APPACDM DE LISBOA

Filhos de um Deus Menor

*(“Enquanto pais, é um desafio estar à altura de uma criança como a Darma. O seu desenvolvimento é um pouco mais lento do que o de uma criança dita normal. Há um modo de estar diferente do nosso que temos que aprender a respeitar, nos seus ritmos e na sua sensibilidade.”) 

Os caracteres que aqui linkamos - (1) (2) - poder-lhe-iam parecer completamente despropositados, uma linguagem muda, sem expressão e que não transmite qualquer mensagem, não fosse a tradução que encerram. Representam, no entanto, uma linguagem pictórica utilizada para comunicar com aqueles a quem alguém já chamou “filhos de um Deus menor”, que percebem e verbalizam o mundo e a realidade de forma diferente.
É uma citação da mãe de um bebé com síndroma de Down. Chama-se Darma e tem pouco mais de um ano. De sorriso estampado no rosto procura o aconchego dos braços da mãe, no seu primeiro dia na creche. A Darma nasceu com uma alteração genética que provoca o aparecimento de mais um cromossoma no par 21, daí utilizar-se também a denominação trissomia 21. O diagnóstico poderia ter sido feito ainda na barriga da mãe, mas Maria João Ferraz não sentiu necessidade disso. “A minha gravidez já era de risco devido a um problema renal e achei que a amniocentese poderia por em risco a gestação”, explica. “Eu e o meu companheiro consideramos que, hoje em dia, esse exame serve, muitas vezes, não para ajudar o criança, mas sim para que os pais possam optar pela interrupção da gravidez”.

A Darma é um dos bebés diferentes da creche “A Tartaruga e a Lebre”, a conhecida fábula atribuída a La Fontaine em que uma tartaruga consegue vencer uma lebre numa corrida, uma alegoria ao desenvolvimento de crianças especiais. A creche abriu portas em 1978 e foi pioneira na educação inclusiva no contexto nacional e europeu, tornando-se num espaço onde há lugar para todos. “Fomos uma creche piloto e a experiência é muito boa”, explica Adelaide Melo, directora-adjunta da creche e educadora há quase 30 anos. Darma com sua mãeTita, como é conhecida, diz que são os pais das crianças ditas normais os primeiros a louvar o trabalho ali desenvolvido especialmente para que os filhos aprendam a crescer com respeito pela diferença (na creche encontram-se crianças com diversas patologias, desde a trissomia 21 a paralisias cerebrais, atrasos globais de desenvolvimento, etc.).

As emoções desencadeadas pelo nascimento de uma criança especial são muito complexas e nem todos os pais reagem como a mãe de Darma. “Aparecem aqui todo o tipo de pais: os que dizem que estão de luto e que não conseguem aceitar a situação e outros que já passaram a fase da rejeição e estão em processo de aprendizagem e à procura de respostas para os filhos”, diz a educadora. Maria João Ferraz confessa que quando a filha nasceu o “choque” foi grande. “Foi um choque, mas durou pouquinho tempo, porque a Darma é a minha filha e é muito bonita”, diz.

A creche faz parte do corpo de uma obra mais vasta nascida no início da década de sessenta por iniciativa de uma mãe inglesa, Sheila Stilwell, que não encontrou no nosso país respostas para o filho com trissomia 21 e com a ajuda de uma pedopsiquiatra, Alice Tavares, criou a Associação de Pais e Amigos das Crianças Mongolóides, actualmente designada por Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Lisboa (APPACDM).

Com berço na capital, a APPACDM expandiu-se por todo o país e deu origem a quase três dezenas de associações, que actualmente constituem a Federação Portuguesa para a Deficiência Mental – Humanitas. A instituição de solidariedade social foi crescendo e a procura aumentando. Na década de 90 possuía já onze estruturas, com diversas valências: creche, apoio sócio-educativo, centro de recursos, formação profissional, actividades ocupacionais, emprego protegido, lares e residências, espalhados por Lisboa, Almada e Cascais. Com 350 funcionários, a APPACDM dá apoio a mais de meia centena de cidadãos com deficiência mental, desde o nascimento até ao fim da vida.

O Centro de Formação Profissional da Ajuda, destinado a jovens a partir dos dezasseis anos, é outra das escolas da instituição. Situado nas imediações do Palácio da Ajuda, na antiga Casa do Guarda-jóias do palácio, integra também um Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), o que permite a convivência de pessoas com diferentes graus de deficiência, além de possibilitar o aproveitamento das sinergias de um espaço comum. “Façamos a inclusão cá dentro, permitindo que pessoas com diferentes graus de competências possam trocar experiências e desenvolver relações de solidariedade”, explica João Dias, director da APPACDM.

Neste centro dá-se formação para auxiliares de acção directa, reprografia, limpezas industriais, lavandaria e engomadoria, entre outras. Em formação têm 39 utentes e 68 em regime de CAO, mas os pedidos de ingresso são muitos e ultrapassam a centena. “Não temos uma lista de espera no sentido convencional, mas sim casos referenciados e damos prioridade às situações mais urgentes, quando temos vagas”, explica João Dias. Para este dirigente parte desta “lista” poderia ser solucionada se alguns dos utentes fossem integrados noutras instituições de solidariedade perto da sua área de residência. “Parte dos nossos utentes poderiam estar noutras instituições não vocacionadas para a deficiência, como, por exemplo, centros de dia. Falo de pessoas com graus de deficiência que lhes permitam ter alguma autonomia em termos de higiene e comunicação e que teriam muito a ganhar em estar inseridos na sua comunidade”, explica, fazendo questão de referir que o processo de inclusão “não é um problema até aos dezasseis anos, mas um problema que se arrasta por toda a vida”.

Para fomentar essa inclusão, durante dois anos o Centro desenvolveu um programa de mentoria, ao abrigo do financiamento de programa comunitário Leonardo da Vinci, onde o principal objectivo era desenvolver uma relação de confiança entre os utentes e um grupo de jovens externos, na sua maioria estudantes universitários. “Os jovens partilhavam entre si as alegrias, as tristezas, as preocupações, numa relação confidencial, que embora fosse forçada, era assumida por ambas as partes”, explica Filomena Abraços, directora do Centro da Ajuda. “O projecto permitiu que os jovens universitários pudessem entrar no mundo destas pessoas e perceber as suas capacidades e formas de estar na vida”, diz. Os benefícios foram vários para os utentes, permitindo-lhes “dar saltos qualitativos a nível de relacionamento interpessoal” e apesar de ter terminado em 2007, alguns dos envolvidos pretendem continuar com o projecto.

Outra área de intervenção da APPACDM destina-se a ajudar aqueles que devido a deficiências severas e profundas não conseguem integrar nenhum destes centros de formação e precisam de estar em lares.
Em Benfica, fica uma destas estruturas, o Lar de Pedralvas, destinado a pessoas com graus de dependência muito profundos. A exigência é tanta que o número de funcionários, 28, ultrapassa o de utentes, 25, sendo que nos primeiros encontramos alguns empregados provenientes das escolas de formação, em regime de emprego protegido. Aqui, o trabalho consiste, essencialmente, - uma vez que são pessoas em idade adulta - na “manutenção das capacidades já adquiridas”. Fernanda Carrapatoso, directora do lar, explica que têm um plano de actividades variado, mas que “é difícil fazer com que os utentes com deficiências mais profundas participem”. Aos mais autónomos são proporcionadas diversas experiências sensoriais e motoras, como por exemplo ir ao teatro, ouvir música, aulas de educação visual, etc. “Claro, que os nossos utentes não percepcionam uma peça de teatro como nós, mas conseguem vivenciar um conjunto de sensações que são estimulantes e gratificantes para eles”. A presença da família é incentivada, no entanto, há casos de utentes que se tornam “filhos da instituição”, seja por já não terem pais ou por não terem condições de permanecer em casa. “Há deficiências que não permitem a integração familiar convencional, por exemplo, temos utentes que não podem estar numa sala de estar convencional e nesses casos a integração familiar faz-se aqui, com a visita dos familiares”, explica Fernanda.

A APPACDM de Lisboa debate-se com os problemas comuns a quase todas as IPSS: grande procura e falta de financiamento para poder oferecer respostas. António Cortesão está há seis anos na presidência da instituição, mas unido a ela há mais de 35 anos. Pai de uma rapariga com trissomia 21, cedo abraçou a causa social e tem alguns sonhos que gostava de ver concretizados. “Estamos a negociar com a Câmara Municipal de Lisboa a cedência de duas parcelas de terreno no alto do Lumiar para aí construirmos um lar com capacidade para 24 utentes e que é uma das grandes necessidades da instituição”, adianta. Nesse mesmo espaço, prevê-se ainda a instalação de seis CAO’s, dois novos e os outros transferidos dos espaços degradados onde funcionam actualmente. “Será um investimento superior a cinco milhões de euros, o que vai implicar um conjunto de parcerias com entidades particulares e públicas”, explica. Para isso foi recentemente aprovado em assembleia o “Conselho Solidário”, um documento que permite a participação activa dos parceiros na vida da unidade que apoiam. “Vai permitir que esses investidores possam ser realmente companheiros e que façam parte da instituição que apoiam”. Para além do lar no Alto do Lumiar, a APPACDM já tem em mãos um projecto de ampliação de um lar em Cascais, com terreno cedido pela autarquia local há cerca de oito anos, mas para o qual ainda não conseguiram financiamento.

Projectos à parte, os sonhos nascem nos pais para os filhos, assim como qualquer pai e mãe de uma criança dita normal. “Espero que a minha filha possa encontrar pela vida fora respostas que lhe permitam estar bem, mesmo quando eu já cá não estiver”, diz a mãe de Darma. Numa sociedade cada vez mais individualista e competitiva dar espaço e lugar à diferença torna-se prioridade de alguns, num processo de integração e aceitação que começa logo na barriga da mãe e que vive de uma escolha pessoal, complicada e muitas vezes, dolorosa, que decide se haverá espaço no “nosso” mundo para alguém diferente.


*Linguagem pictográfica da autoria de Inês Larcher

 

Data de introdução: 2008-02-07



















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