SÃO JOÃO DA MADEIRA

Voluntários contra a dor psicológica

Já não o podia ver em casa, era ele ou eu. Já não se conseguia viver. Chegava a casa partia tudo, destruía tudo, tratava-me mal… Já não era pai, não era marido, não era nada.”

A citação é de alguém que prefere manter-se no anonimato por razões de segurança. O divórcio litigioso ainda está a decorrer e o agressor continua a atormentá-la. Com meio século de idade, aguentou um casamento de quase trinta anos, dez dos quais passados em sofrimento e constante sobressalto. O companheiro passou de marido a agressor e a vida quotidiana transformou-se num inferno. Maria (nome fictício) é mãe de três filhos, um dos quais ainda menor. Após as primeiras agressões do marido, resolveu apresentar queixa na esquadra da PSP de São João da Madeira, há dez anos atrás, mas a queixa acabou por ser arquivada. “Uma das vezes em que ele foi demasiado violento, apresentei queixa. Depois, ele pediu-me que a retirasse e disse que mudava. Eu retirei a queixa, mas ele não mudou em nada”, confessa Maria. Dez anos depois, voltou a ganhar coragem e apresentou nova queixa no mesmo local, mas desta vez teve outro tipo de apoio que a ajudou a não desistir.

Maria é um caso que torna reais os números das vítimas de violência doméstica e de maus-tratos atendidos na esquadra da PSP de S. João da Madeira. As vítimas não engrossam as listas de espera de instituições à procura de apoio e orientação psicológica e na própria esquadra encontram dois psicólogos que prestam auxílio imediato. O serviço é voluntário e começou há dois anos baptizado de “Novo Olhar”. Vera Amorim e José Carlos Cardoso tinham acabado o curso há algum tempo e não conseguiam arranjar emprego. Uma notícia num jornal local que dava conta da vontade do comandante da esquadra em ter um apoio técnico que pudesse prestar às vítimas que chegavam à PSP, fê-los oferecerem os serviços. “É um projecto não financiado, embora já tenhamos tentado de tudo para que fosse. Somos voluntários, trabalhamos a tempo inteiro”, explica José. Vera diz que sempre pensou que “um dia este trabalho seria integrado e seríamos renumerados pelo mesmo, mas passado dois anos, isso não aconteceu”.

Os dois profissionais já atenderam mais de duas centenas de casos, entre vítimas e agressores, alguns dos quais enviados pelo tribunal. O trabalho já saiu das portas da polícia e a colaboração com as instituições é muito grande, incluindo com o tribunal que lhes chega a pedir relatórios técnicos. Vera está a trabalhar com os agressores, pois também faz parte do trabalho perceber “o que leva aos fenómenos e isso só pode ser feito com os autores dos mesmos”, explica a psicóloga. José Cardoso tem entre mãos o acompanhamento a cerca de 70 vítimas de maus-tratos, o que implica uma grande disponibilidade. “Temos que ter uma disponibilidade constante. São pessoas fragilizadas e que precisam muito da nossa ajuda”, diz. “Virmos cá todos os dias, falarmos com quem precisa e perceber que quem esteve connosco sai daqui mais leve e com caminhos abertos, tem sido a nossa compensação”, acrescenta o psicólogo.

O processo é simples. As vítimas de qualquer idade que apresentem queixa na PSP por maus-tratos ou violência doméstica são encaminhadas para o gabinete de psicologia. Os psicólogos fazem uma triagem para avaliar os casos mais urgentes e a partir daí começam a agir. “Muitas vezes a vítima não vem até nós e aí somos nós que vamos a casa dela, com todos os cuidados que a situação implica”, explica José Carlos. Os agressores também são contactados, mas a vinda é mais difícil, pois não constitui uma obrigação legal.
A necessidade e o mérito do trabalho desenvolvido pela equipa não deixam dúvidas a Joaquim Coutinho, chefe da PSP de S. João da Madeira. “É muito importante o trabalho dos psicólogos, porque nós, polícia, não temos conhecimentos técnicos na área da psicologia e que são essenciais para servir bem quem procura a nossa ajuda”, afirma.

Maria partilha da mesma opinião e afirma mesmo que sem o apoio que os psicólogos lhe deram não tinha conseguido seguir em frente com a queixa. “Se não fosse o apoio dos psicólogos era obrigada a viver na miséria ou a voltar para o agressor” e acrescenta que, para além da orientação psicológica, também a ajudaram em questões de burocracia e de articulação com outras instituições.

Mas após dois anos de auxílio voluntário, Vera e José Carlos lamentam a falta de apoio financeiro ao projecto. Bateram em muitas portas, mas até hoje nenhuma se abriu. A passagem semanal pela esquadra acordada no início deu lugar a deslocações diárias, incluindo fins-de-semanas e algumas noites. A própria PSP tem-se empenhado para que o “Novo Olhar” não tenha um fim, mas “eles precisam de seguir outros caminhos, porque ninguém pode trabalhar sem receber”, admite o chefe da polícia de S. João da Madeira. Vera também tem muita pena em deixar de fazer o que faz, mas a situação não pode continuar. “Nós precisamos de uma compensação monetária, durante dois anos não veio e por isso, teremos que partir para outras coisas”. José Carlos partilha da mesma opinião. “Não podemos esperar respostas que nunca vêm, apesar de me custar muito abandonar um projecto que ajudei a criar”. Ambos garantem, no entanto, que continuarão a acompanhar os casos mais problemáticos que têm actualmente à sua responsabilidade.

Em S. João da Madeira, as cerca de 220 vítimas directas e indirectas de situações de maus-tratos, representam um por cento da população, segundo dados recentes da PSP. As mulheres perfazem 84 por cento das vítimas de agressão. A maioria dos casos acontece em famílias problemáticas, mas também surgem casos em famílias de classe média-alta e alta. As solicitações para os serviços destes dois psicólogos ao serviço da PSP têm vindo a crescer com pedidos de socorro de vítimas oriundas de concelhos vizinhos, onde não encontram apoio. Um dos exemplos mais recentes, foi o caso do apoio prestado à família da criança de Oliveira de Azeméis que morreu electrocutada numa pista de carrinhos de choque, em Agosto passado, e em que ambos os profissionais interromperam as férias, apesar de não receberem qualquer compensação pelo trabalho.
.

 

Data de introdução: 2007-10-11



















editorial

VIVÊNCIAS DA SEXUALIDADE, AFETOS E RELAÇÕES DE INTIMIDADE (O caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS)

Como todas as outras, a pessoa com deficiência deve poder aceder, querendo, a uma expressão e vivência da sexualidade que contribua para a sua saúde física e psicológica e para o seu sentido de realização pessoal. A CNIS...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Que as IPSS celebrem a sério o Natal
Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente
Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a...