“Sem uma que criou e outra que acarinhou e fez crescer não existiria Casa da Primeira Infância”. Esta singela mas sintomática frase reporta-se a duas grandes senhoras de Loulé, concretamente, Maria José Cabeçadas e Catarina Pinto Farrajota, mulheres que ergueram e fizeram crescer a Casa da Primeira Infância, instituição que há 66 anos, completados no passado dia 10 de Junho, acolhe, educa e, de certa forma, cria, as crianças do concelho louletano.
“Esta casa surgiu pela vontade da sociedade civil”, recorda o presidente da Direcção da IPSS, José Teiga, que conta ainda: “A Dra. Maria José Cabeçadas tinha uma farmácia onde iam as mães de Loulé e que lhe relatavam todos os problemas que tinham com as crianças, especialmente o facto de não terem onde deixar os filhos para ir trabalhar… Então, ela achou que tinha que se criar qualquer coisa para crianças, onde as mães mais pobres pudessem deixar os filhos para ir trabalhar”.
Atenta às carências sentidas na época do pós-Grande Guerra, Maria José Cabeçadas reuniu um grupo de pessoas de boa vontade e, em 1945, fundou a Casa da Primeira Infância.
O projecto, pelo menos para o então edil, estava condenado ao fracasso. “Dêem-lhe o subsídio de 300 escudos, que aquilo não dura seis meses”, terá dito o presidente da Câmara, que não sobreviveu para celebrar os 66 anos da instituição, por onde já passaram milhares de crianças louletanas.
“Por vezes os políticos têm estas visões curtas”, sublinha José Teiga, que com orgulho sustenta: “Esta foi a primeira creche em Portugal, na altura não havia referências de nada do género. A D. Catarina Pinto Farrajota, que ainda é membro da Direcção, que hoje está com 88 anos e serve aqui há 63 anos, disse que bateu a diversas portas, mas não havia organização social a este respeito. Então, juntaram-se umas camas e começaram-se a receber crianças. Elas tomavam banho, pequeno-almoço e só saiam da instituição depois de jantar”.
Foi um arranque difícil, até porque a inexperiência na área era muita. “Depois, já nos anos 1960, dá-se uma certa abertura, com a mulher a ir para o mundo de trabalho… Hoje os ricos e os pobres estão todos misturados, e ainda bem, mas esta Casa começou para os pobres”, assevera o actual presidente da instituição, que está na Casa há 29 anos.
SOB O SIGNO DA UTOPIA
José Teiga costuma dizer que “a Casa nasceu sob o signo da utopia”, pois eram poucos os que acreditavam que ela podia vingar.
Em 1955 foi inaugurado o edifício onde actualmente a instituição funciona, porque antes funcionara junto ao castelo de Loulé em casas alugadas.
“O ministro das Obras Públicas de então disse na altura que o edifício mais lhe parecia um parque de exposições, pois não concordava nada com a arquitectura, porque tinha muita luz e era muito aberta, para além de que estava longe de tudo”, conta José Teiga, referindo que nesse tempo “era ainda a vila dentro das hortas e as hortas a servirem de jardim à vila”.
Mas como era no Algarve, longe da chamada «capital do Império», o regime não se opusera à sua construção.
O edifício de traça que lembra as obras do arquitecto brasileiro Óscar Niemeyer, foi idealizado e construído sob a batuta do engenheiro Laginha Serafim, revelando-se uma aposta ganha e de futuro, como o comprovam as excelentes condições que o edifício ainda hoje apresenta para os fins para que foi criado.
Ao cabo de mais de seis décadas de existência, José Teiga faz um “balanço muito positivo”, recordando que “já passaram pela instituição milhares de crianças”.
“E o que dá gosto é que foi sempre evoluindo. Esta Casa é uma IPSS que nunca parou no tempo. Normalmente, porque as direcções são voluntárias, as coisas param, mas esta foi sempre inovadora, trazendo sempre gente nova e confrontando as novas ideias e as pedagogias mais avançadas”, refere, exemplificando: “Foi a primeira instituição a apostar nos técnicos, que custam dinheiro, mas que estudaram para alguma coisa. Então, esta instituição teve logo uma enfermeira e, assim que houve educadoras licenciadas, foi das primeiras a tê-las. Essa foi uma aposta na qualidade, porque os meninos pobres e os ricos merecem ter as mesmas condições”.
Na casa-mãe a instituição serve quase 300 crianças, nas valências de creche (70), pré-escolar (94) e ATL (80), apoiadas por meia centena de funcionários.
No ano lectivo que se aproxima esta última valência deverá finar-se, uma vez que vai surgir em Loulé o Centro Escolar, o que retira as crianças da instituição.
A este propósito o presidente da Casa refere: “Este ano é que vamos sentir o impacto da criação das respostas por parte do Estado, pois vai abrir o Centro Escolar. O Centro Regional da Segurança Social diz que só haverá Acordo para pontas e o mês de Agosto… Ora nesse mês fechamos, porque é preciso dar descanso ao pessoal e a instituição necessita de arejar. Tentamos explicar-lhes isto, mas não entendem…”.
Desta forma, a Casa da Primeira Infância de Loulé deixará de ter a valência de ATL, que só sobreviverá caso os pais estejam dispostos a pagar e será apenas uma única sala…
CENTRO DE ACOLHIMENTO Uma outra valência da Casa da Primeira Infância de Loulé é o Centro de Acolhimento Temporário «Os Miúdos», criado em 1999, que se caracteriza por ser uma residência mista e que visa garantir o acolhimento temporário e transitório de crianças em situação de perigo decorrente de abandono, maus-tratos, negligência e outros factores, assegurando desta forma a consagração dos seus direitos e garantias.
Actualmente, o Centro acolhe 12 crianças, entre os 0 e os 12 anos, e pretende ser um espaço de afecto, em que estas crianças desvalidas possam encontrar o amor e segurança que não tinham nos seus lares, na busca de um futuro risonho e promissor.
Mas, tal como outras instituições, também a Casa da Primeira Infância sente grandes dificuldades para manter esta valência.
“O Centro de Acolhimento está alugado à Misericórdia de Loulé, numa casa que recuperámos e pela qual pagamos 1500 euros por mês. Quando arrancámos com este Centro tínhamos um projecto de construção, para ser feito aqui junto ao edifício-sede. Foi lançada a obra, mas não foi iniciada porque os governos caíram sucessivamente e ficou-se pelo papel”, recorda José Teiga, acrescentando: “A obra custaria cerca de 600/700 mil euros e no Centro de Acolhimento temos um deficit de 613 mil euros. Esta casa-mãe tem dado muito àquela valência, porque o que a Segurança Social dá é da ordem dos 130 mil e só os gastos com pessoal e com as crianças são da ordem dos 150 mil. A Câmara comparticipa com 200 euros mês, algo muito honroso, mas cá vamos vivendo…”.
José Teiga lembra que nos dias que correm não é filosofia dos governantes criar centros de acolhimento, pelo que o projecto se mantém, para já, na gaveta. E caso fosse erguido alargaria a capacidade de resposta de 12 para 20 crianças.
“No Centro de Acolhimento temos voluntariado, mas é feito essencialmente por estrangeiros. O português diz que gosta muito de fazer voluntariado, que ama muito as pessoas, mas ama hoje e já não ama amanhã…”, critica o presidente da instituição, que sublinha ser a grande aposta e política de sempre da Casa “manter a qualidade do serviço e saber que está sempre na frente”.
DIFICULDADES CRESCENTES
“A nobreza das coisas é fazer crescer as instituições”, defende o líder da IPSS louletana, explicando: “As pessoas passam pelas instituições como um actor passa pelo teatro e se elas prevalecerem no tempo é porque a sociedade consegue manter determinados níveis de solidariedade”.
Amante de poesia, José Teiga cita o cauteleiro/poeta popular: “O Mundo só pode ser/Melhor do que até aqui/Quando consigas fazer/Mais pelos outros que por ti”. Este é o espírito que deve existir e florescer nas IPSS e que, segundo José Teiga, tem mantido viva a Casa da Primeira Infância ao longo de 66 anos. E o presidente da instituição recorda um episódio sintomático: “Há tempos veio aqui uma senhora do Ministério e dei por ela deslumbrada... Perguntei-lhe se achava bonita a instituição e ela respondeu-me que estava a recordar-se dos tempos em que tinha aqui andado. Esta ligação de afecto às coisas é muito importante, é a saudade e o amor que ficam e isso só fica quando esse amor foi potencializado”.
Com a crise instalada em Portugal, o desemprego a crescer e as dificuldades das famílias também, as instituições são das primeiras a sentir esse clima. Porém, José Teiga defende que a qualidade do serviço não deve ser posta em causa, o que exige dos responsáveis pelas instituições muita criatividade.
“Há muita falência por aí, mas muitas são usadas para as mais diversas lavagens de dinheiro. Esta instituição vive há 66 anos, não tem dívidas, os lucros também não existem, mas é possível gerir-se o social com honestidade e com qualidade. E esta instituição, tal como outras por esse País fora, é um caso de estudo de como se gere com poucos recursos e com qualidade”, sustenta, apesar de muitas famílias estarem com dificuldade em cumprir com os seus compromissos: “Temos várias situações em que os pais ficaram desempregados e vão pagando aos poucos, ou deixam mesmo de pagar, mas não temos o direito de colocar as crianças fora… Vamos aguentando como podemos, mas nunca saiu daqui ninguém por não poder pagar. A mensalidade máxima é de 240 euros e muitas crianças não pagam nada, mas quando há picos de desemprego esses números disparam”.
Por outro lado, as dificuldades surgem igualmente de quem devia ajudar. Citando António Aleixo, José Teiga afirma que “quem nos tutela não nos ama, prende-nos” e explica: “A tutela pode ser muitas coisas, pode ser a tutela que só nos leva os impostos e não no-los entrega, pode ser o tutor que é o curador, ou seja, aquele que nos cuida, ou pode ser aquele que só nos vigia, só nos prende… Quando estas instituições, que não têm lucros nenhuns, são obrigadas a fazer permanentemente trabalho de adaptação, por exemplo, a novos programas informáticos emanados da Segurança Social, e que mudam todos os anos, devia haver subsídios para ajudar as instituições a conseguir cumprir essas directivas. Hoje exigem mais e mais, ou seja, querem que façamos tudo aqui para receberem só o produto. Há muito trabalho que é feito nas instituições, em termos de dados estatísticos, que devia ser feito pela Segurança Social, mas eles querem é receber o produto já pronto…”.
Se não fosse a Casa da Primeira Infância como seria Loulé? A resposta de José Teiga sai de pronto: “Muito mais pobre, porque a instituição tem 66 anos, mas é aqui que os pais ainda tentam, em primeiro lugar, colocar as crianças, porque muitos já aqui andaram e gostam da instituição. Loulé seria muito mais pobre”.
No sentido de amenizar muitas situações familiares no concelho, a instituição lançou o Projecto ECOS, um programa social de apoio a crianças e famílias, que funciona num espaço exterior à instituição.
O Projecto ECOS destina-se a crianças, jovens e famílias mais problemáticas dos bairros sociais de Loulé e tem um enfoque nos problemas cada vez mais significativos no concelho, nomeadamente o abandono e absentismo escolar, insucesso escolar, desemprego e emprego precário, relações familiares e de vizinhança precárias, com uma intervenção intensificada ao nível da prevenção de situações de risco e vulnerabilidade.
Através deste projecto, promovido pela autarquia louletana e gerido pela Casa da Primeira Infância, presta-se apoio psicossocial, desenvolvem-se acções de sensibilização às famílias, desenvolvimento vocacional e orientação profissional, apoia-se a procura de emprego e a elaboração dos trabalhos escolares e fornece-se formação em determinadas áreas.
Como se pode ler no Hino da instituição: “O bem-estar da criança/Tem toda a importância/Na Casa/Da Primeira Infância”.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
Data de introdução: 2011-08-05