Cova e Gala são duas povoações da freguesia de S. Padre, na Figueira da Foz. Ficam do outro lado do rio, logo depois da Ponte dos Arcos. E se hoje são terras airosas, com progresso visível, há meio século eram simplesmente duas aldeias piscatórias, esquecidas pelos poderes políticos e económicos e com inúmeras carências, como que à espera de quem ajudasse as suas gentes. Foi o que aconteceu, em 1960, quando João Neto, pastor da Igreja Evangélica Presbiteriana, assume o seu trabalho pastoral na Figueira da Foz, com responsabilidades na assistência a pequenas comunidades circunvizinhas.
Nos primeiros contactos, apercebe-se das diversas dificuldades que atormentam as pessoas, tendo tomado consciência de que, “se a Igreja Presbiteriana queria cumprir a sua missão, tinha de actuar corajosamente”. Daí nasceu o “Projecto de Desenvolvimento da Cova e Gala”, matriz do actual Centro Social, que tem como fins principais implementar acções do âmbito da segurança social, “nomeadamente nas áreas comunidade, família, terceira idade, invalidez e reabilitação”, como sublinha o pastor João Neto ao SOLIDARIEDADE.
A primeira impressão que o jornalista regista ao chegar ao Centro Social da Cova e Gala (CSCG) foi um certo ar de cooperação internacional. As férias de Verão estão em curso, para muitas crianças, mas por ali há actividades programadas para este tempo, de mistura com jovens alemães que participam num Campo de Trabalho.
Volker Schwach, responsável pelo voluntariado na Igreja Evangélica da Renânia, fala ao SOLIDARIEDADE dessa experiência. Um grupo de 22 jovens (dez raparigas e doze rapazes) e quatro líderes vêm para a Cova e Gala por três semanas, para colaborar no Centro Social e para conhecer um pouco o nosso País. Pintam o muro do ATL, entre outras tarefas, convivem com outros jovens presbiterianos e católicos, em espírito ecuménico, e participam em visitas a Lisboa, Porto e Coimbra.
Volker Schwach lembra que estes Campos de Férias, com ligação ao Centro Social, têm proporcionado o intercâmbio com jovens portugueses, alternadamente. No ano passado, um grupo português esteve na Alemanha. “Sempre foi assim, mas acho que a partir de agora os jovens alemães virão para Portugal todos os anos, porque os portugueses não podem ir para a Alemanha, por falta de dinheiro para a viagem e para tudo o mais”, frisa.
Questionado sobre a importância destes Campos de Trabalho na formação dos jovens que neles participam, o nosso interlocutor adianta que “todos ganham uma grande experiência de solidariedade”, mas também sentem o prazer de saber “que as crianças do Centro vão beneficiar do contacto com pessoas de outro país”. Além disso, os jovens alemães lucram muito no convívio com os jovens das comunidades da Cova e Gala e nos cultos em que participam, no âmbito da Igreja Presbiteriana.
Este aproveitamento pelo CSCG dos Campos de Férias Internacionais, ano após ano, não surge por acaso. Tudo começa há décadas, quando o Pastor João Neto participa, em 1948, num Campo Internacional de Trabalho dinamizado pelo Conselho Mundial das Igrejas, com sede em Genebra, Suíça, fundamentalmente para promover a aproximação de jovens oriundos de países que anteriormente tinham sido beligerantes, durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, apaixona-se pelas relações internacionais e na Itália conhece um Projecto de Desenvolvimento Comunitário que logo procura adaptar nas aldeias de Cova e Gala, num esforço de responder às grandes carências das suas populações. Também toma conhecimento das teorias do pedagogo brasileiro Paulo Freire, que conhece pessoalmente, e tudo serve para pôr de pé o seu “Projecto de Desenvolvimento Comunitário, Integrado e Integral”, numa época em que a ditadura do chamado Estado Novo não alinha nada com iniciativas que levassem as pessoas a pensar e a lutar pela sua emancipação e pelo seu progresso social, cultural e económico.
Sabendo que, em 1975, 33 por cento da população portuguesa trabalha na agricultura, enquanto o País importa mais de 60 por cento daquilo que era necessário para a alimentação do nosso povo, João Neto lança um projecto de promoção agrícola nas dunas de Cova e Gala, especialmente vocacionado para a cultura intensiva, por meio de estufas. Foi um trabalho em colaboração com o Ministério da Agricultura, através da Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral.
Na altura, e em paralelo com os trabalhos agrícolas, são promovidos vários cursos de formação para jovens agricultores, e não só, de Norte a Sul do País. Outros agricultores, mais velhos, “vieram conhecer a experiência e todos ficam admirados com as estufas (nessa época havia poucas em Portugal) e com a rega gota a gota, que era então uma novidade”, recorda João Neto com certa alegria no olhar.
Neste momento, o Centro Social mantém ainda, em franca actividade, o sector agrícola, a “FOZPLANTA”, dedicando-se apenas à floricultura, “por uma questão de mercado e de preços”, diz o fundador desta IPSS.
Em 1984, o CSCG, que nasce, no fundo, sob tutela da Igreja Presbiteriana, adquire personalidade jurídica como projecto autónomo, apostando em combater o isolamento das povoações e suas gentes, e levando-as, precisamente, a abrirem-se ao exterior. Aliás, segundo explica o Pastor João, esta “era uma forma de tentar modificar mentalidades, tornando-as mais abertas”, o que é indispensáveis para se avançar, no sentido do progresso.
“Sempre demos muita atenção ao voluntariado, sobretudo em cooperação com o voluntariado internacional. Desde o início, temos recebido jovens de diversos países, uns que vêm trabalhar connosco nove meses ou um ano e outros que vêm apenas nos seus tempos de férias. Há jovens estrangeiros que antes de ingressarem nas universidades fazem uma pausa de um ano, prestando um serviço à comunidade. Nesse sentido, conseguimos que muitas dezenas de rapazes e raparigas viessem trabalhar connosco”, frisa o nosso entrevistado.
Revelando ao SOLIDARIEDADE que o CSCG já organizou 113 Campos Internacionais de Trabalho, com centenas de jovens de diversos países europeus, mas também do Canadá e dos Estados Unidos, o pastor João Neto sublinha que a instituição que dirige já proporcionou a participação de jovens portugueses em Campos de Trabalho no estrangeiro, sentindo, no regresso, que muitos vêm “mais estimulados para a vivência do voluntariado e da solidariedade”.
Quanto maior é a crise, mais as pessoas vêm ao nosso encontro
Os contactos com as pessoas foram privilegiados e hoje considera que “esse caminho foi um contributo formidável para todo o trabalho que se foi desenvolvendo”, diz. E acrescenta: “Por vezes, as coisas começam por cima e nós começámos por baixo, no encontro com as pessoas, nas tabernas, na praia, onde fosse possível, ouvindo as suas queixas, as suas aspirações.”
Presentemente, o CSCG mantém em plena actividade as valências que servem de apoio concreto às famílias, nomeadamente Creche e Jardim-de-Infância, ATL, Apoio Domiciliário a idosos e a outros dependentes. Tem dinamizado cursos abertos a funcionários da instituição, na linha do reconhecimento da premência da formação contínua, esperando alargar essa acção, num futuro próximo, a outros grupos, graças a um projecto que está na forja.
O Centro tem um Gabinete de Acção Social, de atendimento e apoio psicológico, estendendo a sua intervenção a toda a freguesia de S. Pedro e mesmo para além dela. Nesta área, o serviço social promove ajudas, em cooperação com diversas entidades e instituições. E não falta o espaço Butik, onde se distribuem brinquedos, roupas para todas as idades e artigos para o lar, entre outros.
O CSCG integra a Rede Inter-Institucional de apoio às vítimas de violência familiar, atendendo, actualmente, situações da zona sul do concelho da Figueira da Foz.
“Alternativa Jovem” é outra valência que leva à prática, no dia-a-dia, o apoio a jovens em risco. É um espaço de encontro, de prevenção das toxicodependências e de encaminhamento para instituições especializadas de alguns que caíram nas malhas das drogas.
O fundador e presidente desta instituição sente que as populações da freguesia de S. Pedro vivem, desde a primeira hora, em sintonia com os projectos implementados pelo Centro Social. “As pessoas participam nas nossas iniciativas, até porque nós continuamos a ir ao encontro delas; colaboram como podem, apesar de bastantes serem pobres”, garante o Pastor João Neto.
Sobre o trabalho em rede, uma necessidade e uma urgência dos tempos de hoje, o presidente João Neto adianta que esse princípio, vital na área social como noutras, já o acompanha desde que iniciou o seu trabalho na Figueira da Foz. No entanto, acha que esse espírito se tem tornado cada vez mais indispensável, para se poder responder aos problemas das pessoas, com mais eficácia. Lembra, por isso, o lema que o tem acompanhado na vida, “Não fazermos sozinhos o que pudermos fazer juntos”, e que procura testemunhar no dia-a-dia, “como uma maneira de estar na comunidade”. E acrescenta: “É com muita alegria que eu posso afirmar que toda a gente reconhece este espírito que preside ao Centro Social, de esforço e de colaboração.”
Sendo apologista das parcerias, o presidente do CSCG garante que vai continuar a lutar, como sempre lutou, “pela necessidade de estarmos juntos e de cooperarmos com outros, trocando experiências, partilhando opiniões e vivendo a ajuda mútua”. Nessa linha, salienta que o Centro deve “continuar a ser uma instituição de porta aberta, no sentido de estar atento a todos os que precisam do seu empenhamento social”.
“Não só procuramos que outros nos dêem experiências e conhecimentos, dos quais nós próprios beneficiamos, como por outro lado vamos ao encontro dos demais, para em conjunto encontrarmos caminhos que ajudem o trabalho que queremos e devemos fazer para e na comunidade”, realça. E logo adianta que “esta abertura e esta colaboração em rede são vividas tanto na freguesia de S. Pedro como a nível do concelho da Figueira da Foz”.
Ao nível da Comissão Social de Freguesia, quando os problemas são detectados, o Centro assume algumas respostas, como acontece com as instituições e entidades intervenientes, nomeadamente o Centro de Saúde, Escolas e Hospital, entre outras.
Não se julgue, contudo, que o Centro Social, tal como as outras IPSS, vive sem dificuldades. “Isto é uma luta diária, porque as comparticipações do Estado são insuficientes”, lembra. E explica: “Quanto maior é a crise, como é aquela que estamos a viver, pior, porque as famílias vêm mais ao nosso encontro, à procura de apoio.”
Assim, refere João Neto, o CSCG conta com ajudas do Banco Alimentar contra a Fome e da Segurança Social para poder fornecer alimentos a 135 famílias, mensalmente. E como o que recebe para distribuir é pouco, o CSCG tem recorrido a ajudas externas, sobretudo de comunidades ligadas às Igrejas Protestantes, que fazem parte dos contactos internacionais mantidos pelo Pastor João Neto, desde que começou o seu trabalho pastoral no concelho da Figueira da Foz.
A instituição canaliza, para as famílias carenciadas, algumas receitas do sector agrícola, que faz parte integrante do seu projecto, desde a primeira hora. São receitas pequenas, “porque pagamos impostos e queremos manter os seis postos de trabalho”, afirma o nosso entrevistado. Informa, depois, que recebeu, no ano passado, um contributo de uma associação de emigrantes portugueses radicados nos EUA, e diz que têm chegado, regularmente, boas contribuições de Grupos de Serviço, como os Lions, sendo certo que da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia não se pode esperar muito, “porque a crise é grande”, refere.
João Neto, presentemente pastor aposentado da Igreja Presbiteriana, não deixa de ter sonhos, que quer concretizar o mais depressa possível. “Temos o Projecto Esperança que está a começar e que precisa de 500 mil euros, só para o lançar, com a construção de alguns edifícios”, diz, com certo ênfase, reflectindo grande confiança no futuro.
Trata-se de um Centro de Acolhimento para crianças em risco e para pessoas que sofrem de violência familiar (mulheres, homens, crianças e idosos). Também de Formação Profissional para muita gente. Ainda vai ser local de encontro de grupos nacionais e internacionais. Estes “virão com o objectivo de nos proporcionarem alguns meios financeiros, que hão-de servir para a manutenção do próprio CSCG”, sintetiza João Neto ao SOLIDARIEDADE.
As obras deste Projecto Esperança devem estar concluídas dentro de dois ou três anos, se tudo correr à semelhança do optimismo do presidente da instituição. O mesmo nos garante “ter os pés bem assentes no chão”, quando avança com qualquer iniciativa de importância social ou de outra natureza.
* Texto e fotos de
Fernando Martins
Data de introdução: 2006-09-16