APRe! Não foi esta a expressão usada por Rosário Gama quando, o ano passado, ficou a saber que a sua reforma ia ser amputada por uma contribuição extraordinária de solidariedade. Mas podia ter sido. A amiga que a visitou num hospital de Coimbra, onde se encontrava a tratar de uma complicação de saúde, estava indignada com o governo e a proposta de orçamento. Rosário Gama não disse APRe!. Deve ter dito Basta! Ou talvez Irra!, mas logo ali, na cama do hospital decidiu que havia de fazer-se alguma coisa... “A gente vai ter que se mexer”, lembra-se de ter dito à amiga.
Foi a madrinha da associação que resolveu criar. “Tinha pensado em duas coisas: IRRA ou APRE. IRRA não dava... queríamos o acrónimo. O Mário Zambujal, que foi ao nosso último colóquio, disse que se chama APRe!, mas podia chamar-se Porra!. O APRe! tem o sentido do Basta!. Eu achei que tinha que ser um nome sugestivo que mostrasse que nós estamos zangados. Aposentados, Pensionistas e Reformados, com um ponto de exclamação à frente. APRe!”
Depois de ter saído do hospital, logo que pôde, contactou jornalistas conhecidos dos tempos em que era directora da Escola Secundária da Infanta D. Maria em Coimbra, classificada no primeiro lugar no ranking das melhores escolas, contactou amigos através das redes sociais e marcou uma reunião em Coimbra, em Outubro de 2012. Compareceram cerca de 500 pessoas de todo o país. “Isto tem pernas para andar”...
E não mais parou. Em apenas um ano de existência a APRe! tem uma visibilidade maior do que todas as restantes organizações cuja finalidade é a protecção dos direitos dos reformados e pensionistas. “Não somos muitos, mas somos muito mexidos. Somos cerca de 5 500 associados. Quem se chega à APRe! é a classe média e média-baixa, são os que sofrem mais com os cortes. A nossa associação não tem caracter lúdico, não é de ocupação de tempos livres, nem organização de visitas, nem de ginásios, nem universidades seniores. Nós fazemos intervenção social e cívica.”
Os que decidem pertencer à associação pagam uma jóia de cinco euros e uma quota de 12 euros anuais. Se tiverem um rendimento mensal abaixo dos 500 euros não pagam. “Nós temos adesões todos os dias. Pessoas que trabalhavam em seguros, nos CTT, a TAP está em peso, muitos professores, bastantes médicos, economistas, juristas, enfermeiros...Políticos reformados? Aquela classe política mais alta vai para a CIDSENIOR, movimento de reformados criado pelo Alarcão Troni, Alberto Regueira, Manuela Ferreira Leite, João Salgueiro, essa gente assim... aqui é gente mais simples...”
Verdade seja dita, só se fala dos reformados depois da APRe! ter aparecido. E há várias associações e movimentos: A CGTP tem a Inter-reformados, há a MURPI mais ligada ao PCP, há uma associação da UGT, a ANAPR, e agora apareceu a CIDSENIOR e o Movimento de Reformados Indignados liderado por Filipe Pinhal, “mas quando se ouve falar da associação de reformados é da APRe! que se está a falar. Nós não temos muita força mas incomodamos, estamos sempre a arranjar situações delicadas e provocatórias para apresentar as nossas ideias. Nós estamos aqui para chatear... através de manifestações, de pareceres, comunicados, pedidos de reuniões, opiniões e sobretudo da presença na Comunicação Social. Nós chateamos, mas de forma ordeira e educada. Uma vez na Assembleia da República, na luta contra a contribuição extraordinária um associado nosso cantou a Grândola e isso causou mal estar na APRe!. Já ocupámos a Caixa Geral de Aposentações de forma pacífica. Fizemos um requerimento e o presidente da Caixa e os polícias estavam encantados connosco... Nunca tiveram uma manifestação tão educada.”
Rosário Gama é a líder desta revolução grisalha que já decidiu fazer vigílias contra o Orçamento de Estado de 2014, a partir das seis e meia da tarde até às oito da noite, em locais públicos, um pouco por todo o país. “Vamos distribuir uns papéis e acender umas velas...”
Rosário Gama foi professora de Biologia, esteve na escola de educadores de infância, três anos nas Caldas da Rainha e sete em Coimbra. Voltou para o liceu onde fez tudo o que é possível fazer numa escola secundária. Reformou-se aos 62 anos de idade, como directora. Vai fazer 65 anos em Janeiro próximo. “Tínhamos muita coisa para fazer, ainda estamos a pagar a casa. Os meus filhos e netos precisam de ajuda e não está fácil... Faço 65 anos em Janeiro e pensei que ia ter direito ao meio bilhete nos transportes, mas até isso acabou.”
Oriunda de uma família conservadora de Viana do Alentejo foi convertida à esquerda aquando da crise académica de 1969. “Estava no coral de Letras e fiz greve e foi aí que despertou a minha consciência para a política activa, fez-se clique quando houve aquela injustiça em 69, e comecei a ver as coisas de outra maneira.Virei a agulha para a esquerda. Comecei no Movimento de Esquerda Socialista e depois no PS”. Mantém filiação, mas é uma militante muito “indisciplinada”. Apoiou Lurdes Pintassilgo, Jorge Sampaio, Manuel Alegre e, mais recentemente, esteve com Mário Soares no congresso das esquerdas da Aula Magna. “Eu não quero nada que identifique a APRe! com o PS. Queremos é que os partidos políticos coloquem gente da APRe! nas listas de candidatos para a Assembleia da República. Nós somos um terço da população, mais de 3 milhões, temos que estar representados. Como não há movimentos independentes para AR temos que entrar nas listas dos partidos. Temos que ter reformados na AR para defender os nossos direitos.”
Um ano depois, em sua casa em Coimbra, onde recebe o Solidariedade, Rosário Gama está mais do que nunca convencida do préstimo de uma associação de pressão social como a APRe! O próximo orçamento prevê novos cortes para os reformados e pensionistas.
NÓS ESTAMOS AQUI PARA CHATEAR...
Este Orçamento de Estado afecta muito os reformados e pensionistas?
Afecta muito por causa da convergência das pensões, da contribuição extraordinária de solidariedade, com a sobretaxa de IRS, afecta com os impostos e com todos os cortes que estão previstos. Fazem da vida das pessoas desta idade um inferno. E temos as pensões de sobrevivência, para além das reformas, que são pensões que estão a ser alvo de ataque por parte do Estado. Passou para 600 euros, mas de qualquer maneira é um corte com retroactividade para reduzir os valores das pensões no seu valor ilíquido. É uma medida que viola qualquer contrato que tenha sido estabelecido com o Estado, qualquer princípio de confiança fica abalado.
Sentem-se enganados...
Nós acreditávamos que aquilo que estávamos a fazer ao longo da nossa vida era seguro. Os descontos foram feitos com base naquilo que nós recebíamos. Não há ninguém a receber mais do que deve porque os descontos foram feitos com base no vencimento: quem ganhava mais descontava mais, quem ganhava menos descontava menos. Nós acreditávamos que, com base nisso, iríamos ter um final de vida equilibrado, de acordo com a nossa vida activa, em termos de poder de compra. Agora podíamos ajudar os filhos e assumir compromissos com base nessa garantia. Era uma certeza. Neste momento, isso está tudo posto em causa. Há situações gravíssimas. A confiança está posta em causa. Fomos enganados. É uma violação de contrato. O que põe em causa qualquer contrato que seja feita com o Estado. Não se pode admitir.
É uma quebra de confiança...
A contribuição extraordinária de solidariedade, embora seja uma violência muito grande, dirigida a este grupo social, não é um corte no nosso vencimento ilíquido. É uma questão temporária, não sabemos quanto tempo vai durar, mas é temporário. O que o governo pretende agora com estes novos cortes é algo que vai afectar o nosso vencimento ilíquido. Ou seja, quer reduzir a remuneração base, assim sem mais nem porquê. Isto é como se a nossa pensão tivesse tido um recálculo. Não podemos aceitar. O valor foi encontrado com base em cálculos da legislação da época, que tem em conta a esperança de vida, os descontos, os anos de descontos, cálculos atuariais e foram feitas com base nas regras que o Estado definiu. E agora este governo está a dizer, que aquilo que foi feito foi mal feito... Imagine, é como se você tivesse comprado uma casa com um empréstimo bancário e depois de ter pago a casa, o banco vir dizer que tem que pagar mais dinheiro porque afinal fez mal as contas...
Considera que há um ataque deliberado aos mais fracos?
O ataque aos mais idosos, aposentados, pensionistas e reformados é uma questão ideológica. Não é só nas reformas. Na saúde há pessoas idosas maltratadas nos hospitais. Chamam-nos não utilitários e passam outros à frente, os mais novos. Os meios bilhetes nos transportes públicos acabaram. E eu que estava à espera de fazer 65 anos para pagar meio bilhete nos transportes públicos, para ir a Lisboa... é mais uma medida contra nós. Mais: Este governo faz uma apologia das IPSS e ainda não percebeu que com estes cortes muitos idosos não têm dinheiro para pagar o lar. O governo também está a penalizar muitas IPSS. Os utentes não podem pagar. Vão aumentar os casos em que os idosos não vão poder pagar a contribuição prevista sabendo nós que muitos deles já pagam menos do que estava estabelecido. Vão aumentar os casos de abandono dos lares. Por isso, estas medidas também afectam as IPSS que vêem os seus rendimentos diminuir. Até mesmo através do cálculo da contribuição dos utentes, uma vez que é da diminuição efectiva do rendimento que estamos a falar.
Se não forem os cortes nas pensões onde é que o governo vai buscar o dinheiro?
A Segurança Social pode ir buscar verbas às empresas que despediram gente e substituiram funcionários por tecnologia... Parte do valor acrescentado dessas empresas deve seguir para a Segurança Social. É preciso cortar nas empresas do Estado, nas despesas do Estado, fundações e institutos, observatórios, empresas municipais, são centenas... A reforma do Estado não está feita, nem nada que se pareça. A reforma que eles anunciaram foram os cortes nos vencimentos e nas pensões.
É sustentável a Segurança Social?
Neste momento 82 por cento do financiamento vem dos funcionários públicos e da Caixa Geral de Aposentações. Apenas quatro por cento vem dos bancos, das empresas e das rendas energéticas. Vieram logo dizer que não era possível aumentar... O plafonamento pode ser uma solução a longo prazo e feito de forma gradual, mas a privatização dos descontos é o pior caminho, que só interessa às seguradoras, como negócio. Nós acreditamos no sistema público de Segurança Social, tal como na escola pública e o Serviço Nacional de Saúde.
Em quem deposita confiança?
Nos políticos... ninguém. A nossa esperança é o Tribunal Constitucional, mas tenho pena que chegue a esta situação. Este governo está sempre em cima da linha vermelha. Atiram o barro à parede a ver se pega. O TC está a ser internacionalmente pressionado, é uma coisa nunca vista. Acha que a Lagarde, que pressiona o TC português, admitia que se fizesse o mesmo em França? Ou a Merkel com o Tribunal Constitucional alemão?... Na Alemanha as reformas são consideradas um direito de propriedade. São intocáveis. Em Espanha, congelam as reformas, mas não as baixam...o problema aqui é irem retroactivamente buscar o dinheiro aos mais fracos. Eu tenho muita esperança no TC... Nem quero crer que os constitucionalistas que lá estão actuem de acordo com as suas crenças ideológicas, mas de acordo com a lei, apenas isso... Estamos em suspenso... repare que toda a gente dizia que a contribuição extraordinária de solidariedade era inconstitucional. O Gomes Canotilho, o Jorge Miranda, os melhores constitucionalistas, e afinal, ela passou. Não sabemos o que vai acontecer agora. Mas digo-lhe se forem aprovados os cortes perde-se a confiança em tudo.
A APRe! também diz que se lixe a troika?
Sim, também diz que se lixe a troika, mas nós queremos mesmo é que se lixem as medidas que estão a aplicar e a falta de conhecimento relativamente ao nosso país. A troika podia ter tido maior flexibilidade na aplicação das medidas. A troika não disse: vão ter que cortar nos reformados, mas vão ter que atingir estas metas... Por isso que se lixe o governo que aplicou mal aquilo que teria que fazer e escolheu atingir os mais fracos. Nós participamos nas manifestações, embora eu ache que está um pouco esvaziada.
O que é que revolta mais?
É estarmos pior do que quando isto começou. Em termos de dívida e no défice. Todas as medidas de austeridade não serviram para nada. Eu gostava de saber para onde foi o meu dinheiro... Nós associámo-nos a uma iniciativa que é uma auditoria cidadã à dívida. Assinámos uma petição, e já tem mais de quatro mil assinaturas, o que permite ir à Assembleia da Republica. Nós queremos contribuir para que haja transparência. E saber para onde foi o nosso dinheiro.
A APRe! tem futuro?
A APRE quer ter uma intervenção cívica permanente. Neste momento temos uma campanha junto das autarquias para que se crie uma comissão de protecção ao idoso em risco. Haverá sempre idosos em risco. Por isso a nossa existência justifica-se sempre. Não somos assistencialistas, queremos ter o direito a uma vida digna e queremos, junto das autarquias, fazer pressão para que façam o levantamento dos idosos e suas necessidades. Na área da saúde teremos que apostar na divulgação e formação e na informação. Há muito trabalho... Nunca seremos um partido político nem um sindicato. Seremos sempre uma associação cívica. Partido nunca, acabaria a APRe!. Temos associados do CDS/PP ao Bloco de Esquerda e muitos independentes.
Os pré-reformados não deveriam pertencer desde já à APRe!?
Podem identificar-se connosco, mas os estatutos não permitem que pertençam à APRE. É só para aposentados. E exclui também, e isso temos que mudar, a adesão das associações que se querem juntar a nós. É uma adesão individual. Os pré-reformados ainda não fazem parte, mas quem sabe... Como alguém dizia com piada, eles são as jotas dos reformados.
V.M. Pinto – Texto e fotos
Não há inqueritos válidos.