MARIA DE BELÉM ROSEIRA, PRESIDENTE DA UNIÃO DAS MUTUALIDADES PORTUGUESAS

As Mutualidades são escolas de democracia e solidariedade

SOLIDARIEDADE – O que são as associações mutualistas?
MARIA DE BELÉM ROSEIRA
- As associações de socorros mútuos ou mutualidades são instituições de livre iniciativa dos cidadãos que tiveram uma vida em Portugal, ou noutros países europeus, associadas ao movimento sindical. Nas épocas em que ainda não havia sistemas de protecção social obrigatórios, os trabalhadores entenderam que deveriam juntar-se para, através do depósito em conjunto de poupanças, poderem dar aos associados, em determinadas circunstâncias de ocorrência de riscos sociais, um apoio imprescindível. São instituições que evoluíram em Portugal muito mais na área dos chamados benefícios pecuniários do que na prestação dos cuidados de saúde, embora haja associações, também expressivas, que foram desenvolvendo a sua acção orientada para o apoio na saúde. Há associações com actividade, no conceito alargado, na área dos assuntos sociais e que são instituições que têm uma característica muito importante e muito própria: radicam, em termos dos recursos que obtêm, no esforço contributivo dos seus associados. Portanto, são associações que apostam na capacidade de aforro de cada um e as modalidades de benefícios que prevêem são as mais diversas. Há dois grandes grupos: um mais dirigido a prestações da previdência social e outro para a área da saúde, embora o primeiro seja mais expressivo.

Qual o peso que têm no tecido social português?
Têm um peso reduzido mesmo em relação à sua génese. São associações que nasceram muito ligadas aos movimentos operários do fim do século XIX, início do século XX, uma vez que nós sofremos tardiamente os impactos da revolução industrial. Estes movimentos surgiram na Europa na sequência da revolução industrial, por causa de muitos acidentes de trabalho, de situações de orfandade, de muita desprotecção na doença. Em Portugal elas surgiram também para apoiar os cidadãos em momentos difíceis da sua vida. Temos, aliás, uma tradição que não é muito frequente nas associações de socorros mútuos a nível europeu e mundial que é o apoio para o funeral, sobretudo com grande expressão, no norte do país. São associações muito plásticas que se desenvolvem para o objectivo que a sua massa associativa considera mais importante. Regem-se pelo código mutualista, que é um código que prevê uma margem muito larga de possibilidades de desenvolvimento da actuação das associações de socorros mutualistas. Como as associações nasceram ligadas ao movimento operário, assentes na independência dos seus operários e na democracia da gestão da vida das associações, durante o período do Estado Novo foi um movimento muito perseguido. Era um movimento que não condizia bem com o controle que se pretendia fazer da vida associativa dos cidadãos e esta possibilidade das pessoas terem algum apoio nas alturas difíceis da sua vida retirava também ao Estado a possibilidade de se intrometer tanto na vida das pessoas. Razão pela qual, das mais de 400 associações mutualistas que existiam antes desse período da nossa História apenas resistiram algumas. Temos neste momento cento e poucas instituições mutualistas. Não é um movimento que tenha a expressão das Misericórdias ou das Instituições Particulares de Solidariedade Social, mas tem uma personalidade e uma vida muito próprias, uns princípios muito meritórios e são instituições que resistiram, apesar da falta de apoios que sofreram durante essa época.

Que personalidade é essa que determina o carácter diferenciador das Mutualidades, em relação às Misericórdias e às IPSS?
Tirando a questão dos benefícios fiscais, as Mutualidades não têm nenhuns benefícios por parte do Estado. Como eu disse, as Mutualidades têm uma articulação com o Estado, porque na altura em que se constituem é-lhes reconhecido o interesse público, como às outras IPSS. Ao serem de interesse público significa que prosseguem finalidades públicas. Suscitar nas pessoas a necessidade do aforro, a necessidade de se preocuparem com o futuro, de dizerem que na vida não é tudo consumo, mas que há outras preocupações que devemos ter, tem um carácter pedagógico muito importante, numa época em que tudo é mercado, em que se faz apelo ao individualismo em todas as mensagens, nas expressas e nas subliminares. Portanto, são escolas de democracia e de solidariedade e isso é muito importante. Têm uma tradição muito forte, uma personalidade muito vincada e, portanto, elas são necessárias tais como as outras instituições que assentam num movimento associativa para apoio aos outros. Há associações de socorros mútuos que também têm creches, lares de idosos e quando assim é, são também estabelecidos protocolos com a Segurança Social. O surgimento de sistemas de protecção social obrigatórios de carácter universal retirou às associações de socorros mútuos aquela indispensabilidade que existia na altura em que nem todas as pessoas estavam abrangidas. Hoje, actuam na protecção social complementar e não na protecção social autónoma como actuaram nas épocas em que o sistema ou não existia, como foi o caso no século XIX e parte do século XX. Depois, quando começou a surgir a providência social pública, nem todos os trabalhadores estavam abrangidos, pois só a partir do 25 de Abril é que temos cobertura universal. É a partir dessa época as instituições mutualistas dirigem-se mais às prestações complementares. São instituições autónomas entre si, ligadas por uma União. A União por sua vez tem um protocolo de colaboração com o Estado, como têm a União das IPSS e das Misericórdias, em que este dá um subsídio para que a União possa prestar serviços às associadas.

Quando falamos no universo das mutualidades, estamos a falar concretamente de que número de funcionários e de associados?
Nós temos um número de associados que ronda um milhão. Quanto aos funcionários, está-se a fazer um levantamento agora e esse trabalho não está terminado. Não lhe posso dizer com rigor quantos funcionários é que existem. Mas são bastantes, são alguns milhares de postos de trabalho importantes numa época em que o emprego é uma das principais preocupações das pessoas.

Ainda têm, portanto, uma expressão bem visível na sociedade portuguesa?
Sim e se falarmos em termos europeus e mundiais ainda mais. Por exemplo, em países onde não há sistemas de protecção social obrigatória como é o caso de alguns países da América do Sul e recordando-me do caso da Argentina, que sofreu aquela enorme crise financeira, nessa altura as associações mutualistas argentinas desempenharam um papel essencial no apoio às pessoas que sofreram aquele embate terrível de, por exemplo, não poderem dispor das poupanças que tinham no sistema financeiro. Ainda hoje, o papel destas instituições pode ser muito importante em função do estado de desenvolvimento do país, mesmo não sendo alternativo a sistemas de protecção social obrigatórios desempenha acções na área do apoio complementar que são certamente importantes para as famílias.

Das três entidades, as Mutualidades serão provavelmente as mais desconhecidas do grande público…
São as menos conhecidas porque são um movimento que é mais dirigido à respectiva massa associativa. Essa massa associativa vive com a preocupação de fazer e de cumprir os objectivos e não de se dar a conhecer. Não temos muitos recursos para investir em marketing. Hoje, com a possibilidade da ligação electrónica e das novas tecnologias, já podemos potenciar um pouco mais o conhecimento de quem nós somos, da nossa realidade, da nossa acção. De qualquer das maneiras, há algumas das nossas instituições que são muito conhecidas a nível nacional, como é o caso do Montepio Geral e a nível mais localizado, um pouco por todo o país, há associações mutualistas que podem não ser conhecidas a nível nacional, mas que são muito estimadas pelas comunidades onde se inserem.

Qualquer pessoa pode pertencer a uma associação mutualista?
Qualquer pessoa pode pertencer, aliás faz parte dos estatutos o número indeterminado de associados. Qualquer pessoa se pode inscrever. Tem que saber as instituições e os benefícios que elas desenvolvem e a depois inscreve-se naquela que considerar mais adequada.

Em 1983 foi criado o decreto-lei 119/83 que criou o estatuto das IPSS. Faz agora 25 anos. No seu entender o decreto continua válido?
Tirando um ou outro aspecto que poderia ser clarificado, creio que no essencial o diploma responde às necessidades das IPSS. Foi uma legislação muito importante na altura em que foi elaborada, eu própria colaborei nela como jurista e de uma maneira geral penso que responde às necessidades. Não há dúvida que este diploma para nós é supletivo, uma vez que temos o código mutualista aprovado em 1990, pelo decreto 72/90, que é mais dirigido à nossa especialidade e que é um quadro jurídico muito importante mesmo até em termos das comparações internacionais.

Acredita que a forma de fazer acção social nosso país sofreu alterações ao longo deste quarto de século?
Ora bem, não podemos generalizar. Eu sempre fui uma grande defensora dos sistemas de protecção social obrigatórios e acho que devem ser modernizados, reformados e aprofundados para darem cada vez mais apoio às pessoas. Isto é tudo um processo natural. A acção social vai ao encontro das pessoas, das suas carências, das suas necessidades. O facto de haver instituições de solidariedade social que desenvolvem também um importante contributo neste domínio, em articulação com o Estado, permite personalizar mais as respostas e eu presumo que é a personalização a parte mais importante nesta modalidade de ir ao encontro das necessidades das pessoas.

A classe política, nomeadamente o Governo, reconhece o papel das Mutualidades, uma vez, até que a sua expressão é mais pequena na sociedade portuguesa?
Reconhece. Aliás, o facto de haver um código mutualista autónomo significa que já o reconheceram no passado, um passado relativamente recente, já no quadro democrático em que vivemos. Por outro lado, as Uniões não são discriminadas em função da sua maior ou menor representação em termos do número de associações envolvidas. As associações mutualistas têm o seu papel a desempenhar, de acordo com a sua autonomia própria, de acordo com a sua vocação própria e ao serem instituições de utilidade pública, evidentemente que o Governo deve reconhecê-las, deve apoiá-las, naquilo que é um apoio exigente. Nós não queremos favores, queremos ser considerados e respeitados e assim temos sido reconhecidos pela actual equipa governativa como fomos no passado com outras direcções na União das Mutualidades.

Como é que tem sido o entendimento entre as três entidades: Mutualidades, IPSS e Misericórdias?
Muito bom. Conhecemo-nos todos há muitos anos, uma vez que desenvolvemos todos, há muitos anos, acção nestes domínios. O Padre Lino Maia sucedeu ao Padre Maia com quem eu articulei em várias funções que já desempenhei, designadamente na Misericórdia de Lisboa. O Dr. Manuel Lemos, conheço-o há muito tempo. Ele fez um percurso na Segurança Social e na Saúde, embora eu tenha estado sempre em serviços centrais e o Dr. Manuel Lemos, tirando a época em que foi chefe de gabinete da ministra Leonor Beleza, esteve mais ligado a outro tipo de projectos, mas como fomos colegas de curso, digamos que há todos os condimentos para que nos possamos dar e entender independentemente das ideias diferentes de cada um. Há uma convergência nos objectivos da nossa acção e, nesse sentido, temos estado muito articulados, muito unidos e em consonância e isso é bom porque reforça o movimento associativo.

Acredita ser possível a criação de uma plataforma de entendimento das três entidades, até para reforçar o poder de diálogo com o Governo?
Penso que sim. Até é bom para os governos pois em vez de terem vários interlocutores passam a ter um e isso, pelo menos para alguns aspectos, é facilitador, desde que, tenhamos uma agenda em relação à qual nunca podemos esquecer a nossa vocação. E a nossa vocação é dar resposta às necessidades das pessoas, não é uma vocação político-partidária, mas sim de serviço às comunidades, às carências que hoje a vida económica e social apresenta. Desde que o objectivo de uma plataforma social seja esse, e não poderia ser outro, acho que é positivo e que é um projecto com pés para andar.

Considera que o apoio social e até da saúde caminha cada vez mais para uma privatização dos serviços?
Não. O sector privado, desde que numa articulação transparente com o Estado, tem o seu papel e o sector social também. A Constituição da República Portuguesa reconhece a existência de três sectores: o sector público, o sector social e o sector privado. Nós temos o nosso campo de actuação, temos a nossa especificidade, somos economia social solidária, economia não lucrativa, mas nos países onde se fazem contas, a importância destas instituições para o crescimento do produto interno bruto já é quantificada e tem uma expressão importante. Nós também criamos emprego, nós também produzimos bens e serviços que não são de economia lucrativa, mas têm expressão económica e temos como grande diferença, em relação ao sector privado, o facto de orientarmos os resultados da nossa acção para o aprofundamento das modalidades que prosseguimos. Portanto, há também uma expressão económica nas nossas organizações, mas é uma expressão económica que não é apropriada individualmente, mas uma expressão económica que é distribuída em termos de aprofundar e aperfeiçoar a satisfação das necessidades sociais colectivas.

Este seu mandato à frente da União das Mutualidades foi marcado pela impugnação das eleições. Fez um mandato considerado de gestão. Será uma candidata às próximas eleições da presidência da União que representa?
Em princípio não, uma vez que houve um problema com a nossa lista eleitoral. A nossa lista foi impugnada por uma providência cautelar interposta por algumas instituições que eram candidatas numa lista concorrente que não ganhou as eleições. Por ausência de contestação, por parte de quem estava na altura à frente da direcção, à qual pertenciam algumas instituições que faziam parte da outra lista, a providência cautelar produziu o seu efeito e, neste momento, nós consideramo-nos em gestão de negócios. Eu acho que isto é um empobrecimento e um enfraquecimento do movimento mutualista, sobretudo numa época em que o QREN tinha enormes potencialidades para ser posto ao serviço das instituições mutualistas, à semelhança das outras instituições do sector social. Não podemos aproveitar essas possibilidades e eu considero que isso vai prejudicar em muito o movimento mutualista. Considero que alguém como eu, que tenho um currículo vastíssimo de intervenção nestas áreas e no espaço público, que posso dar também dar o meu contributo e o meu retorno social e que devo fazê-lo e já o faço noutras instituições que consideram que ganham com o meu contributo. Neste momento, o Governo reconhece-nos. Aliás, registou os nossos órgãos sociais decorrentes daquele acto eleitoral, o que mais me reafirma a certeza de que as eleições foram regulares. O facto é que há quem conteste isso. Quem contesta tem obrigação de provar quanto vale. Penso que uma das grandes valias destas instituições é precisamente uma profunda vida democrática e a vida democrática pressupõe que se dê novamente a voz aos associados, uma vez que este é o último ano de exercício de funções. Eu prefiro orientar as minhas energias para instituições que consideram que é uma mais valia poder contar com o meu contributo
.
O seu mandato foi exclusivamente de gestão, portanto?
Foi um mandato de gestão e não de concretização do programa eleitoral, com base no qual fomos eleitos e fomos eleitos por maioria.

 

Data de introdução: 2008-08-08



















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