Manuel Domingues está à frente da APPACDM de Viana do Castelo há mais de três décadas. Professor, licenciado em Filosofia e Teologia pelo Seminário de Braga, foi destacado pelo Ministério da Educação e, na altura, assumiu, simultaneamente, a gestão da instituição recentemente criada, optando posteriormente por desempenhar o cargo de director a tempo inteiro. Casado, com 57 anos, este vimaranense elege o trabalho que desempenha como “um projecto de vida”, ao qual se entrega com toda a dedicação.
SOLIDARIEDADE - Os números médios de pessoas com deficiência apontados a nível nacional situam-se na casa dos 9%, mas no distrito de Viana esta percentagem atinge os 21%, colocando o distrito em primeiro lugar. Que factores podem explicar esta disparidade tão grande?
MANUEL DOMINGOS - Estes números são assim, de facto. Foram recolhidos por amostragem pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo Secretariado Nacional de Reabilitação em 1995. A realidade de Viana é muito complicada e nela existem uma série de factores que levam a esta diferença. Na lógica de gerirmos o crescimento desta instituição rapidamente percebemos que não nos podíamos cingir ao concelho de Viana do Castelo, mas tínhamos que alargar o raio de acção. A primeira investida que fizemos foi no concelho de Monção. Isto aconteceu, porque um dia apareceu-me no serviço um conjunto de 25 pais com os filhos pelas mãos e que vinham determinados a não sair de Viana sem uma resposta, porque, já na altura, o sistema educativo não acolhia e não permitia o desenvolvimento harmonioso das capacidades dos filhos. Quisemos averiguar a situação e apareceram resmas de candidatos… Não podíamos acreditar naqueles números e fomos para o terreno averiguar, com base nalguns índices da Organização Mundial de Saúde. E para se ter uma ideia, ao percorrer apenas um terço do concelho, e só fomos onde a viatura conseguia circular, ao fim de dois meses já tínhamos 30 casos declarados de deficiência. Íamos verificar um caso e apareciam logo mais dois ou três, todos eles como situações que não estavam correctamente diagnosticadas pelas entidades competentes. Julgo que o mau diagnóstico é uma das causas que justificam os números. O facto de não se ter investido durante muito tempo na educação, na saúde e nas acessibilidades potenciou a situação actual.
SOLIDARIEDADE - A situação é, portanto, muito dramática, apesar de estarmos em pleno século XXI.
MANUEL DOMINGOS - Fomos encontrar situações que não lembram a ninguém…Aqui, a dois passos da cidade de Viana, em zonas com boa acessibilidade, há pouco mais de um ano foram encontrados casos muito complicados. Um deles, diz respeito a um “menino” de 42 anos, que estava fechado num quarto sem janelas, todo pintado de azul, numa cama de ferro com grades e que dispunha apenas de uma manta de apoio. Viemos a descobrir que esse senhor recebia o apoio de um pediatra que lhe receitava a medicação por telefone e nunca fora visto por nenhum médico. Outro caso, também próximo da cidade, dá-nos conta de uma rapariga, agora nossa utente, que fomos encontrar dentro de um galinheiro, a viver com as galinhas.
SOLIDARIEDADE – Situações muito difíceis de lidar e cada caso representa uma pessoa e um problema. Não é fácil gerir uma instituição desta envergadura?
MANUEL DOMINGOS – Costumo dizer, parafraseando um amigo, que o nosso problema é gerir estes “pendericalhos”, ou seja, os centros. Estou responsável pela gestão de 38 estruturas físicas. Significa isto que ficamos com muito pouco tempo para fazer aquilo que, efectivamente, deveríamos fazer, ou seja, apetrechar e consciencializar a sociedade em geral e as pessoas e as famílias com deficiência em particular para os seus direitos e deveres. Não olhamos para a deficiência como um problema, mas sim como uma oportunidade de desenvolvimento. É urgente acabar com o estigma e assumir o direito à igualdade de oportunidades.
SOLIDARIEDADE – A instituição tem crescido ao longo dos anos e conta actualmente com uma rede de infra-estruturas multifacetada que presta apoio a cerca de 750 utentes. Sei que adopta um perfil de gestão empresarial…
MANUEL DOMINGOS – Em primeiro lugar, defendemos que as respostas às pessoas com deficiência devem ser disponibilizadas o mais perto possível do seu habitat natural, pois a pessoa com deficiência é uma pessoa que está em desenvolvimento como qualquer outra e temos o dever de facilitar esse desenvolvimento. Só nós, APPACDM, interagimos diariamente com cerca de 1200 pessoas, entre trabalhadores e utentes. Veja o que isso representa em termos de potencial económico, cultural e outro. Se a este número juntarmos as famílias onde intervimos, estaremos a falar de um universo diário de, aproximadamente, 5000 pessoas.
SOLIDARIEDADE – Considera a APPACDM como uma IPSS diferente das demais?
MANUEL DOMINGOS – Fazendo minhas as palavras do Sr. Padre José Maia, digo que, como as outras nós somos uma instituição, mas não somos uma instituição como as outras e isto não é nenhum trocadilho de palavras. Desde logo, temos a concessão que esta resposta deve organizar-se em termos verdadeiramente empresariais, pois deve buscar o auto-financiamento. Isto não significa que sejamos racionalistas ou calculistas na gestão da instituição, pelo contrário, somos pessoas flexíveis, atentas e de um humanismo extraordinário. Transformamos este trabalho num projecto de vida.
SOLIDARIEDADE – Qual tem sido o papel do Estado na resposta a esta problemática?
MANUEL DOMINGOS – Digamos que o Estado vai tomando consciência de que, efectivamente, é um parceiro no meio deste processo. Tempos houve em que se foi demitindo, deixando quase em exclusivo para as instituições a responsabilidade do enquadramento deste sector, e não falo só da deficiência, mas do social em termos gerais. No entanto, cada vez mais o Estado está consciencializado e vai adequando todo o ordenamento financeiro para ser um parceiro. O Governo, por pressão das organizações e das famílias, consagrou na Constituição Portuguesa os direitos e os deveres das pessoas com deficiência, no artigo nº 71, que é um artigo genuíno em termos das constituições europeias e até a nível mundial. Claro só pouco a pouco é que a lei passa à prática e ainda temos muito que caminhar.
SOLIDARIEDADE – Ao fim de mais de três décadas à frente da APPACDM, quais são os desafios que ainda se põem?
MANUEL DOMINGOS – Os grandes desafios de hoje continuam a ser os mesmos da primeira hora. Onde quer que exista uma pessoa com deficiência devemos encontrar a resposta mais adequada para a satisfação das suas necessidades, não a desenraizando. Apesar de já estarmos instalados em oito dos 10 concelhos com estruturas físicas, há ainda dois concelhos onde não chegamos. Temos vários projectos em curso que visam rentabilizar os recursos que temos e disponibilizar respostas para a comunidade. O nosso plano de trabalho tem como objectivo duplicar o número de atendimentos a pessoas com deficiência, dando um contributo na criação de emprego e por outro lado, com esta dinâmica, criar uma capacidade de auto-financiamento muito superior àquela que existe neste momento e que está na casa dos 40%.
SOLIDARIEDADE – Dada a experiência de interacção da APPACDM com instituições similares de outros países, considera que estamos a dar respostas ao mesmo nível das respostas dadas em termos internacionais?
MANUEL DOMINGOS – Em termos teóricos, de conceitos e de práticas estamos muito bem. O nosso grande dilema prende-se com a nossa menor capacidade financeira. Considero que estamos ao nível do que de melhor se faz na Europa. Temos, inclusive, várias parcerias em que muitas instituições vêm cá beber a nossa experiência de trabalho e de gestão.
Data de introdução: 2006-10-06