GRANDE REPORTAGEM: LARES RESIDENCIAIS

No lar ganhei uma nova família

“um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas, quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distracção cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós.
foi ao fim de seis dias que disse a primeira palavra no lar, quando o senhor pereira estava ao pé do varandim inclinado para o salão e espreitava à procura do américo. o senhor pereira inclinou-se absurdamente, galgando com o corpo a barreira e observando o extenso compartimento, preocupado apenas com aquele objectivo tão definido, ao sair do meu quarto percebi-o avançado em perigo pelo espaço vazio, quase tombando por ali abaixo, um andar inteiro. apressei os passos até assomar ao seu pé e gritei, cuidado. com o susto da minha voz ele endireitou-se para saber quem chamava assim a atenção de quem. Olhou-me e sorriu. Achou que seis dias eram mais do que suficientes para que eu acabasse com o meu amuo. chegou perto e voltou a cumprimentar-me, como se novamente nos apresentássemos, e congratulou-se com o fim da minha birra. foi pouco tempo, senhor silva, disse-me ele, eu estive quase três meses de bico calado, mas foi porque os meus filhos se portaram mal como uns estupores e só quiseram pôr a mão no meu dinheiro, que ainda por cima não abundava. Pensei que estaria aqui a infernizar toda a gente até que me expulsassem, mas, quer ouvir, são profissionais e sabem que chegamos quase todos assim. eu não sorriria ainda. Estava demasiado zangado para fazê-lo, e só abriria a boca porque me parecera que ele se matava por distracção. não lho disse, e ele não se sentiu assustado. desceu comigo as escadas e encontrámos o américo no pátio das traseiras, a contar a alguns velhos histórias engraçadas sobre gente que ele inventava. sentámo-nos também. o senhor pereira disse, o nosso amigo já fala, é mais inteligente do que eu. o américo interrompeu por segundos o seu discurso e sorriu muito cândido. podia ter-me pedido para dizer algo como se faz a um papagaio que subitamente sabemos ter artes. mas não o fez. acreditou que, por vontade própria, a minha voz se faria escutar num momento mais pertinente. admirei a sua atitude, o controlo que impôs sobre a sua e a curiosidade dos outros. depois, assim que pareceu acabar as histórias, apreciámos todos o sol ameno da manhã e eu disse, obrigado pela ajuda com os sapatos, não entendi como foram parar àquele lugar debaixo da cama, a dona marta deu um salto na sua cadeira e soltou um risinho divertido sem dizer mais nada. os outros trocaram olhares e sorriram também. o américo respondeu, de nada, senhor silva, estamos aqui para isso. Suportei os seus olhares complacentes. odiei-me. era diferente de os odiar a todos. odiei-me e não estava preparado para ser tão fraco, anuindo como uma pessoa de confiança, como alguém sem um plano de ataque, como quem desistira. e não era isso. não podia ser isso. estava só confuso, pensei então. era uma confusão. um impasse. como um caminho bifurcando-se antes do objectivo e eu na contingência de reiterar os meus intentos. ser implacável. continuar.
ao sétimo dia, o doutor bernardo pediu-me que passasse pelo seu consultório e perguntou-me como me sentia. disse-lhe que estava bem, que o lar correspondia a um grau de qualidade admirável e que eu estava bem”.

Este é um excerto da obra ficcional «A máquina de fazer espanhóis», do português valter hugo mãe, cuja acção se desenrola num lar residencial e que espelha de uma forma admirável o turbilhão de sentimentos que assola um idoso recém-entrado no mesmo e a evolução do relacionamento entre pessoas que até ali não se conheciam, mas que acabarão amigas.

VELHO MUDADO, VELHO ACABADO, OU TALVEZ NÃO!...

«Velho mudado, velho acabado», diz o povo, mas a verdade é que não é só aos mais velhos que a mudança causa problemas e ansiedade. Porém, nos dias que correm as coisas não têm que ser assim tão fatalistas, nem difíceis.
Todo o estigma e o preconceito associados aos lares residenciais tende a desaparecer, porque a realidade demonstra que esta resposta social abraçada por inúmeras IPSS por este País fora tem sido uma enorme mais-valia para a qualidade de vida de muitos idosos, que de outra forma estariam votados à solidão, à má nutrição, à falta de higiene e a toda uma série de outras situações nada agradáveis, nem condignas. E estas, quando acontecem, não é porque os próprios o queiram, nem tão pouco o desejem, na maioria dos casos tal como os seus familiares, mas a vida moderna não se compadece com as dificuldades que o avançar da idade acarreta, impedindo mesmo que muitos filhos, netos ou outros familiares, quando existem, possam prestar o apoio que as pessoas nessa fase da vida necessitam e… merecem!
“É bem melhor estar aqui no lar do que sozinha em casa”, afirma a antiga trabalhadora agrícola Catarina Escarameia, que aos 92 anos de idade leva já 12 no lar da Associação dos Amigos da Terceira Idade de Fortios, concelho de Portalegre.
Um ano após enviuvar, esta mãe de um filho à beira de fazer 70 anos, passou a residir no lar e avança logo com uma razão de peso para a se sentir satisfeita com a sua nova casa: “Quando estamos doentes acodem-nos logo”.
A doença é, de facto, um dos mais fortes argumentos para que familiares ou os próprios idosos optem pelos lares residenciais.
“Isto aqui é como que uma família”, sustenta Maria Fernanda Almeida, uma ilhavense, de 79 anos, a residir há três anos no lar do CASCI – Centro de Apoio Social do Concelho de Ílhavo. Esta antiga empregada de pastelaria é solteira e tem como única família directa um irmão, que vive em Castelo de Paiva, e duas sobrinhas, em Penafiel. Após a morte da mãe, com quem sempre viveu, Maria Fernanda ainda experimentou a vida a solo, mas a doença fê-la mudar de ideias: “Estive um ano internada no Hospital de S. João, no Porto, e não pude trabalhar mais. Tinha muitas crises de arritmia que me faziam desmaiar antes que pudesse chamar ajuda. Após algumas crises, decidi então vir fazer a inscrição e aqui estou, faz em Janeiro três anos. E estou muito satisfeita”.

Este sentimento é igualmente expresso por Maria de Lurdes Labrincha, também ela residente no CASCI e também ela «empurrada» para o lar pela doença.
“Aqui tenho o pão nosso de cada dia, cama e roupa lavada e sou muito bem tratada por todos”, justifica esta costureira, de 76 anos, casada e mãe de um filho emigrado nos Estados Unidos. O marido, de 81 anos, ainda habita a casa onde o casal sempre viveu, mas a doença que manteve a esposa em coma durante meses e a atirou para uma cadeira de rodas, não lhes permite fazerem uma vida de casal.
“Aqui no lar são todos uns amores e tratam de nós muito bem e com muito carinho”, sustenta Manuel dos Santos, de 87 anos, residente no lar da Associação dos Amigos da Terceira Idade de Fortios, da qual foi, não só o primeiro presidente da Mesa da Assembleia, mas também o doador do terreno onde, há 18 anos, foi erguida a infra-estrutura.
Viúvo e pai de um filho, este antigo taxista com praça em Portalegre é de lágrima fácil e foi a verter algumas que recordou a conversa com a, entretanto, falecida esposa e com o filho sobre a intenção de doar o terreno à instituição, rematando: “Uma família maravilhosa”.


UM NATAL DIFERENTE

Estas afirmações ganham ainda mais brilho quando o Natal está à porta, festa por excelência da família e que para alguns dos utentes destas instituições será, mais uma vez, passado com estas novas famílias.
“Já fui passar o Natal a casa das minhas sobrinhas a Penafiel, mas aquilo é muito frio e, por isso, prefiro passar aqui”, afirma a ilhavense Maria Fernanda, que recorda “o bacalhau, os bilharacos e os sonhos” que comia com a mãe, na casa de ambas.
António Frazão, de 58 anos, foi um dos estreantes do novíssimo lar do Centro Social da Serra do Alecrim, concelho de Santarém, inaugurado no início de Novembro. Para este antigo trabalhador agrícola a vida não tem sido fácil, pois ainda antes dos 25 anos uma úlcera varicosa levou à amputação da perna direita pelo joelho, o que o limitou sempre em termos laborais, até porque rejeitou diversas próteses. Sem família directa, António Frazão não recorda o Natal com grande alegria. “São muito tristes desde que os meus pais faleceram, mas este ano aqui, como foi no lar de Amiais de Baixo onde estive no ano passado, vai ser um bom Natal”, diz convicto, deixando apenas um lamento: “Isto está a correr bem, mas, tirando os funcionários, tenho poucos com quem conversar. Nestas casas as pessoas entram sempre muito em baixo”.
Para Lurdes Labrincha, o Natal “é um dia diferente, um dia alegre, mas triste ao mesmo tempo”, porque o filho e o neto, que tem quatro anos e apenas conhece de fotografias, não estão presentes. Mesmo assim, a costureira formula dois desejos: “Gostava que deixassem o meu marido vir cear aqui connosco, mas a melhor prenda era uma visita do meu netinho. Era a vinda do menino Jesus”.
Maria Fernanda já se contenta com a visita das sobrinhas, que até costumam trazer uma lembrança, mas importante mesmo é que no lar do CASCI o Natal passa-se “como se fosse em família”.
A alentejana Catarina Escarameia recorda o quanto gostava de passar o Natal em casa com o marido ou na capital com o filho.
“Por vezes íamos a Lisboa a casa do meu filho e ficávamos lá até ao Ano Novo”, conta de olhos brilhantes, não esquecendo que no lar de Fortios ganhou “uma outra família, unida e amiga”.
O conterrâneo Manuel dos Santos, que é também poeta e presenteou o SOLIDARIEDADE com a sua arte, vai para o quarto Natal no lar e elogia “a comida da noite de Natal e o convívio entre todos”.
Cinco pessoas, três regiões, um sentimento: nos lares residenciais onde agora vivem encontraram uma família, que não é de sangue, mas está ligada por fortes laços de solidariedade e amor ao próximo.
“depois confessei-lhe, precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia. este resto de vida, américo, que julguei já ser um excesso, uma aberração, deu-me estes amigos. e eu que nunca percebi a amizade, nunca esperei nada da solidariedade, apenas da contingência da coabitação, um certo ir obedecendo, ser carneiro. eu precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de amizade. Hoje percebo que tenho pena da minha Laura por não ter sido ela a sobreviver-me e a encontrar nas suas dores caminhos insondáveis para novas realidades, para os outros. os outros, américo, justificam suficientemente a vida, e eu nunca o diria”. (in «A máquina de fazer espanhóis», de valter hugo mãe)

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2011-12-09



















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