OPINIÃO

O IV Reich

1 - Diz a tradição que o Imperador Carlos Magno terá nascido em Aix-la-Chapelle, que é hoje a cidade alemã de Aachen e que então estava integrada no Reino Franco, de que o Imperador era herdeiro.
A partir do Reino Franco, que expandiu para oeste, para norte e para leste, Carlos Magno fundou um império, o Sacro Império Romano do Ocidente, nos séculos VIII e IX da era cristã, Império esse que sucedeu ao Império Romano do Ocidente, desmantelado pelos Bárbaros.

A Sul, correspondendo, grosso modo, à Península Ibérica, ficava a fronteira com o reino mouro que, exactamente a partir do século VIII, ocupou a Península em cujo extremo ocidental hoje vivemos.
Pouco depois da morte de Carlos Magno, a cabeça do Império passou para a Germânia, com Otão I, no século X – com a designação de Sacro Império Romano-Germânico, que durou até ao início do século XIX, quando sucumbiu, na sequência das Guerras Napoleónicas.

O Sacro Império Romano-Germânico correspondia a quase toda a Europa Central e do Leste, abrangia os Balcãs e parte significativa do território italiano – era o 1º Reich e durou mil anos.
Foi a pretensa legitimidade histórica para a restauração desse Reich que deu a Hitler o pretexto para a ocupação da Áustria, da Polónia, da Checoslováquia – proclamando um novo Reich, o Terceiro, que haveria de durar tanto quanto o primeiro: outros mil anos.

O século XIX foi fértil em conflitos entre a Prússia – a origem da moderna Alemanha – e a França.
Como já vimos, no início do século Napoleão Bonaparte derrotou o Império, levando-o à extinção.
Alguns anos depois, no fim do 3º quartel do século, nova guerra, justamente chamada Guerra Franco-Prussiana, esta ganha pela Prússia de Bismark: cerca de 200.000 mortos e ainda maior número de feridos.

Em 1914/1918, de novo a França e a Alemanha de lados opostos e em guerra: a 1ª Guerra Mundial, que acabou com o breve 2º Império Alemão – o 2º Reich – e com o Império Austro-Húngaro, seu aliado.
A Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, constituiu a maior carnificina da História e teve novamente de lados opostos das barricadas a França e a Alemanha.
Não foi só isso: a França foi ocupada pela Alemanha, tendo-se o exército alemão instalado em Paris como conquistador; centenas de milhares de judeus franceses foram enviados pelos alemães para os campos da morte, muitos milhares de franceses foram presos e executados sem qualquer culpa.
O Centro da Europa tem sido marcado, ao longo dos séculos, por uma hostilidade franco-alemã de que as lembranças históricas que deixo em breves pinceladas são bem a marca.
Mas a História também nos faz não esquecer que se trata de dois países desde sempre marcados por uma tentação de hegemonia para além das suas próprias fronteiras.

Portugal, por exemplo, nunca invadiu a França.
Mas os franceses cá vieram, por três vezes, a ver se tomavam conta disto – e ainda há bem pouco tempo, há apenas 200 anos.
E os Filipes, que nos governaram – e arruinaram – durante 60 anos eram Habsburgos, da Casa Imperial Germânica.

2 - Como se viu pelos exemplos bélicos acima alinhados, franceses e alemães andaram ao longo dos séculos a matar-se com persistência e zelo – aos milhões.
A França e a Alemanha não esgotam o potencial de conflito que caldeou a Europa, ao longo da História.
São de sempre as tensões franco-britânicas, sendo a um francês, Guilherme da Normandia, ou o Conquistador, que se deve a formação da Inglaterra.
A Inglaterra, aliás, sempre andou em conflito, seja com os franceses, seja com os alemães, seja com os espanhóis.
Com os espanhóis andamos nós próprios aos baldões durante vários séculos, tendo sido contra Leão e Castela que o nosso Conquistador, Afonso Henriques, fundou o reino, e sendo recente – do século XIX – o confisco que nos fizeram de Olivença e seu termo.

Sendo embora, como aprendíamos na escola salazarista, a aliança de Portugal com a Inglaterra a mais antiga aliança do mundo, o certo é que essa aliança não impediu os ingleses de tomarem conta do poder em Portugal, durante a estadia do Rei D. João VI no Brasil, levando a burguesia do Porto à revolta de 24 de Agosto e à imposição de um novo regime, a monarquia constitucional.
Foi a paga, por termos estado do lado da Inglaterra no conflito desta com Napoleão, que nos valeu as Invasões Francesas e transportou para o nosso Pais e para os portugueses, que os ingleses mandaram morrer em sua vez, o saque e a morte – de que a tragédia da Ponte das Barcas, no Porto, é o mais conhecido símbolo –, às mãos dos franceses.
A aliança luso-britânica também não impediu o Ultimatum e o Mapa Côr-de-Rosa, com Inglaterra a exigir-nos os territórios entre Angola e Moçambique, em 1890 - Ultimatum que levou à Revolta do 31 de Janeiro, também no Porto, em 1891.

3 - Há 65 anos, porém, que a França e a Alemanha estão em paz entre si.
Deve-se certamente à União Europeia esse resultado, de que o beijo entre Sarkosy e Ângela Merkl, nos anúncios da Benetton, constituem o melhor símbolo.
Mas os países são como as pessoas.
É da experiência comum que as pessoas raramente corrigem as suas características, ou os seus defeitos.
Ninguém muda.

Mesmo na educação dos filhos, bem sabemos que, por mais que nos esforcemos, quando a canalha vira a cabeça para um lado, ninguém consegue virá-la para o outro.
Os defeitos,as características, as idiossincrasias, lá ficam adormecidas – mas lá ficam, de verdade.
Durante estes 65 anos, a Alemanha lambeu as feridas que lhe ficaram da 2ª Guerra Mundial, desenvolveu-se, graças ao apoio dos Estados Unidos e da Europa, reintegrou a Alemanha de Leste, após a queda do Muro, voltou a frequentar as instâncias internacionais e a ser tratada como um País decente.
Mas a tentação imperial lá está dissimulada – e vai emergindo, como se vê na forma como dá as ordens na União Europeia.
E como os outros obedecem.

O limite constitucional do défice orçamental, que a Alemanha quer impor aos outros países, ainda há dois meses levantava clamores de indignação em muito boa alma.
Hoje, Merkl e Sarkozy dizem que querem alterar os tratados em 15 dias, sem referendos nem parlamentos – e ninguém pia.
Nem o Governo, feliz no seu papel menor de bom aluno.
A retórica da solidariedade e da igualdade, que constitui o discurso fundador da União Europeia, já não esconde que o que a comanda são os interesses privativos de cada País, em que os mais fortes comem os mais fracos.

A União Europeia, que tinha na igualdade entre os Estados a sua marca vital, parece hoje mais um regimento, em que a França e a Alemanha fazem o papel de sargento e os pequenos países o de moços de recados.
Portugal é um país pequeno e frágil, é certo, pelo que deve ter sempre presente o Sermão de Santo António aos Peixes, do Pe. António Vieira, para não ser engolido na vertigem que nos impõem : “A primeira coisa que desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros … Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande… E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós vos comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: … A maldade é comerem-se os homens uns aos outros e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos. … Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe …; porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos…. Porque os grandes que tem o mando das cidades e das províncias , não se contenta a sua fome em comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros.”
Portugal é pequeno e frágil, é certo, mas já cá anda há muito.

“Que nunca os admirados/Alemães, Gallos, Ítalos e Ingleses/possam dizer que são pera mandados/mais que pera mandar, os Portugueses”, como dizia Camões a D. Sebastião, no Paço de Sintra, lendo-lhe “Os Lusíadas”.
Que vão mandar para casa deles.

Henrique Rodrigues –Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2011-12-11



















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