MOITA FLORES, PRESIDENTE DA CÂMARA DE SANTARÉM

O Estado português devia erguer uma estátua às IPSS

É importante para Santarém receber o Congresso Solidário organizado pela CNIS que agrega o maior número de instituições de Solidariedadedo país?

Não só é importante como é uma honra. Foi em Santarém que o Sr. Presidente da República terminou o roteiro para a inclusão social. Para mim esse foi um momento alto, e é um orgulho para Santarém ser palco de discussão em torno dos problemas daqueles que mais precisam. Julgo que este tipo de congresso torna-se uma manifestação de visibilidade forte quando as próprias estruturas do Estado entram em falência. Esta é a resposta de homens e mulheres, voluntários, vindos de todos os pontos do país, da vida pública e política, social, religiosa, que se manifestam e se assumem como o sustentáculo da esperança. Será uma enorme honra para Santarém, uma grande alegria e vamos receber todos de braços abertos.

É um congresso num momento crítico. Coincide com o início da campanha eleitoral, para um ciclo de vida política difícil. Acha que esta indefinição que se criou tem implicações graves na gestão das autarquias e das IPSS?

De certeza absoluta. Nem me passa pela cabeça as aflições que as IPSS estão agora a viver pela ausência de interlocutores consequentes. Agora toda a gestão é episódica. Penso que este congresso vai viver essa angústia. Tendo aparecido antes das eleições e no período eleitoral, o que pode resultar de mais importante neste congresso é o esclarecimento do programa. Um programa que deve ser claro, preciso, e que deve responsabilizar quem está a candidatar-se para a governação do país.

A tentação de cortar nos apoios aos mais pobres é um erro tremendo de qualquer programa eleitoral?

Vou dizer com toda a sinceridade. Eu sou um independente. Não tenho uma visão da política sectária, partidária. Mas neste PEC4, que foi chumbado, graças a Deus, o que mais me afligiu foi atingirem as reformas de sobrevivência. Quando falamos de 200 euros, geralmente este dinheiro é para alguém doente, que precisa de medicamentos, precisa de comer. E se for por aí que vão cortar isso é um crime de traição à pátria. A pátria é, essencialmente, solidariedade. A coesão nacional de que se fala, o contrato constitucional que temos, é um contrato onde os direitos dos mais fracos, dos mais desvalidos, dos mais expostos têm que ser essencialmente protegidos. Portanto, se mexerem aqui julgo que é um crime de traição à pátria. A pátria são centenas de milhares de pessoas que precisam do nosso apoio, da nossa entrega, porque não tiveram a mesma oportunidade. Há vidas que se construíram com maior dificuldade, outras com mais sacrifício, mais sofrimento. Portanto, temos esse direito formal, não só moral, porque a Constituição assim o diz, de não podermos permitir que os que mais sofrem sejam ainda mais atingidos pelo sofrimento. Os desequilíbrios em Portugal são muito graves entre ricos e pobres. É preciso arranjar uma forma de aqueles que são os mais pobres dos pobres, os mais solitários, não sejam arrastados neste turbilhão que está para chegar aí com as negociações do FMI. Portanto, posso dizer-lhe que só isto faria com que eu não votasse a favor do PEC 4. Há outras formas de ir buscar receitas. Eu estou disponível para perder os meus subsídios de férias e de Natal, e para que a minha família os perca. Porque os podemos entregar. Mas a quem tem 200 ou 300 euros, e que vive às vezes numa solidão profunda, tirar-lhe 10 ou 5 euros é de uma insensibilidade, de uma crueldade sem igual.

O senhor, nessa sua militância independente, como é que olha para o país, a partir de Santarém?

Confesso-lhe que olho para isto com uma preocupação maior do que nos anos 1981 e 1982. Remeto para as memórias desses anos, em que estava na polícia judiciária, o ordenado não era assim muito grande, e foi um tempo difícil para a população. Em 1982 e 1983 estava quase tudo por fazer, no que diz respeito a estradas, escolas, e tudo o que era estrutural e de desenvolvimento. Agora estamos perante um desafio em que não encontramos os caminhos certos. Se ouvirmos os especialistas em economia eles deixam-nos completamente embaraçados. Aquilo que vejo é que no PSD, no PS, no CDS, no PCP, que tem um historial de solidariedade intenso, e até no Bloco de Esquerda, que enche a boca de solidariedade e depois não percebe isto, de uma forma geral, os partidos deveriam ter humildade e eu até agora não a vi. Deveriam ter humildade para perceber que estamos confrontados com um destino que ameaça a nossa independência e a nossa soberania. Essa humildade é o que, na comunidade franciscana, nos leva a pensar naquele célebre princípio de S. Francisco que é dando que se recebe.

A culpa é de quem, no seu entender? Não se pode olhar para a culpa próxima destes últimos anos?

Isto é tudo treta de campanha eleitoral. E não se pode dividir o país, como é feito, entre patriotas e anti-patriotas. No chumbo do PEC 4 o ministro Teixeira dos Santos ficou com a culpa toda. Enfim, esta ideia da culpa está muito enraizada dentro de nós. Temos que procurar a culpa, o culpado, é uma necessidade. Então do ponto de vista político, o folclore é uma coisa terrível porque eles acusam-se uns aos outros sem perceberem que todos são culpados. Mais, permita-me este gesto de humildade, todos somos culpados. Nós vivemos acima das nossas possibilidades, gastamos acima das nossas possibilidades, consumimos acima das nossas possibilidades. Já com a crise a explodir, em Dezembro, nós gastamos mais 100 milhões de euros em compras de Natal. Como é que se explica isto? É sobretudo uma crise de valores. Eu escrevo muito sobre isso. Julgo que a nossa crise financeira e económica resulta, sobretudo, de uma profunda ruptura com valores socialmente tidos como bons, com a emergência de novos valores, melhores ou piores, mas são valores que alteraram as nossas coordenadas do pensar.

Como é que caracteriza a acção social desenvolvida pelo município? Tem havido consonância e colaboração com as IPSS?

As IPSS do concelho de Santarém são uma poderosa força de concentração e de ajuda àquilo que é uma realidade extremamente desequilibrada do ponto de vista do seu desenvolvimento económico e da sua estrutura demográfica. Somos um concelho, um rectângulo, que a norte e a sul tem regiões com um belíssimo desenvolvimento económico. Depois temos quase 350 quilómetros quadrados de concelho de gente envelhecida, de gente com cada vez mais dificuldades. E todo este movimento gera desequilíbrios desgastantes, leva ao abandono dos campos e à falência da agricultura. E essas carências têm sido, em grande parte dos casos, superadas pelas IPSS. Temos três Santas Casas da Misericórdia, temos um Centro Paroquial, a Cáritas, a Cruz Vermelha, o Banco Alimentar conta a Fome e muitas outras organizações. Temos, portanto, um conjunto de organizações que têm tido um papel de charneira. O Estado português devia, aliás, fazer uma estátua às IPSS porque elas estão a ser a almofada de suporte nesta rarefacção de apoio no que respeita ao desemprego, no que respeita às dificuldades das famílias sobre-endividadas e no que respeita à degradação económica dos mais velhos. E depois têm ainda toda a prestação de serviços passando pelos lares, centros de dia, apoio a crianças, entre outras. Temos, de facto, uma rede de apoio poderosíssima e fazemos todos os possíveis para colaborarmos.

Sente que há áreas que estão desprotegidas, ainda, ou a rede é suficiente?

A rede responde. Mas estamos a viver um tempo de grande imprevisibilidade. Se esta pergunta fosse há dois anos atrás eu poderia dizer tranquilamente que rede responde. Mas, cada dia há uma notícia nova e não somos capazes de prever nada. Tenho medo de estar a fazer uma afirmação que amanhã já não possa ser confirmada. Neste momento estamos a sentir o aumento de famílias carenciadas, que perderam o emprego, o que é uma situação muito complicada. Estamos a assistir a muitas famílias em desagregação, devido ao transtorno económico e financeiro. Sentimos que há alguma coisa que está a mudar no tecido social e que avança de forma galopante. Um dos meus indicadores é este: criamos aqui na Câmara uma instituição chamada a Casa Solidária. Tem como objectivo angariar bens e proceder à formação de pessoas que perderam o emprego em idade em que já não é possível voltar aos antigos empregos. Fazemos todos os anos uma festinha de Natal para essas famílias. Há dois anos estavam nessa festa cerca de 42 crianças. Este ano estavam perto de 200 crianças. Isto dá uma ideia do salto brusco que registamos nestes problemas sociais. E este ano está a ser mais grave.

De repente, a crise criou uma série de novos problemas para os quais a sociedade ainda não tem resposta no quadro das actuais instituições…

Temos tido aqui também um parceiro importante que é a Igreja. A Igreja tem um olhar muito atento a estes problemas e tem-nos ajudado a abrir novos caminhos, a decifrar os problemas que surgem nas comunidades. A realidade muda muito rapidamente. Não se sabe quantos são os desempregados agora e depois do FMI. Fala-se em muitos despedimentos. É um aperto de cinto que leva a que as IPSS, com toda a sua boa vontade e disponibilidade, também fiquem estranguladas na sua capacidade de resposta. E mesmo as instituições públicas, em geral, também. De facto, a crise alastrou já da economia para a área social e tornou-se um desafio para o qual ainda não vislumbramos solução. Talvez seja daqui a 6 ou 7 meses, aquando do pico das reformas que o FMI vai impor. E como é que estas reformas vão bater no tecido social, qual será o impacto e a ressonância que vão ter?

Santarém, tal como todo o país, tem o problema dos idosos. Essa é ainda a principal preocupação ou a pobreza começa a ultrapassar este problema?

Durante muito tempo o principal problema foram os idosos e falta de rejuvenescimento da população em algumas aldeias e vilas do concelho. Hoje o problema é claramente o emprego. Suplantou esta abordagem em relação aos idosos. Se é certo que as maiores empresas da zona têm mantido, e até têm feito crescer a sua massa de assalariados, o que é verdade é que Santarém está exilado do país e têm-se feito sentir os efeitos da crise de todo o vale do Tejo. Portanto, hoje poderia dizer que o problema que me preocupa, porque de facto é difícil resolver, é o desemprego de homens e mulheres dos 45 aos 60 anos. A capacidade de regenerarem e de se readaptarem a outro tipo de funções tem limites. Não os conseguimos absorver e são pessoas em idade produtiva, em idade de estabilização de famílias e de vidas. Que se vêm sem crédito junto dos bancos, com créditos malparados das casas que têm, com a escola dos filhos em dificuldade e com um conjunto de problemas que elas próprias não previram, mesmo quando esta crise arrancou. Assim, este desemprego crescente, esta pobreza envergonhada de gente que estava habituada a trabalhar e a ter o seu salário ao fim do mês e que, de repente se vê sem os seus bens de subsistência, este problema que se aflora só de vez em quando é, julgo, um dos caminhos mais perigosos e difíceis que temos para viver nos próximos tempos.

Sobretudo porque são pessoas invisíveis…

Exactamente. Porque é uma pobreza invisível, que não se manifesta, que não se exibe, que não se expõe. Só sabemos depois.

De que forma é que uma autarquia pode intervir?

Não é fácil, mas criamos um programa de alimentação de crianças. Fazemos uma análise, não diria diária mas semanal, para decifrar problemas em crianças, problemas de alimentação, sobretudo fome. A fome volta a assustar outra vez e não me espanta porque eu vivi a crise de 1981/1982 e o grande combate do Dr. Manuel Martins na luta contra a fome na península de Setúbal. A fome está a emergir. Em relação a outras faixas etárias ainda não temos um controlo tão próximo, não temos sensores para isso. Os nossos indicadores são as crianças e, através delas, também chegamos às famílias. Portanto, isso temos feito com muito cuidado. Posso dizer-lhe que do orçamento de 2011 da Câmara cortamos em tudo e a única coisa que aumentou foi o apoio social. Estávamos a prever que ia acontecer uma coisa destas.

Deixe-me agora falar um pouco de si. Foi professor, esteve na polícia judiciária em diversas funções, foi professor universitário, agora é autarca, escritor…

Acabei o meu último romance recentemente. Trata-se uma farsa política sobre o tempo de hoje. Encontrei seis amigos: um ex-CDS, um ex-PSD, um ex-PS, um ex-PC, um ex-trotskista e um anarquista. Eles reviveram a idade dos sonhos na década de 70 e agora, aos 50 e tal anos, encontram-se. Tipo “Amigos de Alex”. Olham o passado e pensam “o que é que nós fizemos?”. Só há uma maneira: é pôr a classe política a ridículo e pôr isto tudo a ridículo. Vamos construir um partido político novo.

Mas em que papel é que se sente mais completo?

Eu só aceitei ser Presidente da Câmara se pudesse continuar a escrever. Isto é a verdade absoluta. Aceitei por isso senão não aceitaria. A minha vida é escrever. Quando era puto queria ser escritor e detective. Acho que fui toda a vida detective e quando deixei de ser detective de pistola continuei a investigar cientificamente crimes e problemas de violência. Mas fui sempre escritor. Nunca deixei a escrita. A escrita é a minha almofada. Ser Presidente da Câmara foi um contributo…

Fala no passado, diz “foi”. Significa que é uma experiência que tem um fim à vista?

Tem um fim à vista, não me vou voltar a candidatar. Foi uma experiência importante, mas eu passei a minha vida sobretudo na polícia judiciária sem ter grande ligação a partidos ou à política. Enfim, foi essa experiência de sofrimento, de drama continuado na polícia que me levou a pensar que a única forma de fazer política é ser sensato. Nem é estar à esquerda ou à direita, mas ser sensato. E ser sensato é nós termos ouvido sempre quem está ao nosso lado. Quando cheguei aos 50 anos pensei que nunca tinha experimentado e então experimentei. Faltam dois anos para esta experiência acabar e sinto muito orgulho. Acho que fizemos um bom trabalho em Santarém, renovamos esta cidade por completo, devolvemos-lhe alegria e prestígio. Temos aqui um dos principais palcos no diz respeito à gastronomia, à atracção de investimento, transformamos isto numa cidade competitiva, sedutora.

Se algum dia tiver um quadro com a sua imagem aqui na Câmara poderia ser identificado como Presidente Moita Flores, o Escritor?

Nesse retratos consta apenas a data de nascimento. Como hei-de dizer isto… Apesar de ser um homem com alguma presença na opinião pública, eu sou de uma timidez tremenda e a coisa de que menos gosto é de homenagens. Incomoda-me muito essa liturgia da imortalidade enquanto estamos vivos. Eu só quero que fique aqui a ideia de que passou por cá um homem que é solidário, que é generoso, que gosta de ajudar os outros, como franciscano que sou, é a minha militância religiosa. Sou menos católico e mais místico. Todo o meu staff tem uma medalha de S. Francisco de Assis porque faz falta, tal como a própria oração de S. Francisco sobre o dar e o receber. Faço os possíveis por caminhar por aí como sempre caminhei, mesmo na educação dos meus filhos, na relação com os meus netos.

V.M. Pinto – Texto e fotos

 

Data de introdução: 2011-05-07



















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