OPINIÃO

Idem, ibidem

1 - Como há 6 anos, com José Sócrates no início das suas funções de Primeiro-Ministro, também agora, com Pedro Passos Coelho a dar os primeiros passos ao leme do País, os juízes, que reuniram em Congresso nos Açores no passado último fim-de-semana de Outubro, se encontram no centro do debate social e político.
As pessoas hão-de estar ainda recordadas, não obstante ter passado uma eternidade: José Sócrates começou o seu Governo a zurzir nas corporações e a estigmatizar o que dizia serem os seus – delas, corporações – “privilégios injustificados”, a fim de criar o ambiente propício ao apoio popular às medidas que ameaçava tomar contra elas.

Houvesse ainda pelourinhos nas praças principais das nossas cidades – e seria lá que Sócrates mandaria amarrar juízes e professores, farmacêuticos e funcionários públicos; e, no geral, todos os que não se rendessem aos seus méritos, ao seu fascínio e ao seu poder.
Ainda hoje é recordado, pela combinação virtuosa da retórica com o pragmatismo, o seu discurso de Estado inaugural, integrando a nota expressiva sobre a profunda revolução que esperava, sob a sua mão sábia e justiceira, o regime de propriedade das farmácias.

(Ao fim de 6 anos, ficou tudo mais ou menos na mesma; mas esse tom de ameaça, que Sócrates então brandia, em nome da defesa dos consumidores e da liberdade de iniciativa e de empresa, ficou-lhe agarrado, como uma comenda enfunada num peito heróico, durante os primeiros anos do seu mandato.
“Habemus hominem” – era o tom geral da imprensa e dos comentadores, de que José Manuel Fernandes, então director do PÚBLICO, constituia o expoente laudatório máximo.
Durante os primeiros 4 anos de Sócrates, não faltaria povo à volta dos pelourinhos, ululante, a corresponder ao apelo do chefe, a pedir sangue e a empunhar o chicote.)

2 - Aos juízes, o pretexto foram, há 6 anos, as férias judiciais – uma desfaçatez de dois meses, um privilégio sem qualquer justificação, como dizia a propaganda do Governo, para atiçar a plebe.
Agora, com Passos Coelho, o pretexto são os cortes do subsídio de férias e do 13º mês aos funcionários públicos – incluindo os mesmos juízes.
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses já veio dizer que a medida é ilegal e viola a Constituição, sugerindo aos funcionários públicos que impugnem, junto dos Tribunais, esses cortes, quando ocorrerem.
Como os juízes vão fazer no Tribunal Constitucional, eles que são também, para este efeito, funcionários públicos e que também vão sofrer os cortes anunciados.
Não concordo com a existência de uma associação sindical dos juízes, já que estes integram um órgão do Estado, com poderes soberanos, os tribunais – e vai mal com o necessário prestígio e gravidade da função a reivindicação laboral.

Mas, no que aos cortes dos subsídios diz respeito, estão todavia os senhores juízes carregados de razão.
E bem acompanhados nela: o Presidente de República, que não é suspeito de socialista e a quem o Governo deve o andor em que foi posto – e que também defende a consolidação orçamental, como o Governo, o PS e a troika – veio dar uma mão à oposição, dizendo, em público, que o corte decidido pelo Governo, visando apenas os funcionários públicos, é injusto e viola a equidade.
Que se trata de uma iniquidade, portanto.
E trata!
O Primeiro-Ministro veio justificar que a sua opção por tributar apenas os funcionários públicos se devia ao facto de estes terem remunerações mais elevadas do que os trabalhadores do sector privado – ficando implícito que seria assim uma razão de justiça relativa a fundamentar a opção pela tributação de uns e pela dispensa dela pelos outros.
Pagariam os mais ricos, ficando de fora os mais pobres.
Sócrates não diria melhor!

É certo que Pedro Passos Coelho tem um registo retórico mais manso do que o de José Sócrates: mas este argumento implícito invocado - apenas sugerido, dizendo sem dizer, fazendo de conta que não é dito, deixando o recado por baixo das palavras ditas – não é materialmente distinto da conversa dos pretensos “privilégios” que marcou as investidas de José Sócrates contra os seus sucessivos alvos.
E tão falso como essa conversa do passado.
Por mim, até preferia a franqueza, mesmo sem substância, de José Sócates – que, ao menos, dizia ao que ia – do que esta conversa que fica a meio, sem nitidez e sem nervo.
Mas que ataca da mesma forma: até ao osso!

Passos Coelho ganhou as eleições por parecer diferente – por parecer o oposto - de José Sócrates.
Esperemos que não comece a repetir-lhe os modos e o estilo.
Uma outra razão invocada pelo Governo e pelo seu Chefe para ter escolhido os funcionários públicos para o altar do sacrifício, diferentemente dos trabalhadores do sector privado, foi o facto de os cortes das remunerações daqueles constituirem diminuição da despesa, ao passo que a tributação dos segundos configuraria um aumento de receita fiscal.
Para as pessoas, para as vítimas, é indiferente e é afrontosa a classificação contabilística dos cortes.
Quem vai deixar de receber o subsídio de férias ou o de Natal sabe apenas que lhe vão tirar o que é seu – pouco lhe importando se foi a despesa do Estado que diminuiu ou se foi a receita que aumentou.
Invocar argumentos de contabilista para legitimar um ataque político e ideológico de uma dimensão nunca antes vista representa um desdém pelas pessoas e pelos seus direitos e expectativas que – sou franco, apesar de não ter ilusões – não pensava possível num momento tão precoce do mandato do Governo que nos rege.

3 - Também o confisco dos subsídios de Natal e de férias aos aposentados, aos reformados e aos pensionistas, que constitui uma outra frente de ataque, não constitui ornamento de que o Governo se possa orgulhar.
António Bagão Félix, conselheiro de Cavaco Silva e de Paulo Portas, homem experiente e sensato, um verdadeiro senador da República, que foi Secretário de Estado e Ministro da Segurança Social e das Finanças, disse sobre esse confisco as palavras certas: trata-se de uma violação, pelo Estado, do contrato ético que se constituiu entre o mesmo Estado e os pensionistas, formado ao longo de toda a carreira contributiva destes.

Na verdade, mesmo se iníquo, o corte dos subsídios aos funcionários do activo sempre pode querer significar, como já há quem diga, que se trata de um mecanismo para desencorajar as pessoas que trabalham ao serviço do Estado, fazendo-as mudar de emprego e de patrão.
Mas aqueles que se reformaram, após 40 anos de trabalho e de contribuições para a Segurança Social ou para a Caixa Geral de Aposentações, que têm hoje 60 ou mais anos, não podem agora começar de novo a trabalhar, como se tivessem 20 anos, iniciando o pagamento dos seus descontar, mas agora para um sistema mais sério, mais cumpridor e honrado.
A situação dos direitos nascidos dessa relação duradoura e pontualmente cumprida ficou consolidada no momento da reforma – constituindo um verdadeiro confisco uma das partes, a que arrecadou, durante 40 anos, as contribuições, e porque administrou mal o dinheiro que lhe foi confiado, vir agora dizer à outra que não lhe paga o que lhe deve.

4 – Um dia é Passos Coelho, outro dia é Miguel Relvas, no dia seguinte é Vítor Gaspar, depois é a vez de Álvaro Santos Pereira: à vez, a conta gotas, uma palavra aqui, uma confidência acolá, lá vai desfilando o que nos espera de sacrifícios e de cortes nos próximos anos.
Em 2011 é o corte no subsídio de Natal; em 2012 é a ablação total do mesmo subsídio de Natal e do de férias - por enquanto no que respeita aos funcionários públicos, em breve suspeita-se que afectando todos os trabalhadores, esquecendo-se então o Governo do que disse agora sobre aumento da receita; nos próximos anos, é agora voz corrente, será a vez da extinção definitiva dos ditos subsídios, passando os trabalhadores a receber apenas 12 meses de salários baixos; em 2012, será também mais meia hora de trabalho diário e chegará a diminuição dos valores de indemnização por despedimento ou caducidade do contrato; diminuirão também os dias de férias e os feriados.

Em compensação, do empréstimo da troika, que vamos pagar com os nossos impostos e com o confisco dos nossos salários e dos subsídios de Natal e de férias, cerca de 7.000 milhões de euros vão para os bancos – que foram uma das causas das desgraças que agora nos fazem pagar com sangue, mas que não deixaram por isso de enriquecer de forma obscena os seus administradores.
Mas sobre a contribuição do grande capital e das empresas para o esforço colectivo, ainda ninguém ouviu uma confidência ou um propósito
Como se sabe, é apenas o trabalho que produz riqueza.
Não há nada de novo debaixo do céu!

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2011-11-04



















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