chegada da “maré cinzenta”, o grosso grupo dos cabelos grisalhos, Joaquina Madeira propõe subir em 15 anos a fasquia que separa a chamada vida activa da fase em que entramos na terceira idade. Como hoje em dia se trabalha até mais tarde, como trabalhamos durante mais anos, a Vogal do ISSS defende que a terceira idade comece oficialmente aos 75 anos: “Dessa forma teremos muito menos idosos!”
Atendendo às funções que exerce, Joaquina Madeira foi muito interpelada pelos assistentes, alguns deles não se coibindo de criticar o desempenho do actual governo no que concerne ao apoio às IPSS. Respondendo às críticas, a oradora sugeriu um “ovo de Colombo”, já descoberto e posto em prática pelos espanhóis, nos mais diversos domínios: “Temos que trabalhar em rede, uns com os outros. Rentabilizar o que temos no local, e não fazermos tudo de costas voltadas. Os nossos recursos são insuficientes, razão pela qual devemos adoptar respostas colectivas para suprir tais carências”.
A última intervenção esteve a cargo de Paula Guimarães, que abordou o tema “A Família Cais e a Família Gaiola”. A Vice-Presidente do Instituto de Reinserção Social considerou preocupante o “processo de deserção da família enquanto prestação de apoio” aos elementos que dele necessitam.
Criticou, com veemência, as famílias ausentes durante meia vida, mas pressurosas em aparecerem na altura de herdar o património do ente falecido: “Devemos lembrar a todos que somos família sempre!”
Críticas também para aqueles que colocam nas mãos do Estado toda a responsabilidade no apoio aos idosos: “Choca-me bastante que, quando se encerra um lar, se venha dizer que a responsabilidade é toda do Estado e nunca da família. Família que nunca fiscalizou o serviço prestado pelo lar, que nunca vai buscar as pessoas ao fim de semana ou nas férias, que nunca tratou de fazer as perguntas prévias necessárias para aquilatar das qualidades do serviço prestado pela instituição”.
CONTRA O SUFOCO DA “FAMÍLIA-GAIOLA”
Para Paula Guimarães, a família não se deve transformar numa prisão para o idoso, tornando-se num espaço sufocante, numa “família-gaiola”. A família deve ser envolvida nas decisões que reportam ao futuro e ao bem estar do idoso, mas respeitando sempre a sua autonomia, o seu poder de decisão. A “família-cais” surge como contraponto: “Aqui entende-se o idoso como um elemento útil da família”.
Paula Guimarães defendeu a necessidade dos poderes públicos legislarem no sentido da instituição de uma “licença para apoio no fim de vida”: “Não critico a dilatação da licença de maternidade, mas constato que, para nós, a família são só os pais e os filhos. Esquecemo-nos que, para haver pais e filhos, houve uma geração antes, também houve avós”.
Considerou “triste” não serem dados incentivos às instituições de acolhimento temporário: “Neste quadro, de apoio apenas ao acolhimento permanente, estamos a estimular a deserção da família!”
A síntese conclusiva dos trabalhos ficou a cargo do Prof. Manuel Domingos. O Secretário da Direcção da CNIS aproveitou a metáfora da árvore para lembrar que a mesma simboliza um contrato de gerações, contrato de responsabilidades partilhadas por todos os ramos da família, dos mais jovens aos mais idosos.
“Independentemente do conceito que tenhamos de família, a subsistência e a felicidade da mesma esbarram frequentemente em dificuldades de natureza económica, também na falta de tempo e de disponibilidade para o acompanhamento dos vários elementos de um agregado familiar” – sublinhou aquele responsável da CNIS.
Para Manuel Domingos, os escolhos elencados no encontro de Fátima não são “mera utopia”, antes “problemas reais que urge resolver, nomeadamente através de políticas sociais promovidas pelo Estado”.
“Isto passa, necessariamente, por políticas de sustentabilidade económica, facilitando o enquadramento laboral, flexibilizando horários – nomeadamente das mulheres trabalhadoras -, criando também estruturas que permitam aliviar e apoiar o núcleo familiar”.
A promoção da habitação condigna, a aposta na formação humana, cívica e moral dos cidadãos, uma atenção especial às famílias com crianças portadoras de deficiência e às famílias albergando idosos no seu seio, foram outras das propostas resultantes deste encontro. Para que, num próximo seminário, o Verde-Esperança da esquerda do cartaz abafe, com a sua generosa e acolhedora ramagem, o negro austero e cruel da margem direita.
Manuel Domigos teceu ainda palavras de elogio à organização do evento, a cargo da empresa Margem C.C.E. Lda.
Solidariedade, Junho de 2004
Conclusões do Seminário - Texto integral
Texto de algumas comunicações
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