A visita começou de forma banal. Fomos recebidos nos Serviços Centrais e encaminhados para o gabinete do director e presidente da instituição particular de solidariedade social. O professor Manuel Domingos havia já preparado um dossiê que continha em traços gerais o historial e a caracterização da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Viana do Castelo (APPACDM), que abriu as portas em 1972. Nesse documento tínhamos toda a informação factual para explicar em que consistia o trabalho dos mais de 420 trabalhadores das diversas infra-estruturas que compõem a APPACDM de Viana, que está integrada a nível nacional na Humanitas, Federação Portuguesa para a Deficiência Mental. Isso e mais algumas perguntas ao presidente poderiam ter sido suficientes para dar a conhecer uma instituição que enquadra perto de 750 utentes nos seus diversos serviços. No entanto, foi-nos proposta uma viagem num mundo onde as diferenças têm direito a igualdade de oportunidades e onde a felicidade encarna rostos de eternos meninos.
Primeira paragem: Serviços Técnicos. Aí conhecemos Francisco Barbosa, de 44 anos, que nos explicou que é naquela estrutura que está enquadrado todo o apoio e suporte à dinâmica de reabilitação da pessoa com deficiência, com serviços de psicologia, terapia ocupacional, terapia da fala, serviço social e cuidados de saúde. O Francisco é funcionário administrativo da instituição e possui cerca de 90% de incapacidade motora, resultante de um acidente de moto que sofreu com apenas 24 anos de idade e que mudou completamente o rumo da sua vida. Natural de Viana do Castelo, a APPACDM transformou-se numa das poucas saídas profissionais que podia optar. “Houve um período de adaptação difícil e, na altura, concorri para cá porque fui encaminhado através do centro de formação que frequentai em Lisboa, quando estive em reabilitação”, explica Francisco. O profissional diz que se sente totalmente integrado no serviço e que não tem qualquer dificuldade no desempenho do seu trabalho, pois o edifício está totalmente adaptado aos cidadãos com mobilidade reduzida.
A instituição dá particular relevo à formação profissional, que tem como objectivo promover a inserção dos formandos no mercado de trabalho e, por essa via, na sociedade em geral. Seguimos viagem a caminho do Centro de Educação e Formação Profissional da Areosa, que conta com 150 utentes distribuídos pelas diversas áreas. No hall de entrada um grande quadro desenhado a carvão cobria toda uma parede lateral e continha a mensagem “Sou como tu…somente sou especial”, ilustrada pelo desenho de duas mãos unidas. Guiados por José Duarte, director daquele centro, fomos conhecer as diversas áreas de formação desde a jardinagem, à carpintaria, à construção civil, à tecelagem, etc.
O director explicou-nos que ao nível da formação cobrem uma área que compreende quatro concelhos: Viana do Castelo, Caminha, Vila Nova de Cerveira e parte de Paredes de Coura. Os alunos dispõem também, de outra estrutura de integração, o Centro de Emprego Protegido, que apresenta uma resposta de integração sócio-laboral para os seus trabalhadores, em serviços de lavandaria, serralharia, hotelaria, carpintaria, floricultura, jardinagem, entre outros. O centro já tem estabelecido à volta de 240 contratos de manutenção com empresas e particulares, em que os seus trabalhadores vão prestar serviço nas áreas solicitadas pelo cliente. Eduarda Fonte, coordenadora do sector agrícola do Centro de Emprego Protegido de Viana do Castelo afirma que “as receitas vão garantindo o financiamento das diversas empresas de inserção”, embora ressalve que a viabilidade económica ainda não foi atingida. A dinâmica da associação promove a independência e a responsabilidade social dos utentes. A partir do momento em que a pessoa tem um projecto de vida solidamente estruturado e capaz de uma concretização prática, é-lhe dado todo o acompanhamento no sentido de promover a sua independência.
Augusto Canário, como é conhecido o animador sócio-cultural do centro, já trabalha na APPACDM há 24 anos. Ocupa-se da produção e organização de diversos eventos culturais, tais como: a festa do magusto, a quadra natalícia, onde representam um presépio vivo, a Páscoa, etc. O animador refere que já sonhou em ter teatro na instituição, mas é, ainda, uma ideia por concretizar. “Tive um dia o sonho de termos aqui actividades de expressão dramática, para que mais tarde, pudéssemos integrar alguns dos nossos jovens na companhia de teatro de Viana, mas a ideia não vingou”, confessa desiludido, acrescentando de seguida que “o teatro em geral está pelas ruas da amargura”. O profissional que é cantor nos tempos livres, daí o Canário, não tem dúvidas em afirmar que trabalhar com estas pessoas é muito gratificante. “Nós somos um bocado como o burro das jóias: somos muito felizes pelas jóias que carregamos”, ilustra metaforicamente antes de nos apresentar os cabeçudos, que constituem um ex-líbris de produção na APPACDM, usados nas festas e romarias.
Numa sala mais à frente chegamos a uma oficina de trabalho onde se confeccionam os tais cabeçudos e somos recebidos com surpresa pelos utentes. Rosa Garcia, auxiliar de acção pedagógica, enquanto continua a trabalhar a pasta de papel que irá dar origem a mais um cabeçudo, diz-nos que o carinho que deposita em cada um dos utentes é-lhe devolvido na mesma forma. “Nós gostamos muito deles e eles de nós e se ao princípio é mais difícil de comunicar, com paciência tudo se consegue”, esclarece a senhora um pouco envergonhada com a nossa presença. Dores Pinheiro, também auxiliar pedagógica concorda que “estas crianças precisam de muito mais tempo para comunicar connosco”, mas acrescenta que a melhor parte do seu trabalho é “elas conhecerem-nos e procurarem-nos com carinho em várias situações”.
A APPACDM dispõe de um outro serviço denominado por Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), que está direccionado para o desenvolvimento das capacidades remanescentes das pessoas com deficiências graves, onde encontramos uma avó que acompanhava o neto de 12 anos, um menino com um grau de deficiência muito profundo. “Quando isto acontece, no início, é muito difícil, mas depois a pessoa habitua-se e pronto”, explica-nos Elsa Pires. Apesar de ter mais quatro netos, aquele reúne um carinho muito especial. “Ele precisa de nós para tudo e eu dou-lhe toda a atenção que posso. Ele não fala, mas sei que me ouve”, afiança.
Num mundo em que não se espera pelas oportunidades de ouro, mas se retira o ouro das oportunidades que surgem, as diferenças são respeitadas e encaradas como oportunidades de vida. Como bem descreveu Manuel Domingos, director-geral da instituição “o que importa é que toda a gente esteja dentro do comboio, mesmo que ocupe o último lugar da última carruagem, mas que esteja nesta viagem”.
Leia a entrevista a Manuel Domingos, Presidente da APPACDM de Viana do Castelo
Data de introdução: 2006-10-06