O consumo de drogas de forma viciada tornou visível uma enfermidade a que já não é possível ficar alheio. Os toxicodependentes já não são invisíveis. Deambulam, sobretudo, pelas cidades repetindo circuitos entre o ponto de tráfico das drogas, o sítio em que a consomem e os locais onde arrecadam o dinheiro para as comprar. É uma via sacra de urgência para aplacar o vício que destrói o corpo por dentro.
Em Lisboa, no Porto, nas cidades do interior, o caudal dos dependentes, um novo tipo de pobres, vai engrossando à vista de toda a gente. Em Portugal há várias estratégias de combate que vão desde a distribuição de preservativos e seringas, pelas inúmeras equipas de rua, até ao internamento em clínicas de desintoxicação e recuperação, de custos exorbitantes para as famílias e de baixa eficácia. Pelo meio há o programa de substituição de opiácios feito através do fornecimento de metadona que funciona nos conhecidos CAT’s (Centro de Atendimento a Toxicodependentes).
Entre o alheamento social até à proibição são muitas as atitudes políticas perante o flagelo das drogas.
O exemplo que reportamos aqui no Solidariedade refere-se a uma resposta social que tem sido muito discutida em Portugal mas que nunca foi experimentada. Trata-se de uma sala de consumo assistido em Bilbao, cidade basca espanhola, que pode constituir um caso de referência. Destina-se a fazer face à evidência. É um recurso para melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão dependentes das drogas (por via intra-venosa, fumada ou “snifada”) e que se encontram em situação de risco e/ou exclusão social. É uma forma de dar alguma humanidade àqueles que já não se importam de serem vistos a injectar-se no vão dos prédios, nas lixeiras ou na rua; que não se importam da higiene pessoal; que não se importam com as doenças que contraiem, por utilizarem seringas de outros; que não se importam do local onde dormem; enfim, dos que não se importam com nada desde que consigam a dose seguinte.
Uma sala de consumo assistido no meio da cidade
Bilbao tem mais ou menos o mesmo número de habitantes que a cidade do Porto. E problemas com a droga como todas as cidades. A zona de tráfico mais intenso situa-se no centro na parte mais antiga, nos bairros de Bilbao la Vieja e S. Francisco, zona de comércio, de imigração, e diversão nocturna.
Foi nesta zona problemática que, em 2003, os Médicos do Mundo instalaram uma sala de consumo assistido de drogas ilegais. Em Espanha, onde há seis dispositivos destes, é a única que se situa no centro histórico de uma cidade. José Júlio Pardo, Presidente dos Médicos do Mundo do País Basco justifica esta opção com a proximidade aos locais de tráfico: “É uma zona onde os vizinhos estavam habituados a ver o movimento de gente a consumir por todo o lado”.
A forma de vencer a resistência dos vizinhos e a reserva dos políticos foi envolvê-los na concepção e na implantação do projecto. Todas os partidos foram convidados a visitarem a sala ainda antes dela abrir; foram realizadas inúmeras reuniões com os vizinhos. Não foi fácil. “A princípio havia medo”, recorda Jesus Coltroviejo, representante dos vizinhos da sala de consumo de Bilbao. “Esta é uma zona que é uma espécie de porta de entrada para a zona mais marginal. Todos tinham medo que houvesse uma acumulação de toxicodependentes. Com o passar do tempo a mudança de atitude foi absoluta.”
Num edifício residencial no centro histórico de Bilbao, os Médicos do Mundo ocuparam os dois andares inferiores, reservando a cave para a sala de consumo. A entrada faz-se por uma porta lateral, discreta, que está normalmente fechada mas que se abre muitas vezes ao dia. “Esta sala está aberta a todos os consumidores de droga, entre aspas, que são ilegais. No início foi feito um estudo que dizia que havia 600 pessoas consumidoras. Neste momento já temos 1 700 histórias e temos aberto cerca de 400 novas histórias por ano”, explica José Júlio Pardo.
Até às onze e meia da manhã de todos os dias até às seis da tarde, os oito técnicos contratados e alguns voluntários com experiência repõem o stock de material. Tudo o que é necessário para o consumo, desde as seringas ao ácido cítrico, produtos alimentares e de higiene, material de uso médico. Só a droga não é fornecida, vem dos sítios do costume comprada pelos utilizadores do mesmo modo. Não há letreiros de localização, o boca-a-boca já funcionou plenamente. Toda a gente sabe que por aquela porta se entra para um local onde se pode consumir drogas em total segurança.
Se for a primeira vez tem que responder a um questionário minucioso; despojar-se de tudo o que possa constituir ameaças para si e para os outros. E esperar a vez de consumir. Há um limite de seis pessoas ao mesmo tempo em cada local.
A sala de consumo assistido de Bilbao tem regras rígidas de segurança e higiene e os frequentadores aceitam-nas sem resistência. “Isto não é uma sala de chuto. Uma sala de chuto é um local onde alguém vem para se injectar e se vai embora. O que temos aqui é uma sala de consumo assistido. Fazemos trabalhos com eles. Por exemplo, se estão à espera pela sua vez de consumir ou já depois do consumo, nós pomos em prática aquilo a que chamamos de escuta activa. Se têm problemas eles contam-nos e nós tentamos ajudá-los.”
Por dia há cerca de 70 pessoas diferentes a consumir. Muitos consomem várias vezes ao dia. Na grande maioria são homens, com uma idade média de 37 anos e longas carreiras de consumo, de 16 a 20 anos de uso de drogas, por diversas vias. Perto de metade da população frequentadora padece de hepatite C e cerca de 20% é portadora do vírus HIV. Em 2006, as mulheres, com uma idade média de 34 anos, representavam 17% dos utilizadores.
A sala tem um aspecto limpo, agradável e ordeiro. O movimento de toxicodependentes não pára. Depois de fumar, inalar ou injectar a cocaína, a heroína ou a mistura das duas cada utilizador tem que permanecer durante 15 minutos antes de sair ou voltar a consumir. É nessa altura que podem acontecer as overdoses. Na sala para além de psicólogos e assistentes sociais há enfermeiros. Um médico está sempre de prevenção.
Ao todo foram reencaminhados para tratamento perto de 400 toxicodependentes. O presidente dos Médicos do Mundo do País Basco sublinha que já se notam alguns resultados: “Estamos a constatar que desde que começamos este trabalho muitos mudaram a forma de consumo. Passaram da injectada para a fumada. Quando abrimos esta sala o que pretendíamos era que eles viessem para que tivéssemos possibilidades de falar com eles e de poder ajudá-los a que deixassem esta vida. Se estão na rua a consumir muito dificilmente chagamos até eles. Aqui há mais hipóteses.”
A sala de consumo assistido de Bilbao proporciona ao utilizador um espaço para o consumo de diferentes tipos, encontro e convívio social, serve para tomar uma bebida ou uma refeição ligeira e é também sala de realização de actividades e ateliers. O acompanhamento é feito com técnicos de diferentes áreas que vão dando crédito aos relatos das necessidades de ordem sanitária, social, psicológica, familiar. É uma recuperação da auto-estima e ao mesmo tempo uma abordagem para um possível encaminhamento para serviços de saúde, centros de tratamento de toxicodependências, serviços sociais, centros de atendimento psicológico e/ou psiquiátrico. A sala de consumo assistido de Bilbao tem protocolos com os hospitais, unidades de doenças infecto-contagiosas, com os serviços de urgência e com a polícia. Das actividades correntes fazem parte ateliers sobre pintura, saúde, sexo, prevenção…
Para manter a manter a funcionar são precisos 400 mil euros por ano, assegurados por fundos europeus, governo basco, governo central e ajudas de diferentes ministérios. As seringas, os preservativos, ácido cítrico, lubrificantes, papel de alumínio, amoníaco, elásticos, tudo o que é indispensável ao consumo é gratuito. Oito técnicos especializados fazem parte do quadro permanente, sendo reforçados com voluntários com experiência em toxicodependência, cuidados de saúde e formação médica. A sala dispõe de uma zona de trocas de seringas, espaços de acolhimento, sala de enfermaria, zona de higiene com banhos completos, escritório, sala de injecção e sala de inalação.
São muitas as razões que os consumidores, que assumem o vício das drogas ditas duras, encontram para se deslocarem até à sala de consumo. Uma delas é sem dúvida a proximidade dos locais onde se abastecem. Antigamente consumiam à vista de todos para desespero dos moradores e transeuntes. Agora adquiriram o hábito de tocarem à campainha com a certeza de que a porta se abre para um consumo recatado e seguro.
“Porque é mais higiénico”, diz Julene Expósito, uma toxicodependente de heroína. “Nunca mais fumei na rua”. A seu lado o namorado, também consumidor costumeiro, refere a exclusão social como principal factor: “Tratam-nos como pessoas. Dão-nos informação, dizem-nos sítios para ir para tratamento, dão-nos alimentos. Há muita gente que nos olha por cima do ombro. Somos pessoas como os outros. É uma doença que é preciso tratar”, assevera José Luís. “Não temos que andar a fugir da polícia nem corremos o risco de nos roubarem a droga”, acrescenta outro frequentador.
Ao cabo de quatro de actividade da sala de consumo assistido de Bilbao, reduziu-se o consumo a céu aberto nas ruas circundantes; verificou-se uma diminuição da pequena delinquência; conhece-se o nível de saúde da população toxicodependente; diminuiu-se o perigo de contágio das doenças infecciosas como a Sida as hepatites B e C; aumentou a sensação de segurança geral e os toxicodependentes ganharam uma réstea de humanidade. José Júlio Pardo, presidente dos Médicos do Mundo do País Basco não tem ilusões: “Solução? Não. Isto não é solução. Esta é terceira fase de um programa de redução de danos e riscos. Começou com a distribuição de preservativos, depois com a troca de seringas, mas as pessoas continuavam a consumir na rua. Isto não é solução…mas é alguma coisa.”
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