SOLIDARIEDADE - O governo e o PSD acabaram de chegar a acordo na generalidade sobre o Orçamento de Estado para 2011. Qual é a opinião da CNIS em relação ao documento?
LINO MAIA - Eu não sei se a opinião da CNIS coincide com a minha. Tenho que ter algum cuidado porque posso confundir o conjunto das ideias da maior parte das instituições de solidariedade com as minhas próprias ideias. Todo o país parece considerar que é bom que o orçamento passe. Eu, muito sinceramente, não estou entusiasta. Por um lado gostaria que passasse, por outro não. O orçamento de Estado para 2011 é reconhecidamente um orçamento mau. Deixar passar um mau orçamento é capaz de ser algo imprudente. Eu penso que era possível ter um orçamento bem melhor. Se não somos capazes de fazer um bom documento, então deixemos que outros o venham fazer por nós. Que venham gerir a nossa casa. Quase estava inclinado a patrocinar uma situação dessas. No que se refere às IPSS este orçamento é francamente mau. É péssimo. Não posso subscrevê-lo.
Concretamente quais são os aspectos que penalizam as IPSS?
Nós vamos ter em 2011, como já tivemos durante 2010, mais pobres, mais pedidos às instituições, menos meios para responder às necessidades e mais vontade de o fazer. Mais pobres e mais pedidos ressaltam, de facto, de algumas opções do OE. Nomeadamente, quando corta apoios em prestações sociais a pessoas, quando aponta para alguma recessão, com consequente aumento do desemprego, mais situações precárias e mais pedidos às instituições e menores rendimentos por parte das famílias. Do Estado também haverá menos apoios às IPSS. Por outro lado, o que é absolutamente perverso, o fim da devolução do IVA, de viaturas, de obras, seja de novas construções, de readaptações ou de requalificação. Representa muito e é um sinal muitíssimo negativo para o sector solidário.
Há algum aspecto positivo no OE 2011 para as IPSS? Gostaria de encontrar mas não encontro.
A transmissão de imóveis para as IPSS…
Pode parecer. Para mim não é assim tão líquido. Já tenho a experiência de que são monos, encargos e incompetências que se transferem. É evidente que as IPSS têm que estudar caso a caso mas, como o povo diz, quando a esmola é grande o pobre desconfia e eu estou desconfiado deste processo.
Que papel é que a CNIS desempenhou neste processo negocial do OE 2011?
Há uma referência que tenho de fazer à partida: A empresa de advogados Vieira e Almeida prestou-me um apoio muito grande. Ajudou-me a descobrir esta deficiência, que fazia referência apenas a um decreto que era suspenso e, numa leitura rápida, passava despercebido. Imediatamente alertei o conjunto de dirigentes da CNIS, o conjunto dos dirigentes de Uniões Distritais, alertei a Presidência da República, todos os partidos com assento parlamentar e o próprio Governo. Avisei que lutaria com todas as minhas forças contra esta inviabilização da devolução do IVA. É um assunto muito complicado. Penso que nem todos os membros do governo, ligados ao processo, estavam alertados para esta questão. Temos muitas obras habitualmente em curso, novas ou de beneficiação e recuperação. Quando os dirigentes se lançam a essas obras sabem que pagam o IVA mas também contam com a sua devolução. No planeamento das obras já está previsto. Não seriam tão profundas ou nem sequer se começariam se não houvesse a devolução do imposto. E há ainda um conjunto de obras ao abrigo de alguns programas em curso, programa PARES, Rede de Cuidados Continuados Integrados e POPH, umas em conclusão, outras em fase de concurso. Neste momento em concreto, segundo uma sondagem que fiz, temos um volume de obras de IPSS filiadas na CNIS que ultrapassa os 200 milhões de euros. O que significa que estas obras vão encarecer em 23 por cento. De zero para 23 por cento. As obras em curso passam a custar 246 milhões de euros. É muitíssimo significativo.
É uma situação constrangedora para as IPSS…
As IPSS não contavam, as regras do jogo já estavam definidas e estou convencido de que se uma instituição soubesse que não recuperava o IVA não se lançava nas obras. Quando há um concurso destes programas as IPSS sabem que terão que suportar em média entre 50 a 60 por cento dos custos globais. Com mais 23 por cento… Não têm capacidade porque vivem no fio da navalha. E há também uma violação do princípio da lisura da União Europeia. No POPH, concretamente, são fundos comunitários. Se as IPSS têm que pagar de IVA 23 por cento, significa que o Estado Português vai auto-financiar-se através das instituições com fundos comunitários para os quais contribuiu de modo exíguo. Isto é perverso e tenho fundados pareceres que dizem que viola o princípio da transparência. Mas isto nem sequer é importante para aqui. As IPSS não têm mesmo possibilidades para fazer as obras. A qualidade de que se fala, e cada vez mais se exige, está posta em causa porque a beneficiação dos equipamentos não é possível com o IVA a 23 por cento. O governo diz que nas obras que estão em curso, ao abrigo da Rede de Cuidados Continuados Integrados e do PARES, já não são muito significativas as cobranças de IVA. Não é uma leitura correcta até porque a fase de conclusão é a mais cara. Em relação ao POPH, os contratos foram assinados em Junho e é agora, até final de Novembro, que se conclui uma série de processamentos para se lançarem as obras a concurso. É evidente que não vão ser lançadas. Serão menos lares e menos equipamentos de apoio a pessoas com deficiência, quase metade, e são bem necessários. Os deficientes e os idosos são, de facto, ostracizados e postos em causa pelo Estado Português.
Com as alterações ao regime do IVA o Estado quer poupar 100 milhões de euros…
Estamos a falar da devolução de IVA a Igrejas, Santa Casa da Misericórdia - a Igreja Católica fica de fora - mas o grande volume é das IPSS. Ao longo do ano o Estado pouparia 100 milhões de euros, mas não tenhamos dúvidas: a partir de Janeiro de 2011 estas obras não avançam e, portanto, o Estado, que queria ir buscar o valor do IVA, não vai buscar nada. Não é uma ameaça é uma realidade. O Estado matou a galinha de ovos de ouro que pensava que eram as IPSS.
Durante este processo o presidente da CNIS ouviu algumas críticas, na forma como se relacionou com o governo. Foram injustas?
Eu compreendo. Há alguns fiteiros que gostam sempre de atirar algumas críticas injustas. Provavelmente algumas instituições gostariam que eu fosse mais duro, mais violento na linguagem. Devo dizer que mesmo neste momento estou a procurar ser moderado na linguagem. Estão em curso algumas negociações e contactos para tentar resolver a situação. Quem está na frente em que eu estou e tem que dialogar com quem eu dialogo, ainda que às vezes pareça um diálogo de surdos, tem que ter alguma moderação. Com as pessoas com quem tenho tratado estes assuntos no governo tenho sido extremamente duro. Em público devo ser moderado. Desde o dia 21, em que denunciei a situação, tenho procurado usar alguma moderação pública e muita persuasão com os departamentos e com os partidos. Neste momento estou esperançado de que a questão se resolva quando for debatida na especialidade, na AR. Já recebi alguns sinais que me fazem pensar que o próprio governo sente a necessidade de rever a situação. Porém, não posso garantir nada.
Tem negociado também com o PSD. Qual tem sido a receptividade?
Está muito sensível. Os vários partidos, com excepção de um que não o PS, estão muito sensíveis. Têm manifestado vontade de resolver o problema. No PSD foi equacionado como podendo dever constar nas negociações para a viabilização do OE. Mas na discussão do Orçamento na especialidade espero que o PSD recupere o assunto – e não estará só.
Como antevê que venham a ser os próximos anos para as IPSS?
Ainda antes de 2011, preocupa-me este momento em concreto. As IPSS têm cooperado de uma forma excelente com o Estado. Fazem muito e muito bem. A cooperação só é possível desenvolver-se na fidelidade a alguns princípios, nomeadamente, lealdade e boa-fé. Esta é a segunda “machadada” na cooperação e faz-me temer pelo futuro. A cooperação está ferida de morte. Não é assim que as IPSS poderão cooperar com o Estado.
O que é que falhou nas negociações da cooperação com o Estado?
Falhou tudo. Este comportamento é o que não pode nem deve ser feito. E eu temia que viesse a acontecer. Em devido tempo quis fazer um levantamento de todas as instituições que estavam com obras e que se tinham candidatado ao PARES, à Rede de Cuidados Continuados, ao POPH e foi-me sonegada informação. Eu tinha, antes do dia 21, a percepção de que isto podia estar a cozinhar-se. E ela tinha fundamento. Não é a passagem de 21 para 23 por cento do IVA: é de zero para 23 por cento. Eu comparo aquilo que foi feito com a caça ao javali. Andou-se a assediar as IPSS com programas, as instituições candidataram-se e foi-se fechando o cerco. Agora encerrou-se. E diz-se às IPSS, que estão enclausuradas, com compromissos assumidos, com obras em curso e contratos assinados, que não podem passar sem entregar 23 por cento do IVA. Isto é usar e instrumentalizar as instituições que têm sido de uma generosidade e de uma dedicação espantosa. Convém não esquecer que 73,3 por cento do que se faz neste país na acção social, para a coesão - quem o diz é a carta social, insuspeita quanto à neutralidade - é trabalho feito por estas instituições. O que será deste país se as IPSS deixarem de fazer o que fazem? Maior desemprego, centenas de milhar de utentes que ficam mais fragilizados. 2011 e 2012 estão envoltos em muitas e pesadas nuvens. Eu não quero fazer ameaças, mas não posso garantir que as IPSS continuem a cooperar, com estes pressupostos. Em 2010 paira o espectro da pobreza sobre a Europa e, em especial, sobre Portugal. Haverá pobres mais pobres. Sem o contributo das IPSS, para diminuir a pobreza e minorar os seus efeitos, penso que ficaremos muito pior. Prevejo um futuro muitíssimo nebuloso.
Qual vai ser o comportamento da CNIS neste cenário de crise profunda?
É a primeira vez que começo a dizer isto. Na crise de 2008 e 2009 não houve nenhuma instituição a encerrar portas. Não tenho a menor dúvida que a partir de agora há IPSS que vão fechar. As que estão com obras em curso e vão ter que as interromper contraíram encargos e não vão ter receitas. Haverá instituições com dificuldades para continuar a responder aos desafios sociais e multiplicar serviços. A CNIS neste contexto é capaz de dar dois sinais: Um sinal a dar é dizer que é importante prestar estes serviços, mas talvez fora da cooperação. Uma opção grave que tem que ser ponderada. Muitas Instituições ligadas a alguns sectores, escolherão os serviços de proximidade e caridade. A segurança social virá dizer que tal não é possível porque os equipamentos foram feitos com apoios do Estado e viola os acordos de cooperação e tudo o que está em curso, Lamento, mas não fomos nós os primeiros a violar a cooperação. O outro sinal que provavelmente será dado: é capaz de ter chegado o momento de dizermos basta. Temos a força que temos, com ideias sobre o futuro de Portugal, que carece de um rumo solidário: vamos afirmar a nossa posição. Chegou o momento de alguma afirmação deste sector.
O facto de ter havido uma troca de responsáveis na pasta da Solidariedade Social pode ajudar a compreender as dificuldades de relacionamento institucional de que fala?
É inquestionável. Tenho pena de o afirmar. Tenho um enorme apreço por Vieira da Silva que liderou o ministério durante mais de quatro anos. A ministra Helena André talvez esteja mais desperta para outras áreas e tenha menor sensibilidade que o anterior ministro para esta em que nos movemos. Vieira da Silva era sensível e sabia em quem podia confiar. O diálogo era permanente. Agora somos confrontados com factos consumados.
Por último, gostaria de saber se os sinais que a CNIS vai dar nos próximos tempos vai ser consigo a liderar?
O mandato termina daqui a doze meses. Neste momento penso que tenho a obrigação de não desistir, apesar de ter sido gravemente apunhalado. Estou profundamente dorido e desiludido com as punhaladas de algumas figuras do governo. Até Novembro de 2011 continuarei disponível para a luta. Mas o combate terá um termo.
Por V. M. Pinto (texto e fotos)
Data de introdução: 2010-11-05