1 – Numa das últimas crónicas, adivinhava que a questão do Estatuto dos Açores iria converter em estratégia de bloqueio a cooperação estratégica, como lhe chamou Cavaco, que marcou os três primeiros anos de coabitação entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro.
Ainda bem que acertei, e que os acontecimentos me vieram dar razão.
Não está em causa a sensatez de Cavaco Silva. Que, como lembrei nessa crónica pretérita, quanto a este assunto, a tem toda, e reconhecida por gente tão insuspeita de cavaquismo como o são Vital Moreira, Gomes Canotilho e Jorge Miranda.
O que me agrada é o fim da cooperação estratégica em si mesma.
Por várias razões:
Ensinado que fui na escola antiga, em que as palavras tinham valor e significado preciso e eram utilizadas na exacta circunstância que o seu valor semântico justificava, não me habituei ainda à vulgarização vocabular que hoje percorre o discurso canónico.
Não gosto da palavra estratégia, nem das suas derivadas.
Para mim, estratégia sempre teve e terá que ver com a actividade militar, que a providência me dispensou de praticar quando era mancebo – termo que creio que só é usado na gíria castrense.
Sempre considerei, de resto, como uma das coisas em que me reconheço nas posições do Dr. Mário Soares, o seu desdém e sobranceria perante a tropa, e como uma sua virtude política não saber distinguir as divisas de um sargento das de um general.
Modernamente, estratégia é palavra que serve para designar quase tudo - desde os movimentos de tropas no terreno até às movimentações no seio dos partidos para assaltar a respectiva direcção política, passando de caminho pela imaginação financeira e pela tomada de posições dominantes nos negócios.
Por vezes, esta equivalência semântica entre o discurso bélico e o discurso político vai mesmo para além dos vocábulos singelos, passando ao nível mais complexo das locuções.
Pois não é verdade que, como se diz, e como mero exemplo, o Dr. Luís Filipe Menezes prossegue, na sua (re)tentativa de chegar ao comando do PSD, uma “estratégia de terra queimada” – como a que derrotou Napoleão em Moscovo e Hitler em Estalinegrado.
Sucede o mesmo com outras palavras, tão gastas de tão mal usadas.
É o caso da engenharia, que, das artes da edificação e da maçonaria (hoc sensu), transbordou para a vigarice e a corrupção, sob o nome respeitável de engenharia financeira; e saltou para a experimentação sobre as pessoas, a que se chama engenharia social; e até para a engenharia das almas – esta aliás mais usada, curiosamente, por aqueles que não acreditam sequer que coisa tão difusa como é a alma possa existir.
É isso: as palavras estão gastas. Já não nos fazem estremecer de emoção, ao pronunciá-las.
Recordando Eugénio de Andrade: “E, no entanto, antes das palavras gastas,/ tenho a certeza/ de que todas as coisas estremeciam/ só de murmurar o seu nome/ no silêncio do meu coração.”
2 – Mas o fim da cooperação estratégica tem também a virtude, esta mais substancial, de reforçar o papel do Presidente da República como limite do poder do Executivo, do Governo.
Portugal tem uma longa e funesta tradição política autoritária - e os portugueses uma covardia antiga.
Foi sem sobressaltos que expulsámos os judeus, no séc. XVI, para o Venetto, a Ásia Menor ou os Países Baixos, ou lhes retirámos os filhos, exportando-os para S. Tomé e Príncipe. Pelo contrário, fizémo-lo com a fúria dos convertidos, sabendo-se que Portugal é dos países da Europa com mais consolidada miscigenação semita da Europa, e que as comunidades sefarditas instaladas no sul da Península são anteriores às Invasões Bárbaras que trouxeram até cá os Suevos e Visigodos que vieram a constituir as castas dominantes no que é hoje Portugal.
Com o Marquês de Pombal, e o seu projecto de poder pessoal, foi o mesmo encolhimento colectivo – enquanto as Luzes rasgavam de espírito crítico e de liberdade os horizontes da Europa.
E a transigência com os 48 anos de Salazar e Marcello – que tiveram efectivo apoio popular durante a maior parte dos seus “reinados” –, enquanto a Europa renascia sob o impulso das democracias, vem desse ancestral “respeitinho” pela autoridade e pelos seus donos.
Andaram bem os Constituintes ao prever, na nossa Constituição, mecanismos mais sensíveis à precariedade do poder do que à sua exuberância, preferindo modalidades de governo partilhado em coligação à afirmação pletórica de poder pessoal que nos vai tanto ao feitio.
Por mim, antes quero ver o Presidente da República vigilante e apostado em moderar os arremessos do Governo, provando, agora como gourmet – palavra que suponho não estime excessivamente -, o que sofreu como veneno às mãos de Mário Soares, do que vê-lo, como pareceria suceder até ao fim do mandato, alinhado estrategicamente com José Sócrates.
O registo autoritário, embora ascético, de um, aliado ao exercício pessoal do poder como legitimação da acção política, de outro, era autoridade a mais para gente tão enfraquecida, como somos todos.
Ainda podíamos morrer de asfixia.
Há males que vêm por bem: ainda bem que o PS e o Governo resolveram vender a preço de saldo o sentido de Estado.
Pois não é verdade que está tudo em saldo?
3 - Outra força de bloqueio são ao Tribunais.
Ainda bem.
Para continuar esta revisitação de alguns temas de que tratei em 2008, lembro que fui um dos poucos cronistas da praça – talvez o único – que saudou a forma como o Tribunal tinha sabido resistir à pressão mediática no caso Esmeralda, procurando fazer cumprir a decisão, velha de cerca de 5 anos, que determinara a sua entrega ao pai, retirando-a ao casal de acolhimento.
(Creio ser também o único escrevente em jornais e revistas que trata o pai da Esmeralda simplesmente por pai, retirando-lhe o adorno “biológico” com que a pragmática jornalística procura desqualificar a paternidade; e seguramente o único a não chamar de “pais afectivos” o casal de acolhimento. Assim me situando nos antípodas da Inês Pedrosa, que vem escrevendo sobre o tema no Expresso, o que serve também para ver a pluralidade de perspectivas no seio do chamado alegrismo.)
Há dias, a imprensa deu-nos conta do relatório da avaliação social relativa à época de Natal, que a menor finalmente viveu com o pai; relatório que confirma o bom ambiente entre ambos e que reduz à sua verdadeira natureza de propaganda o que, ao longo dos últimos anos, a intelligentzia indígena procurou alçapremar ao nível de evidência social – que o Estado distribui a paternidade melhor do que a natureza.
Não deve ter sido fácil o papel do Tribunal – tendo em conta o nível de intensidade e a violência simbólica da pressão mediática, com abaixo-assinados nas bombas de gasolina e a quase unanimidade das figuras públicas, com a caução de duas antigas Primeiras-Damas, no que terá sido a primeira vez que estiveram de acordo.
O próprio Procurador-Geral da República, cujas posições não é fácil dissociar do Governo que o propôs, teve uma intervenção pública no processo que foi vista como significando uma alteração da posição do Ministério Público, no sentido de se acomodar à vontade do circo.
Valeu, para além da autonomia dos magistrados judiciais, o apoio que, sem subterfúgios, lhes foi dado pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais. Outra força de bloqueio, certamente, para quem prefere o pensamento único.
4 - Para acabar o percurso pelos órgãos de soberania, falta nomear o Parlamento.
Esse é que deveria ser a verdadeira força de bloqueio – na medida em que é o Parlamento que é eleito pelos cidadãos, e é dele que sai o Governo.
Sucede, no entanto, que o papel que os deputados reservam para si próprios não é o de depositários do poder soberano, que lhes foi outorgado pelo Povo.
Salvo raras e honrosas excepções, vêem o mandato mais como uma sinecura, que se mantém quanto maior for a obediência ao chefe.
Sou do Porto, e os meus primeiros anos como advogado corresponderam ao afastamento da profissão do Dr. Francisco Sá Carneiro, que deixou a advocacia para a liderança do PSD e, mais tarde, do Governo.
O Dr. Sá Carneiro era uma referência na classe no que ela tem de marca genética – a liberdade, a independência, a defesa dos oprimidos e dos mais fracos.
Ainda hoje o é de tantos portugueses.
Não quero parecer herético – coisa com que posso bem; nem parecer transigir com a ditadura – o que seguramente nunca sucederá.
Envolvi-me na campanha eleitoral de 1969, pela CEUD e pela CDE, no Porto, sendo o Dr. Sá Carneiro candidato pela União Nacional.
Mas tenho para mim que Francisco Sá Carneiro foi mais meu deputado na Ala Liberal, com a independência face a quem manda que a função encerra, do que os que hoje elegemos para exornar a Assembleia da República.
*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2009-01-07