SILVA PENEDA, EURODEPUTADO, ANTIGO MINISTRO DA SEGURANÇA SOCIAL

Quando a liderança política é fraca a burocracia ganha e as instituições perdem

Enquanto membro do Governo, teve oportunidade de acompanhar, de intervir e de se relacionar, na altura, com a União das Instituições de Solidariedade Social. Como é que era a relação com o poder?
Foi uma fase em que não havia uma relação institucional muito forte e as instituições actuavam ainda um pouco de uma forma individual, não estavam estruturadas. É com a direcção das IPSS, o padre José Maia, que se começa a criar uma articulação mais eficaz entre as IPSS e o Governo, através do meu ministério. A própria composição do Conselho Económico e Social acabou também por ter a participação das IPSS, atendendo a que na composição do Conselho não havia só parceiros sociais. A própria revisão da constituição, lembro-me perfeitamente de ter intervindo nesse contexto no seio do meu partido político, foi no sentido de criar um papel muito mais claro das IPSS. Foi um período em que se criaram muitas instituições e eu tinha a noção clara que os problemas sociais em Portugal dependiam da relação de proximidade e de muito voluntariado. Os homens e mulheres de boa vontade ajudam a resolver esse tipo de questões. É certa aquela frase do Padre Américo: “se cada terra tratar dos seus pobres, haverá, com certeza, menos pobres no país”. Criou-se uma dinâmica forte, com uma liderança forte. Foi aí que começámos a assinar protocolos, todos os anos, no sentido de se definirem as prioridades, o que se devia fazer, o que é que se devia apoiar. Tudo isto foi feito à base de um diálogo, muito rico e muito intenso. Eu próprio participei em várias sessões, em Fátima, com representantes das instituições particulares de solidariedade social a dizerem quais eram as suas reivindicações. O meu ministério dava sempre uma palavra às instituições, para que elas tentassem definir as suas prioridades. Quando as coisas são impostas de cima, as pessoas não criam entusiasmo. As pessoas precisam de sentir que os objectivos são os seus e só assim é que se podem comprometer. Na altura criou-se um movimento interessante de cooperação entre entidades sociais e entidades particulares que permitiu resolver muitas coisas. Eu continuo a defender a ideia de que as instituições são muito úteis. É um grande investimento que o Estado pode fazer na criação de uma rede de solidariedade social, mas sempre com esta preocupação de não querer impor, não querer controlar em demasia e dar espaço para que as instituições possam viver e respirar, pois só assim é que podem ser úteis.

Desse tempo, houve alguns episódios curiosos, designadamente com o presidente da União. Que tipo de relacionamento é que o ministro Silva Peneda tinha com ele?
As pessoas quando conhecem o padre Maia descobrem uma personalidade muito directa que não se coíbe de dizer o que pensa de uma forma muito franca. Muitas vezes aquilo que ele pensava não era aquilo que eu entendia ser o mais correcto. Mas, por um lado facilitava, porque ele dizia sem rodeios: “eu quero isto” e punha-o de uma forma muito clara. Eu tinha que ver se com os meios que de que dispunha podia contemplar ou não e tentava verificar a sua opinião. Talvez a mais interessante de todas, e que ele já tem citado em público, foi um fim-de-semana em minha casa a discutir problemas das instituições e a erradicação das barracas. Os chamados PER, Programas de Erradicação de Barracas, nasceram de uma conversa minha com o padre Maia. Levei a ideia para Lisboa, falei com o Primeiro-Ministro e depois o Ministro das Obras Públicas e o programa nasceu. Eu sempre gostei de trabalhar em parceria e partilha, pois com a conjugação de esforços as coisas normalmente saem bem. Com o padre Maia houve várias coisas em que fomos cúmplices para resolver problemas sociais.

É por isso que tem junto das instituições uma imagem de alguém que tinha sensibilidade social...
Eu gosto de reflectir, mas gosto mais de acção. E fico com alguma angústia quando percebo que as coisas poderiam estar feitas e não estão. Quem tem essa preocupação tenta agarrar-se aos instrumentos que mais tem à mão e vendo tanta gente com boa vontade no nosso país, que está disponível, que está disposta a trabalhar, o que há a fazer é tentar mobilizar essas pessoas. Portanto, se é um problema de sensibilidade social? É, porque a minha acção foi sempre no sentido de enquadrar a possibilidade das pessoas serem mobilizadas em relação a objectivos em que todos estamos de acordo. Lembro-me de um caso muito curioso. Trás-os-Montes, Urrós, uma freguesia perto da fronteira. Um dia fui lá visitar a freguesia que queria fazer um centro de dia. Eu vejo uma praça de touros toda construída em pedra e o presidente da junta disse: “fomos nós que fizemos”. Nós quem? “Nós todos”. Eu virei-me para ele e perguntei: Vocês eram capazes de fazer um centro de dia da mesma forma? E ele disse: “Somos”. Estava presente o bispo de Bragança. E foi feito um acordo. Eu arranjei verba para pagar os materiais e eles deram a mão-de-obra. Passado um ano, exactamente, estava eu a inaugurar o centro de dia. Não houve nenhum documento escrito, nenhum papel, apenas um aperto de mão e uma aldeia inteira unida no projecto. Julgo que pelo país há muitas situações que podiam ser resolvidas nesta base.

Considera que muitas vezes quem está no poder não percebe isso, ou seja, que o povo português é tipicamente solidário, que há uma disponibilidade para a solidariedade?
O povo português é solidário na glória e na desgraça, no dia-a-dia não é. Nós somos corredores para os 100 metros, corredores de fundo é mais complicado. Em momentos de glória estamos todos unidos e como somos capazes de estar muitos unidos também nos momentos de tragédia. Somos um pouco avessos a tarefas de coordenação e, portanto, alguém tem de estimular essa coordenação de esforços. Temos também que considerar outro poder intermédio, um problema complicado, que é o poder da burocracia. A máquina da administração pública tem um poder próprio e muitas vezes o político sente-se impotente para modificar esse papel da máquina. Por isso é que na área social o político e responsável tem, muitas vezes, que ir directamente aos problemas e não deixar que sejam filtrados só pela administração pública. A experiência que eu tive mostra que andará mal aquele responsável da pasta da área social que não tenha a preocupação de contactar directamente com as instituições e com as realidades sociais. A administração pública apercebe-se que ele está no terreno e é difícil levá-lo para uma situação que será menos desejável. O ministro tem que administrar aquilo que é o poder da máquina da Segurança Social e o poder da sociedade civil. Quando a liderança é fraca, normalmente o poder burocrático ganha e as instituições perdem. Quando é uma liderança mais forte pode equilibrar um pouco esses dois poderes.

Há governos centralistas e outros descentralizadores. Qual acha que deve ser o equilíbrio nessa relação das IPSS com o Estado?
O Estado deve centrar-se nas funções de normalização, regulação e fiscalização. E tudo o que puder pôr, em termos de execução, nas instituições particulares e no terreno, junto das populações, deve pôr. Andará mal o Estado quando se retira competências que estão a ser feitas pelas instituições.

Nesse sentido, a municipalização da política social é mau princípio? Falou-se muito da possibilidade de transferência de competências para as autarquias nesta matéria…
Só vejo vantagens, quando falamos em proximidade, que os municípios façam parte da acção. Não percebo também como se pode actuar a nível local com as instituições sem uma colaboração próxima com os municípios. Outro erro, que acho que foi feito recentemente, foi tentar pôr o mesmo modelo de colaboração entre municípios e a rede social, em quem preside sempre o presidente da câmara. O mal da nossa administração pública é tentar uniformizar procedimentos e comportamentos. Fiz recentemente uma proposta na criação dos PAS (Planos de Acção Social) que assenta no princípio da comunidade de vizinhos. Imaginemos: é preciso distribuir dez cadeiras de rodas no nosso bairro. O problema, muitas vezes, não é arranjar o dinheiro para dez cadeiras de rodas, mas sim arranjar alguém que trate disso. Um plano de acção social pode ter objectivos tão simples quanto estes. Não é preciso criar uma rede burocrática. O Estado como é que pode apoiar? Através de projectos muito concretos. Projectos que nasçam de baixo, da realidade. A minha crítica em relação à rede social é porque é algo que vem de cima. Impõe um fato e todos temos que nos encaixar nesse fato. Eu entendo que a acção social deve ser tudo menos uniforme. As instituições particulares de solidariedade social têm que ter capacidade para agir. A criação destes PAS permite esta flexibilidade que de outro modo não existia.

Quando foi ministro houve uma proliferação de instituições de solidariedade social. Muitas provavelmente sem condições nem qualidade…
O problema da qualidade não é dicotómico. Há instituições que funcionam com qualidade e outras que nem por isso. Um dos vectores importantes de apoio do Estado será precisamente o da qualidade, ou seja, apoiar e ter programas sociais que façam com que as instituições possam elevar os seus níveis de qualidade.

Existia a ideia de que as instituições de solidariedade e as Misericórdias eram “depósitos”, sobretudo da terceira idade…
Julgo que esse tempo passou. A própria opinião pública é muito crítica quanto a isso e denuncia casos de maus-tratos ou pouca qualidade de serviços. Até há casos de encerramento de instituições. Hoje há uma grande sensibilidade social que não tolera tratamentos desumanos e os depósitos que existiam anteriormente. Não quer dizer que não haja problemas, mas são muito menores. E o número de instituições aumentou muito. Hoje fala-se em quatro mil e tal instituições, portanto, temos aqui um sector da economia social já muito importante, até em termos de emprego. Há regiões do interior, onde há muita gente que está lá a fixar-se porque existem estas instituições. Se assim não fosse haveria mais desertificação do interior.

Acha que faz sentido nos tempos que correm, de crise, que haja um desenvolvimento ainda maior deste sector?
Quanto mais risco mais segurança deve haver para as pessoas poderem enfrentar as mudanças. É em época de crise que é preciso mais protecção e mais segurança. Não gosto do termo flexisegurança. Gosto mais de falar em segurança na mudança. Está-se numa época onde perante situações de crise, situações dramáticas de aumento de desemprego, principalmente aqui no Norte de Portugal, em regiões que eram bacias industriais, o reforço da componente social tem que ser muito mais forte. Isto mede-se em termos financeiros, mas também se mede nas tais relações com as instituições de solidariedade social.

Principalmente a nível da pobreza…
Exactamente. Acho que faria todo o sentido, por exemplo, nas regiões do Norte do país, e nas regiões principais vítimas desses processos de desemprego, haver programas específicos de apoio social. Porque não o Governo juntar as IPSS, as câmaras municipais e ver o se pode fazer, definir o que é prioritário? As pessoas sabem o que é prioritário, pois vivem-no no seu dia a dia, têm instalações, mas não têm capacidade para resolver os problemas dos miúdos, das creches, dos ATL… Através de uma conjugação de esforços, poderíamos atacar bolsas de pobreza que estão neste momento em maior crise, como por exemplo, fiz com Setúbal. Quando estive no governo tive lá um programa muito importante, com o apoio muito entusiástico do Bispo de Setúbal da altura, D. Manuel Martins: O programa de combate à pobreza correu muito bem, porque havia mesmo fome nessa altura. Ao contrário do Norte. Aqui as pessoas estão desempregadas, mas cada um tem a sua hortinha. Todo o país entenderá que é preciso agora apoiar os que mais precisam. Não estou aqui a dramatizar, mas a situação no Norte de Portugal, em termos sociais, é muito complicada, muito grave e entendo que deveria haver programas específicos para determinado tipo de sub-regiões nortenhas.

Como é que avalia a política social deste Governo, concretamente deste ministro Vieira da Silva?
Eu tenho muitas dificuldades e, por hábito, não gosto de comentar pessoas no exercício das suas funções. A política social não é de um ministro, mas de um Governo no seu todo. No meu tempo era assim e tive a sorte de ter um Primeiro-Ministro que tinha muita sensibilidade para os problemas sociais, embora na altura, não fosse julgado assim em termos de opinião pública. Hoje vê-se, no mandato que está a ter como Presidente da República, que é um homem sempre com grandes preocupações sociais. A política social tem que andar a par das outras políticas e o que acontece muitas vezes é que a política social vem a reboque, uma espécie de carro-vassoura que vem no fim do pelotão recolher aqueles que vão tendo problemas. A política social tem que andar a par das políticas económicas, culturais e até da política europeia. Desconheço o funcionamento interno deste Governo, mas o que eu gostaria é que fosse assim. Eu vejo a relação, por exemplo, com as instituições de solidariedade social e não me parece que seja muito saudável. Sinto que há um peso excessivo da máquina administrativa e as instituições particulares estão manietadas. O problema dos ATL’s não foi bem tratado. A solução final foi uma solução que não entusiasmou ninguém. Foi uma invasão clara do Estado junto das instituições. Há que se tratar com muito cuidado destes problemas.

Continua a considerar-se como um homem do Norte? Continua a defender o Norte apesar de ser eurodeputado?
Mais do que nunca. O Norte precisa de ser posto na agenda por uma razão óbvia: passou de uma das regiões mais industrializadas da Europa para uma das regiões mais pobres. Hoje só encontrámos comparação nos países de Leste. O Norte perdeu muito, sobretudo com a globalização. Lisboa não sofreu nada porque o mercado em Lisboa é protegido. Lisboa o que é que produz? Nada. Lisboa é a administração pública, os seguros, a banca… Os clientes estão lá, não é preciso andar à procura deles e até crescem todos os dias. No Norte não. Os clientes estão lá fora. A exportação era a base económica, precisava de ter preços competitivos, ir ao exterior convencê-los. Quando esses clientes se perderam, e a globalização fez perder muitos clientes, o Norte ficou desamparado e sem possibilidade de reagir. Eu creio que não é regionalismo barato quando refiro esta frase: quando o Norte está bem, o país está melhor. É preciso que Lisboa entenda, e tem muitas dificuldades em entender isto pelas medidas que vai tomando, que o Norte hoje precisa de um programa específico que ataque os problemas estruturais de desenvolvimento. Assiste-se ao contrário: abrem-se excepções para que Lisboa, que não tinha acesso a fundos comunitários, possa vir a ter em prejuízo, naturalmente, do Norte.

 

Data de introdução: 2008-11-10



















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