Sem lei nem roque

1 - Na Idade Média, alguém que tivesse praticado um crime, se se acolhesse à protecção de uma igreja, ou mosteiro, ou de um senhor feudal, podia escapar à perseguição da justiça do rei, ganhando, enquanto persistisse a situação de protecção, um estatuto de imunidade – e impunidade.

Esse privilégio de furtar os criminosos à punição, de que gozava o clero e a nobreza, correspondia a um tempo de fragmentação do poder público e à sua dispersão pelas várias ordens, ou classes.

O processo de construção do Estado moderno, centrado na unidade do mando e na centralização, no rei, do exercício de todos os poderes, aboliu no entanto esses privilégios, esses feudos, onde de facto se não aplicava a lei do país, nem a sua justiça.

Em Portugal, como se sabe, é o Rei D. João II, dos finais do século XV, que é normalmente apresentado como o momento emblemático dessa centralização do poder real – fazendo, aliás, acompanhar a eliminação dos privilégios da eliminação física dos principais fidalgos.

De então até hoje, tem sido inquestionável o princípio de que a lei do Estado, seja este sob a forma de Monarquia – absoluta ou constitucional - ou República, e a mão da sua justiça, não deixam de fora do seu império a mínima parte do território português.

(A única excepção que conheço é a das instalações das embaixadas, que gozam de alguma imunidade relativamente às manifestações de soberania dos países onde se situam – mas, mesmo aqui, sob a ficção de que aí se não trata verdadeiramente de território do país de acolhimento, mas sim do país representado.

Embora a protecção e imunidade, nestes casos diplomáticos, não seja em regra para criminosos, mas para refugiados ou perseguidos políticos – e traga, portanto, agarrada a si, uma ideia de justiça e de humanidade.

A este propósito, as pessoas de mais idade ainda se lembram de que foi a esta protecção, então na Embaixada do Brasil, que se acolheu o General Humberto Delgado, após as eleições, para escapar à Pide. Evocação ajustada para recordar que, durante o corrente mês de Abril, se cumprem 50 anos sobre a data em que foi entregue no Supremo Tribunal de Justiça, subscrita essencialmente por gente do Porto e do Norte, a candidatura do General Sem Medo à Presidência da República.)


2 – Nos nossos tempos, no entanto, surgem muitas vezes referências, e inferências, normalmente através da comunicação social, a zonas do território português onde não existe lei e onde a polícia não entra.

Trata-se em regra de notícias sobre bairros problemáticos, submetidos ao poder feudal dos chefes do tráfico de droga; ou do mundo da noite, e do domínio sobre esta dos cappos da segurança; e também dos negócios do futebol, com leis e justiça à parte – mas onde não conseguimos detectar nem a figura de olhos vendados nem a balança; para não falar já de tantas instâncias do poder político, onde o tráfico e os interesses bebem mais do arbítrio do Rei D. João II do que da ética republicana da honradez e da força igualitária do voto que é o timbre das democracias.

Estes territórios fora da lei – e outros haverá, de que os leitores se lembrarão – não são exemplos de que nos possamos orgulhar.

São quistos, são tumores, que é dever de todos erradicar – no sentido literal, isto é, arrancar desde as raízes.


3 – A pretexto do recente caso de violência escolar filmada em directo numa escola pública do Porto, vieram os especialistas do costume propor mais uma zona fora da lei – as escolas.

Antes mesmo deste indigno episódio, já o Procurador Geral da República – criticado nestas crónicas algumas vezes – tinha inscrito, entre as prioridades da investigação criminal definidas para o Ministério Público, as situações de violência nas escolas, sob o argumento de que a impunidade da delinquência no espaço escolar potencia criminalidade de maior grau no futuro, e de que às crianças e jovens não faz mal serem corrigidas e sancionadas quando violam as regras – pelo contrário.

O Procurador Geral lembrou ainda que em muitas escolas actuam e impõem a sua lei gangs iguais aos que mandam em certos bairros, estribando do mesmo modo a prioridade por si decidida na ocorrência de múltiplas queixas, participações e notícia de ocorrências relativas a violência escolar existentes nas autoridades judiciárias.

A propósito do vídeo do Youtube, veio portanto lembrar o que era óbvio – que, havendo indícios da prática de crimes, teria de haver inquérito criminal, na medida em que as escolas não são embaixadas, nem os gangs senhores feudais, com lei e jurisdição à parte.

Tem, neste assunto, inteira razão o Procurador Geral da República.

Sabe do que fala: conhece, por dever de ofício, como evolui a criminalidade e como se formam os criminosos, do pequeno delito impune à violência sem quartel; tem números e estatísticas – e veio lembrar que a investigação e perseguição dos crimes, seja lá onde forem cometidos, é com ele.

Foi o que bastou para que a tribo dos “peritos” em ciências da educação e psicólogos que há mais de 30 anos comanda o Ministério e, através dele, a vida das escolas viesse a terreiro exautorar o Procurador e reivindicar a resolução no exclusivo plano disciplinar interno das situações que, para o mundo exterior às escolas, configuram delitos criminais.

Investigação e punição criminal, pelo sistema judicial comum, de factos criminosos praticados nas escolas é que, para essas boas almas, não pode ser.

4 - Ora, punições disciplinares a alunos, pelo Ministério da Educação, já todos sabemos em que consistem.

A propósito do recente vídeo, viemos a saber que, no ano passado, na mesma Escola Carolina Michaelis, a um aluno que o Conselho de Turma e o Conselho Executivo queriam punir com a expulsão, por merecer tal castigo, viera a Direcção Regional de Educação revogar essa decisão e aplicar a pena de transferência para outra Escola. Que era, curiosa e justamente, a Escola para onde o aluno já havia pedido para ser transferido.

Não é difícil imaginar o que pensa que pode fazer impunemente no futuro um aluno que agride um professor e tem como sanção um prémio.

Ora, juntemos num caldeirão:

- o caos das experiências educativas que os peritos em educação, que nada sabem da vida das escolas, em cada ano inventam para justificar a sua existência, e que tem convertido as escolas em viveiros de ignorância;
- a necessidade de o Ministério apresentar resultados estatísticos de sucesso escolar que não deslustrem no contexto europeu – e que é mais uma porta escancarada ao facilitismo e à indulgência perante os comportamentos menos canónicos dos alunos, que sabem que, façam o que fizerem, nada lhes acontece de relevante;
- a desconsideração do estatuto e consideração devidas aos professores, que, por propósito ou por incompetência, tem marcado a actuação do Ministério para com a classe, diminuindo o respeito social que é condição do sucesso do seu trabalho;
- e o modo centralizado de funcionamento da máquina do Ministério, asfixiando as escolas com ordens e contra-ordens diárias, por ofício, por fax ou por telefone, muitas vezes contra a lei em vigor ou com interpretações abstrusas dela, transformando a propagandeada autonomia numa caricatura – como quem anda nas escolas sabe;

e temos o caldo pronto para o disparate.

Como se tem visto.

Ainda bem, portanto, que o Procurador quer entrar nesse paraíso imaginário e perdido e pôr alguma ordem na casa.

Quem não gostar, que vá dar aulas.

*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2008-04-09



















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