Dantes, nas famílias - naquelas numerosas, que então havia, cheias de ramos e de parentes, de prosápia e de penúria, de doutores e de costureiras -, verificava-se amiúde esta oposição: havia os primos ricos e havia os primos pobres.
A origem das diferenças de posses e de estatuto relativo dentro dessa vasta composição familiar era diversa: desde os efeitos da lei do morgadio, que conferia apenas ao filho mais velho o direito à herança dos bens vinculados à família, com preterição dos demais, até à dissipação dos bens por parte de um qualquer ascendente, normalmente com o jogo ou com mulheres; desde os verdadeiros roubos que uns membros da família faziam aos outros, em partilhas, até à incúria e à má administração que derretia os bens como manteiga; desde as fortunas feitas no Brasil, até às perdidas em falências de bancos e companhias; desde o desfavor com que eram tratados os filhos do primeiro casamento, em benefício dos tidos, em posteriores casamentos, por homens que haviam enviuvado, até ao privilégio com que eram tratados, umas vezes, ou levados ao desprezo, outras, os filhos bastardos.
(Peço desculpa por usar aqui esta palavra “bastardos”, hoje felizmente banida da nossa lei e da nossa linguagem, ou referir-me à dissipação dos bens com mulheres, linguagem marialva que vai mal com o ar do tempo.
Utilizo-as apenas no registo histórico, para melhor explicar a origem das desigualdades no seio das famílias, tal como se configuravam nos dois séculos passados.
Quem ainda leu, no tempo do liceu, “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, de Júlio Dinis, ou os romances de Camilo, sobre as diversas vicissitudes das famílias, ou se lembra das idas “às espanholas”, sobre que escrevia, no seu estilo acerado, Eça de Queiroz, perdoar-me-á certamente este excurso aparentemente tão reaccionário.)
Os primos ricos convidavam normalmente os primos pobres para as festas que celebravam nas mansões familiares – mas para os últimos lugares do protocolo, ou para ajudarem na copa -, ou para outros serviços considerados menores, como serem aias das crianças ou damas de companhia.
Em, suma, o convite era, em regra, uma humilhação.
Tais convites eram, no entanto, normalmente aceites pelos parentes pobres, que não queriam perder a identidade e a pertença -, fazendo, no entanto, crescer, na respectiva proporção, o seu azedume e a sua inveja pela sorte dos outros, dos ricos.
Mas também, em contraponto, o seu contentamento humilde por poderem respirar os mesmos ares cosmopolitas dos parentes ricos.
2 – Tal qual Portugal na União Europeia.
Parentes pobres e pelintras de uma família de ricos, também chegámos à penúria por um conjunto de razões, que não são diferentes das que se verificam nas famílias verdadeiras.
Também nós pagamos agora o sermos herdeiros de pais, avós e bisavós, que gastaram o que tinham e o que não tinham em festas e em mordomias, fazendo dívidas e constituindo hipotecas que nem o Frei Januário dos Anjos, procurador do Fidalgo da Casa Mourisca.
Como os nossos antepassados, também nós nos arruinamos com “as espanholas”, hoje na forma de centros comerciais, férias no Pacífico ou no Brasil, com créditos ao consumo sem freio e sem fundo.
Nos banquetes, vamos para os lugares do fundo, com a Grécia, a Irlanda e a Espanha – os sem maneiras, ou os PIGS, “petit nom” com que nos carimbam o ferrete da pelintrice e da má vida.
País mais antigo, em fronteiras estáveis, da Europa e porto de embarque para o Novo Mundo, deixámo-nos resvalar para a periferia e para os subúrbios – à eterna espera que nos paguem um TGV, para irmos mais depressa beber do fino à Prússia e à Finlândia, como os nossos avós iam pelo Sud Express, a Paris, buscar a civilização, os fatos, os vestidos e os chapéus, os vinhos de Bordeaux e a água de Vichy.
O novo ouro do Brasil dos Fundos europeus, que deveria ter sido para o desenvolvimento dos nossos recursos, foi para o abandono da terra, da pesca e das indústrias, para jipes e piscinas.
Também não nos faltam no currículo investimentos perdulários em bancos falidos, como o BPN ou o BPP, nem dirigentes políticos que, como tantos feitores, enriqueciam o seu património pessoal, à custa do empobrecimento do dono das propriedades – dono que somos nós, o povo, neste triste caso.
A cada novo passo para o abismo, olhamos para o lado, para os primos ricos e para o seu modo de vida – e o rancor cresce, a raiva cega e a inveja avinagra a alma.
3 – Escrevo esta crónica na véspera da data em que a troika FEEF/FMI/UE nos ditará, ao que consta, em conferência de imprensa, o nosso próximo destino colectivo.
Como sucedeu com os PEC’S, as notícias sobre as medidas vão saindo, com antecipação cirúrgica, a fim de nos preparar para elas e de minorar o seu efeito e impacto, quando forem na verdade anunciadas.
As reacções dos dois principais partidos – um dos quais seguramente nos governará a partir de 5 de Junho; ou mesmo ambos, como reclamam os senadores … - também se não afastam muito do comportamento típico das famílias verdadeiras.
Do lado do Governo, e do PS, o tom foi marcado, como sempre, pelo Primeiro-Ministro: e consistiu, numa primeira fase, em colar ao FMI e seus parceiros o rótulo de instrumentos do grande capitalismo financeiro internacional – o que é, aliás, verdade -, para apresentar, em contraponto, a grande ambição do Governo em evitar pedir assistência financeira; mas, depois de o Ministro das Finanças ter imposto esse pedido, proclamar que o Governo – e, mais do que o Governo, o próprio Primeiro-Ministro - lutará até à última gota de sangue para manter o essencial do modelo de Estado Social em vigor.
(Ambição que o Governo se esqueceu de manifestar durante 6 anos em que cortou nas pensões, nos abonos de família, no subsídio de desemprego e nos salários … enquanto frequentava a casa dos ricos.)
Esquecendo que o auxílio só é necessário porque o Governo andou, nesses últimos 6 anos, a administrar o País como o fazem os ramos das famílias que empobrecem – e a apelintrar-nos.
Como os “primos do Cruzeiro”, do romance de Júlio Dinis – que, depois de delapidarem o património que tinham recebido de herança e ficarem sem recursos para a vida ociosa que levavam, se julgavam no direito de roubar as galinhas e as hortas dos pobres para as suas ceias.
Do lado do PSD, como do Presidente da República, a posição perante a troika é mais próxima do registo de humilde satisfação sobre que escrevi acima: não hostilizando, nem contrariando os primos ricos, que nos vêm trazer dinheiro da Alemanha para depois o devolvermos à mesma Alemanha – pagando-lhe os juros usurários com que nos andam a roer a carne e os ossos.
E que, de caminho, nos querem pôr com dono e com a rédea curta.
4 - Regressando, para fechar a crónica, ao romance de Júlio Dinis, creio que não nos iria mal, para o futuro, o exemplo do Jorge: que pegou nos bens da família, que estavam de rastos, afastou administradores incompetentes, remiu hipotecas, pagou dívidas com empréstimos decentes - e pôs a terra, que era então, como agora, a riqueza que temos, a produzir.
Antes isso do que olhar de lado, com inveja dos outros, mas sem querer trabalhar com eles.
Não será fácil, porque já somos como somos há vários séculos.
Por alguma razão, que não nos honra, a última palavra de “Os Lusíadas”, que vai no título da crónica, é “inveja.
Henrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2011-05-07