ASSOCIAÇÃO DOS FAMILIARES DAS VÍTIMAS DA TRAGÉDIA DE ENTRE-OS-RIOS

Crescer a Cores na vila de Raiva

Oito anos depois da ponte Hintze Ribeiro ter caído ao Douro, arrastando consigo 59 pessoas (das quais só apareceram até hoje 23 corpos), a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios vê concretizado o seu primeiro grande projecto: a construção de um centro de acolhimento temporário (CAT) para crianças e jovens em risco, denominado “Crescer a Cores”. O momento teve a presença do mais alto representante do Estado português. Cavaco Silva inaugurou no dia seis do mês passado no lugar de Oliveira do Arda, na vila de Raiva, o CAT com capacidade para acolher 20 crianças e jovens entre os zero e os 18 anos, oriundos de qualquer ponto do país, nos termos do acordo assinado com o Instituto de Segurança Social. “Foi uma grande honra para nós que o CAT fosse inaugurado pelo Presidente da República”, disse Horácio Moreira, presidente da associação. A obra, da iniciativa dos familiares das vítimas da queda da ponte Hintze Ribeiro, teve um custo total de 750 mil euros, tendo sido comparticipada em 500 mil euros por fundos públicos e comunitários.

A vista do centro é digna de postal, com o rio a correr ao fundo, silencioso e calmo, não revelando a quem agora lá passa a tragédia vivida a quatro de Março de 2001, quando um dos pilares da ponte caiu, arrastando para o rio um autocarro e três automóveis e colocando, pelas piores razões, o concelho de Castelo de Paiva na ordem do dia. Situado a cerca de 45 quilómetros da cidade do Porto, o concelho de Castelo de Paiva é o mais distante da sede do distrito a que pertence (Aveiro), estendendo-se desde os limites de Arouca até ao Rio Douro, entre os concelhos de Cinfães, Gondomar e Santa Maria da Feira. O município paivense é uma faixa de terra caprichosamente recortada entre as províncias da Beira e do Douro Litoral. Com uma superfície de 109 quilómetros quadrados, uma população que ronda os 17 mil habitantes, este é um concelho tradicionalmente rural. No passado foi marcado pela exploração carbonífera do Pejão e mais recentemente pelas indústrias nas áreas do calçado, têxtil, madeiras e mobiliário, metalomecânica e construção de roulotes e auto-caravanas, que trouxeram emprego para a região.

É inserida neste meio que encontramos a vila de Raiva, a 12 quilómetros do centro do concelho e com uma população a rondar os 2500 habitantes. Raiva foi a freguesia mártir da tragédia da ponte: 34 das 59 vítimas mortais eram dali. Para quem vai a Castelo de Paiva, a tragédia denuncia-se logo, por contraste, à chegada às margens do rio, quando se vislumbram, lado a lado, como se de irmãs gémeas se tratassem, as duas pontes que entretanto se ergueram no local onde caiu a anterior - a reconstruída Hintze Ribeiro e uma nova, separadas por uns 100 metros. Ao lado, um enorme anjo, escultura que serve de monumento às vítimas.
Foi a queda da ponte que levou ao nascimento da associação, primeiro como comissão de familiares e vítimas e mais tarde, em 2002, legalizada como instituição particular de solidariedade social. “O nosso objectivo era atender às necessidades básicas dos familiares, porque depois dos holofotes se apagarem estava tudo esquecido”, lembra Horácio Moreira, presidente da associação. Também ele perdeu os pais na queda da ponte e a necessidade de se tomarem medidas era grande e urgente. “Havia muita gente a decidir pelos familiares e refiro-me às classes políticas de todos os quadrantes”, diz. O presidente faz questão de dizer que todas as decisões tomadas foram aprovadas por todas as famílias das vítimas, desde a apresentação da queixa-crime à construção do monumento em honra das pessoas que morreram.
A associação começou por desenvolver o seu trabalho numas instalações arrendadas e mais tarde emprestadas por outra IPSS da vila. O trabalho principal consistia em dar apoio psiquiátrico aos familiares, alimentos e roupa a quem precisava e prestar cuidados de saúde básicos. “A realidade da tragédia era penosamente crescente, ou seja, as pessoas viveram os primeiros dias anestesiadas e depois de caírem na realidade foi crescendo uma expectativa muito grande dos corpos aparecerem”. Sem nenhum protocolo com a Segurança Social, a instituição viveu vários anos apenas de donativos. “Toda a comunidade portuguesa nos apoiou e conseguimos angariar cerca de 20 mil euros”, revela o responsável. A direcção, exclusivamente constituída por familiares das vítimas, resolveu investir esse dinheiro numa obra social que fizesse falta ao concelho e depois de diversos contactos com as entidades competentes, a opção escolhida foi a da construção de um CAT. “Exigia-se um equipamento de raiz e nós, como tivemos crianças e jovens órfãos devido à ponte, achámos que seria uma boa forma de trabalhar na solidariedade”.

Para o responsável pela associação, a tragédia possibilitou encontrar “energias que desconhecíamos possuir”. O projecto original foi rejeitado e em tempo recorde reformulado para que cumprisse os prazos de aprovação. A construção começou em 2006 e esteve sujeita a algumas interrupções, motivadas pela falta de verbas, pois os 250 mil euros não comparticipados são suportados pela associação que recorreu a empréstimos bancários. Depois da obra erguida, a alegria dos envolvidos é a nota dominante dos discursos. “Sinto uma alegria enorme, um orgulho profundo por pessoas sem experiência, terem sido úteis ao próximo, mesmo passando pela dor e sofrimento”, afirma Horácio Moreira. Segundo o dirigente, a reacção da comunidade envolvente e de todo o concelho também foi muito positiva. “A nossa associação passou a ser o rosto do concelho de Castelo de Paiva e nós sempre tivemos cuidado para que a mensagem que passasse lá para fora ser a de que Castelo de Paiva não é mais uma terriola do interior dependente de subsídios, mas sim, uma terra com gente de iniciativa”.

A queda da ponte foi motor para o investimento público no concelho. Em 25 anos o investimento global feito no concelho ascendeu a pouco mais de cinco milhões de contos e apenas um ano após a queda da ponte, Castelo de Paiva tornou-se um estaleiro de obras e a injecção de capital disparou para 21 milhões de contos. O sector das acessibilidades era aquele em que se faziam sentir as maiores carências do concelho e 12 meses depois dispunha de um montante global de 17 milhões de contos de investimentos. A reconstrução da Ponte de Hintze Ribeiro foi orçada em 1,4 milhões de contos e a construção da nova travessia sobre o Douro, avaliada em pouco mais de 1,8 milhões. Segue-se a intervenção nas estradas nacionais 222, 224 e 225, que, segundo o presidente da Câmara de Castelo de Paiva, há mais de 30 anos que não levavam novos pisos, bem como a beneficiação da rede viária municipal. Para o presidente da Associação dos Familiares das Vítimas este grande desenvolvimento resulta daquilo que considera ser “a grande lição” da tragédia: “o interior do país começou a ser olhado de outra forma”.

Com a absolvição de todos os arguidos apontados como responsáveis pelo acidente, o sentimento de que se podia ter feito mais para apurar responsabilidades é dominante. “Nós não queríamos que se fizesse justiça cometendo injustiças e aceitamos a decisão do tribunal, mas com o sentimento de que a investigação poderia ter ido mais longe”, diz Horácio Moreira.
Oito anos após a tragédia, o dia-a-dia em Raiva voltou à normalidade. Dentro de portas, cada um guarda o sentimento de dor e saudade daqueles que o rio engoliu, mas a vida renova-se e o CAT veio também trazer emprego e dinâmica à vila. Com uma equipa técnica composta por quatro profissionais (dois psicólogos, uma assistente social e uma educadora social), o equipamento emprega 20 pessoas e o sonho é continuar a crescer. “Também nos tornámos uma resposta social no âmbito do emprego e daqui gostávamos de partir para outros projectos sociais”. A ideia é implementar um centro para crianças com deficiência mental dentro do CAT, uma ideia pioneira no distrito de Aveiro. Para o presidente da associação “trabalhar na solidariedade são projectos viciantes que nos levam a querer ir mais longe”. A entrada de crianças começou no início deste mês e os sorrisos e brincadeiras vão dar vida a um espaço pensado por aqueles que perderam muito, mas que encontram na solidariedade uma forma de ultrapassar a dor.

 

Data de introdução: 2009-03-11



















editorial

VIVÊNCIAS DA SEXUALIDADE, AFETOS E RELAÇÕES DE INTIMIDADE (O caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS)

Como todas as outras, a pessoa com deficiência deve poder aceder, querendo, a uma expressão e vivência da sexualidade que contribua para a sua saúde física e psicológica e para o seu sentido de realização pessoal. A CNIS...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Que as IPSS celebrem a sério o Natal
Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente
Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a...