Dezembro é mês de Natal, uma época de paz e amor, em que os cristãos exponenciam o sentimento de amor ao próximo e o seu espírito invade tudo e todos, sendo a altura do ano em que a solidariedade ganha uma expressão e visibilidade maiores. Os gestos solidários para com aqueles que mais precisam e que menos têm sucedem-se, estando os sem-abrigo em lugar de destaque. Para além da pobreza, da exclusão, da doença, dos vícios, esta gente que algures no passado tropeçou na vida, caiu na rua e ainda não conseguiu (ou não quer!) sair dela ainda vive em solidão. Na quadra em que se celebra, por excelência, a família, muitas pessoas de boa vontade proporcionam um pouco do calor do Natal a semelhantes que estão sós, não têm família, ou não têm contactos com familiares.
Vem isto a propósito da Ceia de Natal para os sem-abrigo realizada, pelo segundo ano, pelo Centro de Formação do Sector Terciário do Porto do IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional), em que se sentaram à mesa cerca de 280 pessoas, algumas ainda de famílias necessitadas da zona de Paranhos, onde decorreu a acção.
A ceia servida na cantina da FEUP (Faculdade de Engenharia Universidade do Porto) foi o culminar de um dia em que os formandos do IEFP se dedicaram a pôr em prática os conhecimentos que vêm adquirindo na formação profissional. Uma centena de formandos das áreas de cabeleireiro e estética, organização de eventos, animação sócio-cultural, logística, cozinha e serviço de mesa prepararam e proporcionaram um dia bastante diferente na vida de quem pouco ou nada tem.
Novos penteados e cortes de cabelo, maquilhagem no caso das mulheres, alguma roupa e alimentos e ainda um rastreio médico foi o que receberam durante a tarde em Paranhos muitos sem-abrigo e elementos de famílias carenciadas e desestruturadas que passaram pelo espaço HUB, da Junta de Freguesia local.
Vítor Santos, director do Centro de Formação do Sector Terciário do Porto, o maior do País, é o homem por detrás da máquina. Criou as sinergias necessárias para a realização da iniciativa que, como faz questão de frisar, tem “custo zero”, angariando parceiros que doaram todos os materiais necessários para que, nas diversas vertentes da iniciativa, os objectivos, da formação e da solidariedade, fossem alcançados.
“Esta iniciativa insere-se numa filosofia de formação na realidade, promovendo a formação na cidadania”, explica Vítor Santos, que sustenta: “A vida tem que ser mais do que um número”.
Propiciando aos jovens e adultos desempregados ou à procura do primeiro emprego uma acção formativa em ambiente real que os ajude na conquista de novas competências e habilitações (9.º ou 12.º anos), ajuda-se e leva-se um pouco de conforto a pessoas que não o têm.
E a mensagem parece estar a passar… A formanda Marta Ribeiro, 18 anos, de Gondomar, aplaude a iniciativa, explicando que “os sem-abrigo são iguais às outras pessoas”, pelo que “não devia haver discriminação”. Também Fernando Sousa, 18 anos, de São Pedro da Cova, que com Marta e outros serviu o repasto, a iniciativa “é muito boa para quem necessita, porque hoje temos mas amanhã não sabemos”.
Durante a tarde do dia 19 de Dezembro houve muita agitação no Espaço HUB, da Junta de Freguesia de Paranhos, com muitos sem-abrigo a recolherem roupa nova e, em especial, quente para os dias de frio e ainda alguns alimentos, e a terem a possibilidade de cortar o cabelo. As mulheres tiveram ainda a possibilidade de realizarem um pequeno tratamento estético.
Alunos da Escola Superior de Enfermagem garantiram o rastreio médico aos sem-abrigo, numa acção de saúde preventiva, enquanto a Cruz Vermelha Portuguesa assegurou a presença em permanência de uma ambulância durante a iniciativa.
Antes de rumarem à cantina da FEUP, houve ainda tempo para uma breve aula de matemática, leccionada por Carlos Marinho, da Sociedade Portuguesa de Matemática.
Ao jantar, por onde passou o antigo guarda-redes Vítor Baía, os formandos de animação cultural mantiveram os comensais entretidos, enquanto os da cozinha andavam numa azáfama, tal como os que serviam à mesa. A ceia foi animada, houve palavras de circunstância, pequenas apresentações artísticas e distribuição de cabazes com alimentos.
“Bom era que ninguém precisasse… Isto é de louvar, haver quem se lembra, mas é pena ser só no Natal”, afirma Paulo Oliveira, 45 anos, natural de Aldoar e há cerca de um ano a viver na rua.
Caído nas malhas da droga, Paulo foi mais de duas décadas toxicodependente, tendo estado 10 anos livre do vício. Porém, uma recaída fê-lo perder o emprego numa mercearia há cerca de um ano. Desempregado, ainda recebeu RSI durante seis meses, mas as dívidas às Finanças e à Segurança Social – “Meti-me na treta dos recibos verdes” – cancelaram-lhe esse direito.
“Já estou há tempo de mais na rua”, lamenta, revelando alguma revolta com a situação: “Fartei-me de trabalhar e agora tenho direito a estar na rua e a estar calado!”.
Sem relações com o irmão, único familiar que conhece, Paulo Oliveira vive hoje da caridade alheia, mora numas “casitas semi-abandonadas em Aldoar” e diz viver numa prisão: “Livrei-me da droga mas meti-me na metadona. Ter que tomar a metadona todos os dias é uma prisão”.
Como a esmagadora maioria dos presentes na Ceia de Natal, Paulo Oliveira sonha com o dia em que deixará de viver na rua, onde, apesar de estar “apenas” há um ano, “já é há tempo de mais”.
Apesar das contrariedades e de revoltado com a vida, atira: “Vamos ver se a coisa melhora!...”.
P.V.O.
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