É verdade que pode parecer estranho falar-se de Festa da Solidariedade num país mergulhado na depressão da crise, num tempo de futuro incerto, num povo sem motivos para distracções e festejos, preocupado com o presente instável e traiçoeiro. Como é possível a solidariedade estar em festa se há tantas IPSS com dificuldades, se há tanta gente desesperada, se há tanta falta de esperança?
Pode parecer esquisito que haja uma chama, também designada de solidária, que nunca se apaga e andou, quase uma semana, de terra em terra a anunciar essa festa que foi feita em Faro na tarde do passado dia 6 de Outubro, no Jardim Manuel Bivar.
Para os desatentos pode parecer anormal. Mas convém ter em conta que esta Chama da Solidariedade que saiu de Lisboa em 2007, anunciou a festa de Barcelos, Viseu, Castelo Branco e Santarém, antes de chegar à capital do Algarve.
Foi talvez esse questionamento que levou o Presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade a fazer um discurso de justificação. Perante alguns milhares de pessoas, rodeado de dirigentes da CNIS e tendo como convidados principais o presidente da Câmara de Faro, o Bispo do Algarve e o comandante da GNR, o padre Lino Maia lembrou que é importante, apesar de tudo, fazer festa. “Ouvimos falar de luz ao fundo do túnel, mas o túnel parece cada vez maior e a luz cada vez mais fugidia. Fazer festa pode ser contraproducente, mas há razões para fazer festa: As IPSS, - e estou a falar também de Misericórdias e Mutualidades, do conjunto das instituições que se ligam à infância à juventude, aos idosos, à pessoa com deficiência, das áreas da saúde, acção social, da educação, do desenvolvimento local, da formação... - as IPSS são quem, neste momento e neste país, faz mais e melhor para que as dificuldades sejam menores e não se perca a noção de futuro. Este país e esta região do Algarve devem muito às IPSS.”
O presidente da CNIS falava de improviso porque são coisas que conhece como as palmas das suas mãos. Sabe que o Algarve é uma região onde as IPSS têm uma enorme actividade e, por isso, faz sentido que a festa tenha assentado arraiais em Faro. Sabe o di-lo que “se não fossem as IPSS aqui no Algarve as pessoas com deficiência, particularmente mental, não tinham qualquer apoio. São as IPSS que mais fazem pelas crianças adolescentes e jovens sem uma rectaguarda familiar. As IPSS acolhem essas crianças e lhes dão estrutura e lhes dão futuro. E que seria desta região do Algarve sem as instituições com centro de convívio, apoio domiciliário, centros de dia e lares, que seria dos nossos idosos aqui do Algarve, sem as IPSS? Não tenho a menor dúvida de que daqui a alguns anos se vai dizer deste país que, nas IPSS, se encontrou a tal luz no fundo do túnel.”
A ausência de qualquer representante do governo, facto inédito nestes eventos, que se deve, por certo, ao temor crescente dos governantes do descontentamento popular, podia dar alento à contundência das críticas nos discursos. Mas não. O líder da CNIS fez uma intervenção tranquila e positiva. Como um pequeno oásis no deserto da desesperança que cresce à medida que se anunciam medidas de austeridade. Como um porto de abrigo para todos aqueles, cada vez mais, que se sentem enterrados vivos pelas areias movediças desse deserto que nasce da política, da economia, do destino... “Esta crise que estamos a passar é muito consequência de, noutros países e em Portugal, por razões várias, se ter criado a ideia de que o fundamental é ganhar dinheiro. E para isso se produz e se criam necessidades para vender. Alguns lucram e outros, muitos, empobrecem. O importante, e o que tudo regulava era o mercado e o mercado levou à situação em que estamos. Estas IPSS dizem que o importante não é o mercado. O mercado é, nalgumas circunstâncias, um instrumento. O importante são as pessoas e cada uma das pessoas. E nós temos que dizer com muita força que as IPSS é que verdadeiramente não querem que ninguém fique para trás. As IPSS não olham para aquilo que as pessoas têm mas olham aos direitos de cada pessoa que nasce, vive e deve ter futuro. Para as IPSS as pessoas são o fundamental, a sua razão de ser, e por isso é que são necessárias. Era preferível que não fossem necessárias. Era sinal de que todos os direitos estavam salvaguardados e que todas as pessoas tinham de facto futuro. Infelizmente há pessoas que sem as IPSS não seriam reconhecidas como tal, e não teriam direito a futuro. Há razões para fazer festa. O importante é que cada pessoa com mais ou menos capacidade repare na pessoa que está ao seu lado e tem direito a ser pessoa. É isto que as IPSS proclamam.”
Podia parecer estranho que as IPSS, reunidas em Faro, estivessem em festa. Mas Lino Maia apurou-lhe o sentido e anunciou que este caminho é para trilhar nos próximos tempos. Há luz ao fundo do túnel, por mais que estiquem o túnel. “Vamos continuar a fazer festa e vamos continuar a dizer oportuna e inoportunamente, gostem ou não gostem, que para nós o importante, apesar de também precisarmos de meios para aquilo que fazemos, precisamos de ser respeitados. Mas mais importante do que isso e até porque apesar das faltas de apoio e das dificuldades, não há instituições a fechar portas nem a mandar pessoas embora. O mais importante são as pessoas a quem nos dedicamos. Vamos fazer festa, não vamos desanimar, vamos, cada vez com mais força, dizer que o futuro deste país, passa definitivamente por menos preocupação com o mercado e mais preocupação com as pessoas.”
Estava dado o mote da Festa da Solidariedade 2012. Não foi anunciado o fim da crise, mas a garantia da permanência do trabalho social solidário e a resistência das IPSS a todas as tempestades, a todas as dificuldades.
O Bispo do Algarve D. Manuel Quintas sublinhou essa função das instituições, simbolizada na chama que ilumina e aquece. “O povo português é de uma generosidade extrema, partilha o pouco que tem com aqueles que ainda têm menos. Esta chama é verdadeiramente a chama que simboliza o Portugal solidário.” E terminou a intervenção concordando também com a necessidade de continuar a haver festa.
O presidente da Câmara de Faro não desafinou do tom geral das intervenções. Sentiu-se honrado no papel de anfitrião e enalteceu o “papel determinante que as IPSS sempre tiveram na vida social”, recordando que nos tempos que correm, “em que as dificuldades são terríveis, em que a perspectiva dos próximos meses da vida dos portugueses é dramática, em que muitas famílias vão conhecer e muitas já conhecem o desemprego, as dificuldades na habitação, na alimentação, em que muitas crianças vão viver esses dramas nas famílias em que estão integradas, a vossa ajuda e a vossa atitude são mais necessárias e mais urgentes do que nunca.”
Mais razões? O encontro de instituições, a partilha de experiências, a troca de conhecimentos. Nos stands espalhados pelo Jardim Manuel Bivar as IPSS mostraram-se no melhor que têm e que sabem. Apesar da distância foram muitas as IPSS do Norte que marcaram presença proporcionando aos seus utentes, funcionários, familiares e dirigentes um convívio salutar e retemperador numa tarde sábado solarenga nas margens da ria Formosa. Eleutério Alves, o dirigente da CNIS que tem tido a seu cargo a coordenação destes eventos faz um balanço positivo. “Apesar de ser no sul houve uma participação muito interessante do resto do país. Apesar do risco, em termos de animação foi, em meu entender, a melhor e a mais equilibrada de todas as festas e a afluência do público foi interessante. E tudo com origem nas IPSS, tudo prata da casa.”
Esta iniciativa já tem continuação assegurada, para o ano. Eleutério Alves Sabe que será no centro de Portugal, faltando ainda determinar a cidade em que se irá efectuar.
ANIMAÇÃO ATÉ AO PÔR DO SOL
Só depois do sol se retirar é que terminou a animação da Festa da Solidariedade. Começou com a Associação dos Reformados Pensionistas Idosos de Faro que deu uma lição de integração etária feita com a música folclórica e terminou com o fadista motard, José Manuel Ferreira, já passava das oito horas da noite, em representação do Centro Cultural Santa Bárbara Mexe. Pelo meio ficaram desempenhos notáveis, demonstrando o trabalho social, estético, artístico, lúdico e de animação que se faz nas IPSS. Destaque para um desfile de moda protagonizado pelo Núcleo Educação da Criança Inadaptada de Lagos; ou para o desfile com coreografia da APATRIS 21 de Faro; ou para a participação multifacetada do Centro de Assistência Social Lucinda Anino dos Santos; ou do Centro Popular da Lagoa; ou da Casa do Povo de Messines; ou da Cruz Vermelha de Olhão; ou do Centro de Acção Social Cultura e Desporto dos Trabalhadores da Saúde e Seg. Social de Faro; ou do Centro de Apoio Sócio-cultural Unidade Zambujalense; ou do Centro Social e Cultural da Tor; ou do Centro Infantil do Hospital de Faro; ou do Centro Social e Paroquial Padre Ricardo Gameiro da Cova da Piedade; ou dos Putos Traquinas, de Lisboa. Destaques para todos, sobretudo para aqueles que vieram de longe e esperaram pacientemente pela sua vez.
Houve de tudo um pouco. Fado, folclore, dança, música popular, desfiles de moda, coreografias, ginástica. Uma festa democrática, muito participada e interactiva. Era do público que saíam os artistas directamente para o palco, regressando de novo às cadeiras da assistência. Foram seis horas de animação produzida e apresentada pelas IPSS. À sombra de uma chama que, por tudo isto, se chama da Solidariedade.
V. M. Pinto – Texto e fotos
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