Toda a gente o conhece na cidade de Lisboa. Tem 60 e muitos anos e anda sempre pelas mesmas ruas, na zona da Baixa, há duas décadas. A idade avançada e a vida na rua causaram-lhe variadíssimos problemas de saúde e já ninguém acredita que consiga sair daquela condição. Tem uma boa relação com os comerciantes das entradas onde dorme à noite e com as equipas de assistência que o visitam com regularidade, levando-lhe algum conforto. Deixa crescer a barba e recusa-se a cortar o cabelo. Banho só de longe a longe, mas sorrisos distribui-os a quem o conhece. “Em 20 anos nunca saiu da mesma zona e nunca quis vir a um jantar dos sem-abrigo. Gostaríamos de o ver fora das ruas e uma das nossas voluntárias conseguiu criar uma relação muito interessante com ele. Conseguiu que cortasse o cabelo, fizesse a barba, tomasse um banho e até marcasse uma visita a um dos nossos centros”, explica Celestino Cunha, coordenador técnico da Comunidade Vida e Paz, uma instituição de solidariedade social da capital que actua na área dos sem-abrigo.
A Comunidade nasceu da vontade de um grupo de católicos que se reunia de forma regular para a oração e que sentiram necessidade de ter uma atitude prática, encontrando na população sem-abrigo uma forma de intervenção e ajuda social. Todas as noites, 365 dias por ano, sem qualquer interrupção, desde há 20 anos, as equipas de rua saem da instituição à hora do jantar e circulam pelas ruas da cidade até às três, quatro horas da manhã. Distribuem comida (28 800 sandes e 1920 litros de leite por mês, no último ano) e roupa por cerca de 450 sem-abrigo de Lisboa, como forma de construir uma relação com essas pessoas que permita conhecer a sua situação e encorajá-las a entrar no programa de recuperação. Cada noite três equipas (em média com nove elementos e com uma rotatividade quinzenal) percorrem três percursos diferentes na cidade. Várias empresas e benfeitores contribuem para o conteúdo das ceias (duas sandes, um bolo, uma peça de fruta e leite).
Isabel Oliveira é a actual responsável pela gestão do voluntariado que conta com 550 elementos. “Faço toda a gestão dos nossos voluntários que vai desde a inscrição, à entrevista, à selecção e à formação”, explica. Quanto às funções do voluntário, a gestora destaca “falar com as pessoas”. “A maior parte do trabalho é estar com as pessoas, falar com elas e motivá-las para a saída da rua. Esse é o nosso principal objectivo. A distribuição da ceia serve como um meio de aproximação e estabelecimento de um primeiro contacto”. Com a chegada de uma quarta carrinha, será posta em prática uma quarta volta até ao fim deste ano. “Não queremos ir a sítios novos, mas diminuir o tempo de permanência naqueles que já existem porque os voluntários regressam à instituição muito tarde na noite e, muitas vezes, já apanham os sem-abrigo a dormir, não podendo conversar com eles, que é o nosso grande objectivo”.
Só nas equipas de rua participam voluntariamente 480 pessoas, mas depois há quem colabore com a Comunidade através de trabalhos em áreas de formação específicas, como advocacia, marketing ou serviço social, quer na sede quer nos três centros de recuperação geridos pela instituição. Apesar de o número já ser elevado, em lista de espera estão cerca de 120 pessoas a querer colaborar com a Comunidade, um facto que a técnica atribui ao trabalho efectuado pela instituição e aos projectos de sensibilização que têm vindo a desenvolver junto das escolas “que faz com que as pessoas estejam mais abertas para ajudar”.
O projecto de intervenção da Comunidade Vida e Paz assenta em três etapas: o primeiro contacto e motivação para a mudança, feito através dos voluntários das equipas de rua, o tratamento de recuperação, com aprendizagem e formação e por último a reinserção social. A porta de chegada efectiva das pessoas, depois da motivação feita nas ruas, é através do Espaço Aberto ao Diálogo, onde é feito um trabalho pessoal e técnico com cada indivíduo de forma a encaminhá-lo para outras estruturas de recuperação adequadas, dentro ou fora da Comunidade. “Por mês, chegam-nos em média uma centena de pessoas sem-abrigo”, diz Celestino Cunha, psicólogo e coordenador técnico da instituição desde 1997. “Este espaço assume um papel de plataforma de encaminhamento das pessoas que chegam até nós”. Durante vários anos, esta estrutura funcionou num autocarro de dois pisos cedido pela Carris e que se encontrava estacionado na zona do Campo Santana, em Lisboa. Em 2005, foi transferida para a sede, na zona de Alvalade, mas a direcção já está em negociações para encontrar novas instalações. “Temos um projecto para a criação de um espaço mais capaz e estamos em conversações com a Câmara Municipal de Lisboa. Temos agora que encontrar financiamento de cerca de 150 mil euros”, explica o coordenador. A ideia prevista para a nova estrutura passa pela criação de infra-estruturas que permitam realizar um trabalho articulado com os Albergues Nocturnos da cidade. “As pessoas podem ir dormir aos albergues e passar o dia connosco”.
Em 2008, a instituição contactou com 1112 pessoas no Espaço Aberto ao Diálogo e dessas, 400 seguiram para internamento em estruturas de reabilitação quer da Comunidade, quer de outras instituições. O programa de recuperação é realizado num dos três centros terapêuticos da Comunidade (Quinta da Tomada, na Venda do Pinheiro, Quinta do Espírito Santo, em Sobral do Monte e Quinta de Fátima) e passa pela desabituação de substâncias, no caso de dependentes de álcool ou drogas, mas também e sobretudo pela aquisição duma nova atitude perante a vida e competências que aumentem a possibilidade de encontrar um emprego. Desde a data de fundação e embora o número seja dado por estimativa, uma vez que não há registos do trabalho inicial, a Comunidade Vida e Paz já reinseriu mais de 1600 sem-abrigo. “É uma estimativa, pois há aqui muitos avanços e recuos, o sem-abrigo tem muita dificuldade em sair dessa condição”, explica o Celestino Cunha. O técnico diz que a problemática das pessoas a viver nas ruas é transversal e que se encontram casos de ex-empresários que já tiveram grande sucesso ou de pessoas com grau muito elevado de formação e que pelas razões mais diversas estabelecem rupturas definitivas com as famílias e tornam-se sem-abrigo. “É uma população muito flutuante, associada a comportamentos de risco e com predominância do sexo masculino”.
Através da Rede Social e com a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, a Comunidade participa num grupo de trabalho que faz a monitorização da cidade o que, por estimativa, permite apontar o número de sem-abrigo em Lisboa a rondar os 3 mil indivíduos. “Sentimos que cada vez mais as pessoas chegam com maior dificuldade de intervenção, ou seja, mais deterioradas, mais desgastadas, num estado mais difícil de tratar. Não é tanto a quantidade, mas a vulnerabilidade e a dificuldade de tratamento”, explica.
Com um orçamento anual de 3 milhões e 500 mil euros, em que as comparticipações e acordos com as estruturas governamentais cobrem cerca de 50 por cento desse valor, é necessário o recurso ao mecenato de empresas e particulares. “Não é fácil gerir uma instituição que só nos centros de reabilitação tem que alimentar e tratar diariamente mais de 200 pessoas”, diz. Contudo, 20 anos nas ruas a servir aqueles que estão no fundo da escala social, “impõe respeito e credibilidade”. “O que nos caracteriza é o facto de estarmos na rua com um respeito enorme pelo sofrimento das pessoas que lá vivem e ao mesmo tempo com abertura para as ouvir e não para lhes indicar caminhos, funcionamos pela atracção e não pela promoção”, afirma o técnico.
Quanto ao senhor Nelson, ainda não foi dessa vez que visitou um dos centros. No próprio dia ele recusou a visita já marcada, pediu desculpa, mas disse que não queria ir. “Foi um balde de água fria para a voluntária, mas ela não desistiu e essa é a nossa característica. Não quer dizer que o vamos conseguir tirar das ruas, mas vamos manter a via aberta e se um dia ele se sentir atraído e esticar a mão, nós temos que lá estar para ajudar”.
Texto e fotos: Milene Câmara
Data de introdução: 2009-11-08