A discrepância de registo entre o Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças durante a conferência de imprensa em que transmitiram aos portugueses a violência das medidas que constituem o PEC III representa um bom resumo dos últimos anos do Governo.
Recordemos a divergência:
À pergunta de uma jornalista, sobre se o corte dos salários dos funcionários públicos era para valer apenas em 2011, ou se continuava nos anos subsequentes, o Primeiro-Ministro respondeu – como se dissesse uma coisa óbvia – que se tratava de uma medida prevista apenas para 2011.
Ao que o Ministro das Finanças se julgou obrigado a vir, de imediato, corrigir José Sócrates, explicitando à jornalista e deixando claro aos portugueses – e, dentre estes, especialmente aos funcionários atingidos, como a mais singela lealdade impunha -, que os 5% de corte em 2011 eram, como são, para ficar para sempre.
Isto é, em 2012, os ordenados dos funcionários públicos não regressarão, por uma qualquer elasticidade, aos valores de 2010, retomando os 5% agora confiscados, mas manterão o valor base de 2011 – com o corte de 5%.
O mesmo sucederá nos anos subsequentes – o que agora foi cortado representará uma diminuição permanente dos salários dos funcionários públicos e nunca mais regressará.
Mesmo que, daqui a anos, haja de novo aumentos, eles incidirão sobre o ordenado ratado e não sobre ele inteiro.
Não se trata, na verdade, de um imposto extraordinário, como seria se o Governo fosse ao saque do 13º mês – medida essa que deixaria os salários intocados e da qual se poderia dizer, com honestidade intelectual, que seria exclusiva de um ano.
Trata-se de um corte feito – e que se quis feito - para durar.
Perante a correcção clara e transparente de Fernando Teixeira dos Santos, José Sócrates teve, com visível incómodo, de dar o dito por não dito – mas fê-lo como se o não fizesse, esclarecendo que o que pretendera dizer da primeira vez fora que só em 2011 haveria o corte, mas que, nos anos subsequentes, não haveria novos cortes dos vencimentos.
Isto é, em 2012 os ordenados não sofreriam novo corte de 5% - nem nos anos seguintes.
(Aliás, se assim fosse, e por esse caminho, com sucessivos cortes de 5% em cada ano, em poucos anos os salários dos funcionários teriam cortes de 50 ou 60%.
O Primeiro-Ministro limitou-se, nesta segunda versão da mesma notícia, a debitar o óbvio.)
2 – José Sócrates não quis dizer com a nitidez exigível que se tratava de uma medida cujos efeitos nos salários dos trabalhadores seriam permanentes.
Introduziu, assim, uma ambiguidade discursiva, em que é perito – não se podendo em bom rigor dizer que mentiu, mas também não se podendo dizer que não mentiu.
Disse que era para 2011, mas, lá bem no fundo, o que verdadeiramente quis dizer foi que era para sempre.
(Tive, em Coimbra, um professor de Direito que, sobre a ambiguidade semântica, contava a seguinte historieta:
Na Grécia antiga – quando os deuses não eram, como hoje, os do mercado -, partindo um guerreiro para a batalha, a sua mulher procurou a Sibila de Cumas para que esta lhe vaticinasse o futuro. A Sibila escreveu num papel, sem qualquer pontuação: “Voltará não morrerá na guerra” – formulação que, pontuada de modo diferente, conduziria a duas respostas possíveis e opostas: Voltará? Não. Morrerá na guerra; ou: Voltará! Não morrerá na guerra.
De uma forma ou de outra, morresse ou vivesse o guerreiro, a resposta da sibila estaria sempre certa.)
Sócrates – o nosso, não o grego homónimo – é como a Sibila de Cumas: acerta sempre nas suas previsões, mesmo que as de hoje sejam o exacto oposto das de ontem, mesmo que tenha de aparecer agora com um PEC novo para sanar as insuficiências daquele que, ainda há 15 dias, nos dizia que bastava até ao fim de 2011.
Pelo seu lado, Fernando Teixeira dos Santos é um conceituado professor de Economia.
Tem mais vida para além da política e não pode, nem quer, ficar amarrado, numa medida muito grave para tantos portugueses, a uma explicação habilidosa, que não seja frontal e séria.
A uma operação de propaganda.
Mesmo que as medidas sejam discutíveis e controversas, como é o caso de todo o PEC III.
(“Foi esta semana a enterrar o PEC II, que por sua vez já havia enterrado o PEC I, que sucedeu ao défice de 2009, que foi crescendo, crescendo, sem que o ministro das Finanças tenha conseguido explicar como e porquê … Depois de nos ter sido dito repetidamente que as medidas do PEC II eram necessárias e suficientes, há um défice claro de explicação sobre o que aconteceu para que tenham deixado de ser. Hoje, o que está em causa (…) é também perceber exactamente se o que falhou foi a capacidade de previsão, de execução, ou as duas.” Pedro Adão e Silva, nada menos do que o autor do programa do PS no tempo de Ferro Rodrigues, Expresso de 2 de Outubro de 2010.)
3 – Já aqui tenho escrito, com demasiada frequência nos tempos mais recentes, sobre o conúbio entre o Governo e a PT.
Fi-lo a propósito da tentativa de interferência do Governo na TVI e do papel que a PT se prestou a desempenhar nesse enredo pouco edificante; também a propósito da novela da venda e não-venda da VIVO à TELEFONICA, em que a PT permitiu ao Governo fazer a cena das entradas de leão, com o veto faz-de-conta, em propagandeada defesa dos interesses estratégicos nacionais, para o Governo, em paga, permitir aos accionistas da PT ganhar milhões em mais-valias, logo no dia seguinte, já sem veto – mais-valias dispensadas do pagamento dos impostos, que só o Zé Povinho paga; e ainda a propósito do ancoradouro que a PT tem representado para colocação de jovens das famílias certas ou especialistas na colagem de cartazes do partido do Governo em lugares de administradores, pagos à americana.
Faltava esta novidade do PEC III – em que a PT oferece o seu fundo de pensões como receita extraordinária, para o Governo mascarar o défice, passando para a Caixa Geral de Aposentações o encargo futuro com o pagamento das pensões aos reformados da PT: os milionários e os outros.
Isto é, retirando das contribuições pagas pelos funcionários públicos os avultados montantes que serão necessários para o pagamento dos encargos futuros com as pensões do pessoal da PT, assim descapitalizando essa Caixa.
É que o dinheiro do fundo de pensões da PT não vem para a Caixa de Aposentações, para mais tarde pagar as pensões que lhe estão associadas.
Não. O dinheiro do fundo é para gastar já.
Em submarinos, parece.
Mas não só, já que o montante do fundo é mais do dobro do que o necessário para pagar o que o Governo diz.
Sobram 1500 milhões de euros, de que o Governo não fala.
(Não sei se os submarinos já receberam a pancada regimental de uma garrafa de champagne no casco, para o baptismo.
Se ainda for a tempo, proponho que recebam os nomes de BPP e BPN, que são os nomes certos)
O Primeiro-Ministro, numa das muitas entrevistas desta semana, garantiu que os contribuintes não pagarão um cêntimo das pensões da PT.
Mas José Sócrates, já o disse, é como a Sibila de Cumas: só depois de os contribuintes começarem a pagar essas pensões, desmentindo a sua garantia de hoje, é que vai pôr as vírgulas.
Como sempre, vai pô-las onde mais lhe convier na ocasião.
*Título de um livro de poemas de José Augusto SeabraHenrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2010-10-09